Enquanto rappers dos Estados Unidos parecem mais preocupados em afirmar o discurso do hip hop bling, do consumo de luxo, de joias, ouro, carrões e da submissão da mulher, brasileiros da velha escola como MV Bill e os Racionais MCs tornaram-se referência para que novas gerações pudessem se conectar com a origem do movimento, com suas preocupações políticas e sociais.

A contradição, para MV Bill, que está lançando seu novo álbum Monstrão (Chapa Preta), pode ser explicada pelo poder econômico. Aqui, justamente pelo fato de o rap não ter se tornado “mainstream” como nos EUA, ele pôde manter sua integridade quase franciscana.

Um dos pioneiros do rap carioca, Bill é um peixe fora d´água na terra que deu origem ao funk e vê os dois gêneros como ramificações distantes. “Eles se tornaram opostos, são frutos da mesma árvore, mas vão por caminhos completamente diferentes. Acho que não brigam, se brigam, não deveriam, mas são caminhos completamente diferentes”, afirma em entrevista ao Virgula Música.

Veja #Tem que ser Monstrão

O hip hop nos Estados Unidos teve uma origem social, política, de passar uma mensagem, desenvolver a consciência, mas com o tempo, isso se perdeu. Sendo que no Brasil, entretanto, nomes como você, Racionais MCs. alguns nomes do hip hop old school, mantiveram esta linha, o que você acha que aconteceu?

Acho que o hip hop teve a mesma fórmula dos Estados Unidos no mundo inteiro. Todo mundo meio que se sentiu, assim como os próprio americanos, para ter uma vontade de utilizar o hip hop para ser um canhão que iria disparar contra as injustiças sociais. Aliás, nos países onde esse desequilíbrio social era mais gritante, o hip hop teve uma instalação maior como força de resistência e força política. E, na maioria das vezes, de forma apartidária.

Mas nos Estados Unidos parece que a coisa ganhou um outro rumo, foram consumidos pela indústria, que é a maior indústria musical do mundo, não podia ser diferente, ao mesmo tempo que passou a dominar as paradas da Billboard, a parada mais importante, e estava sempre no topo das músicas mais tocadas, nas rádios, músicas mais consumidas pela juventude, classe média, rica, na maioria das vezes branca norte-americana, ele também ficou refém da falta de conteúdo. As músicas que ficam mais estouradas, na maioria das vezes, são as que não dizem nada.

E nesses outros lugares, como o hip hop não se transformou em prato musical principal dos seus países, a maioria das vezes ele acabou mantendo ainda boa parte desse discurso. A não ser na Inglaterra, que também explodiu, alguns países europeus que também acabaram criando outra temática, na França, que já foi bastante contestador, e acabou sendo consumido e criando um novo hip hop. Mas nos lugares, assim como no Brasil, onde o hip hop não estourou, não virou nada parecido com o que acontece nos Estados Unidos, ele ainda mantém esse discurso. Às vezes, não panfletário, mas a essência ainda está mantida.

O Soldado que Fica

 

Mas foi uma decisão filosófica sua, de não se vender, de não fazer concessões?

Eu até faço algumas concessões, mas não por obrigação. Mas por visão mesmo da realidade. Ao mesmo tempo que você está me colocando nesse hall, que eu tenho maior orgulho de fazer parte dele, dos que fazem música contestadoras, da realidade, o caralho a quatro, eu também sou um cara que tenho música que fala de relacionamento, que fala de diversão, de ir para balada, curtir uma balada e tal.

E aí eu acredito, cara, que as minhas músicas elas vão ser cada vez mais verdadeiras, quando eu tiver que tocar nessa realidade para escrever de forma visceral, com sentimento, falando o que me está dando vontade de dizer naquela momento, mas não por uma ditadura, uma obrigação de fazer de determinado jeito por conta de um script, um roteiro. Acaba que alguns grupos mantenham essa essência, mas hoje em dia, ela não é mais uma regra para quem está chegando.

Muitos rappers de São Paulo da nova geração, como Emicida, têm você como referência. Sempre que aparece alguém novo cita MV Bill entre as influências. Se sente um pouco paulistano por isso?

Pô, cara, na verdade eu acho que é um puta reconhecimento, o nome do disco surgiu desses caras, que estão chegando no hip hop agora e carinhosamente me chamam de “mestre”, com muito carinho de “monstro”, mais carinho ainda de “monstrão”. Eu acho isso do caralho, cara, mostra respeitabilidade com meu trabalho, com minha pessoa, e a gente, a minha geração, eu, o (Mano) Brown, que você citou, a gente tinha isso pelo Public Enemy, a gente tinha isso pelo Ice-T. São as nossas referências, a gente não tinha alguém anterior para ter como referência. E aí ser referência de outros caras hoje é um bagulho que é do caralho.

E eu sou de uma cidade como o Rio de Janeiro que não tem essa cultura de hip hop, uma cidade praiana, onde o funk e o pagode gritam muito mais alto. Eu sou carioca pra caralho, eu sou carioca até o último fio de cabelo, que eu não tenho muitos na cabeça (risos), mas eu sou carioca pra caralho, eu gosto muito da minha cidade. Mas, porra, aí em São Paulo foram os primeiros shows que eu fiz na minha vida. A relação que eu criei com o Estado, com os caras, com as pessoas, é um bagulho assim muito, muito foda. Ser reconhecido em São Paulo é praticamente ser reconhecido pelo resto do país, então é uma relação muito especial com a cidade. É maneiro saber que as pessoas percebem a nossa existência, mesma estando em outra cidade.

Estilo Vagabundo 3

 

O funk e o rap tiveram a mesma origem…

Sim, a mesma árvore…

Você acha que com o tempo, eles se tornaram opostos ou ainda é a mesma coisa?

Cara, eles se tornaram opostos, são frutos da mesma árvore, mas vão por caminhos completamente diferentes. Acho que não brigam, se brigam, não deveriam, mas são caminhos completamente diferentes.

Você conhece esse funk que está sendo feito em São Paulo, o chamado funk ostentação?

Sim.

Você vê como uma coisa positiva também, de uma libertação para os caras da periferia, de orgulho por ter acesso ao consumo, ou você acha que primeiro deveria-se valorizar a luta pela educação, por saúde, transporte, pela melhorias na condição de vida de todos os que sofrem com as injustiças nas periferias?

Cara, tem alguns clipes de funk de ostentação, que se tirar o som, parace clipe de rap norte-americano. Engraçado isso. E alguns clipes de rap americano, se você tirar o som e colocar um funk ostentação fica muito parecido.

É, eu não sei se essa é a realidade de todo mundo. Eu acho que não, né? Mas acredito que devam ter algumas pessoas que possam estar vivendo, sim, essa realidade de ostentação. Mas está longe se ser a realidade da maioria. E tomara que muitos não queiram delinquir achando, que, pô, somente dessa forma vão poder ter aquelas coisas que estão sendo mostradas nos videoclipes. Mas eu acho que é um tipo de música que é válida também.

Vivo

 

Você é uma espécie de porta-voz da Cidade de Deus, um cara que fala por essa galera que nem sempre tem essa oportunidade. Como você está vendo esses protestos que vêm ocorrendo no Rio de Janeiro e qual é seu prognóstico para este monte de evento que vai ter aí, como Copa do Mundo e Olimpíada, você acha que a periferia vai mostrar que nem tudo está às mil maravilhas como parte da mídia tenta mostrar?

Cara, eu tenho algumas composições que falam de mobilização popular, falam de indignação coletiva. Mas que eu escrevi dentro do meu imaginário. Eu nunca tinha visto nenhum movimento como este. Algumas pessoas tentam fazer um comparativo com os cara-pintadas, na época do Collor, mas eu acho que esse momento que a gente está vivendo é muito único, é muito diferente.

Ele é muito novo e tem uma coisa muito diferenciada porque ele mobilizou o Brasil inteiro de forma independente, né, cara? Que nas manifestações não tinha um só pedido, um só clamor. Era uma indignação coletiva e com um emaranhado de reivindicações. Então, era um momento único.

Estou vendo de uma forma muito positiva, estou achando muito importante, muito interessante a gente ter esse momento que o povo está mostrando a sua indignação. E é uma parada que aconteceu num momento muito simbólico. Aliás, o ato já seria simbólico por si só, mas se tornou diferenciado e potencializado, por ele ter acontecido no meio de uma competição futebolística internacional, que era a Copa das Confederações. Mostrando que nem aquelas coisas que já foram objetos que tiravam a atenção do público de um fato que deveria ter muito atenção, conseguiu fazer dispersar. Conseguir fazer com que a manifestação não existisse ou conseguir dispersar o pensamento daquele lance comum.

E o bom, cara, é que não está sendo manifestações de acordo com interesses isolados. Eu estou vendo manifestações contra todo tipo de coisa. Hoje (quinta-feira, 1º), inclusive, vai rolar uma manifestação que acho que vai ser uma das mais importantes, às 17h30, que vai ser contra o sumiço do Amarildo, o morador da Rocinha. E eu acho que as autoridades mais importantes do que ficarem preocupados com os “vândalos”, em pôr mais segurança na rua, mais policiamento, muito importante é parar para refletir com humildade sobre a origem das indignações.

Tem que ver da onde está partindo a indignação e o que está sendo feito para que as pessoas fiquem tão indignadas. Acho que é esta reflexão que vai começar a acalmar os ânimos, do contrário, parece que a população já aprendeu a se utilizar do armamento povo e eu acho que não vai recuar, não. Estou desejando muita glória a quem está acordando agora, mas também vida longa a outras pessoas que nunca dormiram.

MV Bill e Emicida na Lapa, Rio

E o que você acha que a periferia tem a ensinar a quem está indignado?

Que a luta, que a luta já está no DNA há muito tempo. Existem pessoas que nunca dormiram, que nunca cochilaram para estas questões. Que é muito bacana ver  as pessoas acordando agora, mas existe um grupo de pessoas que nunca dormiu. E talvez essas pessoas que nunca dormiram possam ter muitas coisas que possam contribuir, não é, cara, para trazer para o meio dessas discussões.

Para encerrar, que dica você daria para um menino que um dia sonha em ser o MV Bill?

Caralho, man. Ser um rapper ou eu mesmo?

Ser um rapper de sucesso como você.

Porra, se for eu, ele tá fodido (ri).

Mas, o que eu digo direto para a molecada é que estude. Tenha bastante educação, estudo o máximo que você puder. Mesmo que você tenha como objetivo a música, ser um MC de rap, que seja um MC de rap com um nível superior, pô, com faculdade. Um MC de rap com faculdade de medicina, com faculdade de direito. Além de você ter uma garantia de um plano B, como o rap é uma música de palavras rápidas pra caralho, você precisa ser um conhecedor de palavras, com mais educação e mais estudo, o rap com certeza fica melhor composto.


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Rap e funk se tornaram opostos, diz MV Bill, que lança novo álbum ‘Monstrão’