Mirik Milan tem um cargo cujo título é tão extravagante que nem parece real. O holandês de 33 anos é Prefeito da Noite de Amsterdã, cargo instituído há 11 na capital da Holanda. Ele vem falar sobre sua experiência como articulador entre representantes da vida noturna de sua cidade e as autoridades do país europeu no Seminário da Noite Paulistana, que começa nesta terça (18) em São Paulo (veja a programação).

O evento contará também com palestras do geógrafo Luc Gwiazdzinski, da Universidade Joseph Fourier, de Grenobla, na França, no dia 19, e o sociólogo William Straw, diretor da Universidade McGill, no Canadá, no dia 20, além de nomes como o vereador Nabil Bonduki (PT), responsável pelo Plano Diretor de São Paulo, e do chef Alex Atala.

Organizado pelo coletivo COlaboratório, o evento se propõe a discutir a vida noturna da cidade da capital paulista. Para Baixo Ribeiro, um dos organizadores, ““A noite é preciosa para o paulistano”. Seus desafios, porém, são imensos: histórica falta de planejamento urbano, seculares problemas de infraestrutura e especulação imobiliária são alguns deles, que devem ser debatidos pelos palestrantes.

O cargo não é ligado a partidos ou a uma agenda política específica que não seja otimizar, expandir e melhorar a vida noturna da cidade. Para Mirik, que organiza festas em Amsterdã desde 2001, a missão é “ser um rebelde de terno”. “Preciso conversar com a Câmara Municipal e também com donos de boates, e fazer com que todo mundo se entenda”, explica. Para ele, toda metrópole do mundo precisa – e deve – ter um Prefeito da Noite. “Para pensar uma cidade do século 21 por completo, é preciso contemplar também a vida noturna”, afirma.

Virgula Diversão conversou com Mirik nessa segunda-feira (17), no hotel em que está hospedado próximo à rua Augusta – certamente a mais fervida da cidade quando o assunto é noite. Leia a entrevista:

Como surgiu o cargo de Prefeito da Noite?
Essa história começou em Rotterdam, que tem com Amsterdã uma relação parecida com a que existe entre Rio e São Paulo: as pessoas de Rotterdam acham as de Amsterdã arrogantes, e as de Amsterdã acham as de Rotterdã entediantes. Lá, havia um músico de jazz que tocava durante a noite toda e em um bar e abria uma loja pela manhã. As pessoas passaram a chamá-lo de Prefeito da Noite. Isso aconteceu por dez anos, até que o termo fosse introduzido. Foi assim que esse termo surgiu na Holanda. Em 2003 um político de esquerda achou que seria uma boa ideia ter uma pessoa, independente, que conhecesse a vida noturna, que poderia dar conselhos para as autoridades locais sobre a vida noturna de Amsterdã. O prefeito da noite é a pessoa que dá conselhos – que agradam e que não agradam – sobre a vida da cidade. Sobre como estimular a vida noturna, sobre locais, urbanismo, todo tipo de coisa. Como eu vejo, há muitas pessoas trabalhando na Câmara Municipal que sabem muito sobre muita coisa, mas nada sobre vida noturna.

No Brasil, diversos setores da política e instituições públicas, como a Polícia Militar, tendem a pensar que vida noturna é baderna, que só atrapalha o funcionamento da sociedade. Que contribuição a vida noturna dá para uma cidade como São Paulo ou Amsterdã?

A vida noturna é importante para a cidade, para que ela seja interessante, que seja um bom lugar para se viver. Por exemplo: se você olhar para Berlim, hoje a capital criativa do mundo. Lá, há muitos espaços abertos, depois da guerra havia apenas 3 milhões de pessoas. Há dez anos atrás, o prefeito de Berlim disse que a cidade era pobre, mas sexy. Não havia muito trabalho, e o governo estava pobre. Então eles deram um passe livre para a vida noturna. A cidade tem um histórico de festas. Entre as duas guerras mundiais, nos anos 1920, depois da queda do Muro. Então a cidade tem uma história rica de vida noturna. Quando o prefeito fez isso, a cidade viveu uma explosão de criatividade, muita gente se mudou pra lá. E muitas empresas se mudaram pra lá, criando empregos e crescimento econômico. A vida noturna deu início a esse movimento em Berlim. É a segunda cidade com mais startups depois de Londres na Europa. Você vê que a vida noturna não é uma coisa vazia para pessoas hedonistas. Londres tem o maior sistema de bancos do mundo, e também porque as pessoas podem gastar seu dinheiro em entretenimento. E ela fica interessante se há inovação e experimentação. Além disso, é uma opção de carreira. Não importa se você é rico ou pobre, se você for bom, é uma oportunidade. Muitas pessoas que eu conheço que tinham outras profissões, hoje pagam seus impostos por meio da vida noturna. É um pequeno sistema econômico.

Como era a vida noturna de Amsterdã antes do Prefeito da Noite? E como ela se transformou nos últimos onze anos?

Nos anos 1980, você poderia começar a ver o começo da vida noturna moderna. Em 1988, foi o verão do amor e a house music começou a surgir. O que aconteceu na época é que não havia regras, leis, há 25 anos atrás, para alguém dar uma festa em uma fábrica desativada. Começaram a inventar leis para deixar tudo em ordem. Mas nos últimos 20 anos, a cena ficou maior e mais profissional. Os administradores não sabiam como lidar e ainda mais leis foram surgindo. Em 2003, havia tantas leis e regulamentos, que as pessoas não se sentiam livres. Amsterdã é uma cidade linda, como um museu à céu aberto. Mas, por isso, as pessoas também tendem a se sentir como se estivessem em um lugar em que não podem tocar nada. Foi quando o Prefeito da Noite começou. O episódio que fez com que o Prefeito da Noite ficasse mais importante foi quando uma lei proibia que garotas dançassem em postes de pole dancing em Amsterdã. Foi uma lei boa, que protegia que garotas fossem exploradas. Só que, em um clube tradicional, havia pole dancers e a festa foi fechada – o detalhe é que esta festa nada tinha a ver com prostituição, era apenas uma performance. Na época, esse clube foi fechado. Então, todos os outros clubes fizeram noites com pole dancing em protesto. E o governo não poderia fechar toda a vida noturna da cidade. Neste momento, o partido de esquerda da Holanda pensou em instituir o cargo de Prefeito da Noite para manter a noite vibrante e articular um diálogo entre as autoridades locais e os representantes da vida noturna.

Qual foi a realização mais importante do seu mandato com Prefeito?

A introdução da licença 24 horas de funcionamento para certos bares. Pense que Amsterdã é a capital da Holanda, mas as regulações para que os bares fechem são as mais severas do país. Todos os clubes fecham às cinco da manhã. As pessoas chegam aos bares às duas, três, e quando dá 15 para as cinco, as pessoas querem ir para outro lugar, mas tudo está fechado. E então há 10 mil pessoas nas ruas sem querer ir para a casa. E esta situação acaba gerando muita violência. E é a pior coisa do mundo. Sendo que, dez minutos antes, todo mundo estava feliz e bebendo em um clube. E se você tem pessoas de todos os tipos se cruzando nas ruas, problemas acontecem. O que fizemos foi dar a 10 bares e clubes uma licença de 24 horas. Ou seja, o dono decide quando pode abrie e fechar. Se a festa estiver boa, você pode ficar aberto pelo tempo que quiser. Dá a liberdade para os donos escolherem. É um grande passo e a minha maior realização. Mas não temos uma identidade 24 horas. O que queremos mostrar, daqui a alguns anos, que a ideia deu certo e que podemos estender a lei. O mesmo vale para restaurantes – a cena gastronômica da cidade ficou bem mais interessante recentemente. Será bom para as pessoas e para os turistas. Sou a mosca na sopa das autoridades, porque sempre tento chamar a atenção para grupos que não estão sendo representados.

Como vocês escolheram os estabelecimentos que teriam esta licença?

A licença foi garantida baseada em critérios culturais. Fizemos uma concorrência, da qual 35 estabelecimentos puderam participar. Usamos critérios de saúde pública, impacto na comunidade local, poluição sonora, reforço policial na área, mas principalmente, se esse conceito proposto iria contribuir para que a cidade fosse percebida como uma capital de entretenimento na Europa. Toda cidade tem um clube famoso, que todos conhecem. Em Amsterdã é o Trouw, que tem uma licença para funcionar 24 horas por dia.

Você acredita que os donos de clubes e boates precisam ser mais atentos ao que acontece na comunidade ao seu redor?

Ter um bom diálogo com quem está ao seu redor e pode fazer com que as coisas mudem para melhor. Por exemplo, havia um clube que queria uma licença 24 horas, mas antes de propor um conceito, eles fizeram uma pesquisa pela vizinhança perguntando o que cada pessoa gostaria de ter naquele estabelecimento. Isso muda o todo o jogo. Se você é dono de um clube que só quer festas e som alto, 24 horas por dia, sete dias por semana, é claro que ninguém na vizinhança vai gostar. Mas se você promove bazares à noite, aulas de ioga pela manhã e festas de madrugada, certamente você conseguirá uma aprovação da comunidade.

Amsterdã é conhecida como um destino para quem deseja usar drogas na Europa sem enfrentar repressão, dada sua legislação liberal. Na sua opinião, o governo holandês lida bem com esta questão?

Tenho uma opinião, mas não sou especialista em políticas de drogas. Acho que ignorar estas questões não é o caminho certo, e o governo holandês endereça estas questões. É claro que existem riscos à saúde e questões de saúde pública. O papel do governo é informar bem a população.

Do ponto de vista legal, um dono de clube em Amsterdã é responsável por uma pessoa que usa drogas dentro dele?

Até certo ponto, sim. Em um dado momento, fez sucesso em Amsterdã uma droga chamada GHB. E muitas pessoas começaram a desmaiar em clubes. Foi um problema na cidade. Você pode morrer, porque você fica paralizado em um lugar cheio de gente. Todos os clubes se uniram, fizeram flyers, um DJ fez uma música para conscientizar as pessoas a respeito. E os clubes se uniram e tomaram responsabilidade sobre isso e fizeram algo a respeito para informar seus clientes. isso é importante.

O que você considera indispensável para que uma cidade tenha uma boa vida noturna?

Espaços amplos. Você vê isso em berlim. Este é um desafio de Amsterdã. Você tinha armazéns vazios a cinco minutos do centro há 20 anos atrás. Hoje não. Eles ficam mais caros com a especulação imobiliária. O melhor clube da cidade ficava em um lugar que era entendido como fora da cidade, marginalizado. Hoje, há um hotel ao lado, um excelente restaurante. O clube ajudou a revitalizar a cidade. Só que o dono do prédio agora vai vender o prédio por muito dinheiro e o clube tem de sair.

Você acha que isso é um processo natural de uma cidade? Que a vida noturna tem o papel natural de revitalizar áreas e depois migrar – ou que o governo deve proteger a vida noturna da especulação imobiliária? Temos um exemplo parecido em São Paulo com a Rua Augusta e o clube Vegas.

Acho que há um papel importante do governo que todos possam usar a cidade e seus benefícios. Não pode ser apenas o preço que determina se as pessoas devem ficar ou sair. A vida noturna faz a vida de uma cidade ser melhor. A infraestrutura é refeita, há mais dinheiro naquela região, há trabalho, há pessoas nas ruas. As autoridades locais devem se certificar que nem todo mundo deva se mudar quando a especulação começa. Os governos não podem deixar o poder da especulação imobiliária matar a vida noturna de uma área. Por outro lado, pessoas criativas buscam áreas marginalizadas por uma questão de branding. Então é normal que, depois que aquela área é revitalizada, outros comecem a se perguntar: onde é que estão as pessoas criativas? Esta é a questão mais interessante do desenvolvimento urbano na atualidade.

Seminário da Noite Paulistana @ Auditório da Biblioteca Mário de Andrade

18, 19, 20 e 21 de março (terça a sexta-feira)
Rua da Consolação, 94, Centro – São Paulo
Telefone: (11) 3775-0002


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Prefeito da Noite de Amsterdã diz que governo deve proteger clubes da especulação imobiliária