Grupo paulistano formado por 11 músicos, o Aláfia une a tradição da música negra, de africanismos, cultura popular brasileira à revolução do hip hop, passando por funk, jazz, soul. E nesta terça-feira (10), eles chegam com sua banca ao palco do Sesc Pompeia, no projeto Prata da Casa, com entrada grátis, às 21h.

Ouça o disco do Aláfia

A apresentação marca o lançamento do primeiro disco deles, homônimo à banda, que sai pela YB Music. No palco estrarão os integrantes da banda Eduardo Brechó, Jairo Pereira, Xênia França, Lucas Cirillo, Alysson Bruno, Pipo Pegoraro, Gabriel Catanzaro, Gil Duarte, Filipe Vedolin e Fernando TRZ, sob direção artística de Roberta Estrela D’Alva e convidados que participaram do disco: Lurdez da Luz, Akins Kinté, Raphão Alafin e Lews Barbosa.

O Virgula Música entrevistou o vocalista, guitarrista e poeta Eduardo Brechó, por e-mail. Leia a seguir:

Quem são seus heróis musicais? 
 
Leci Brandão, Duke Ellignton, Pixinguinha, Wilson Batista, Charles Mingus, Max Roach, os caras do Mandrill, John Lennon, James Brown, Archie Shepp, Miles Davis, George Clinton, Jorge Ben, Abbey Lincoln, Tim Maia, Milton Nascimento, Fela Kuti, Itamar Assumpção, Moacir Santos, Paulinho da Viola, Mano Brown, KL Jay, Marku Ribas, Junie Morrison e Gilberto Gil.

Se sentem parte de uma cena?

Sim. Apesar de toda idiossincrasia, estamos ligados à produção de literatura periférica e a cultura de rua e à música de São Paulo.

Qual é a importância das trocas e da criação coletiva para vocês e para a atual geração?

A criação dos arranjos é coletiva. A feitura das canções, não. Aprendemos muito nesse tempo de banda com o bando. É gratificante ter oportunidade de tocarmos juntos. Nós fazemos questão de incluir e trazer pra perto artistas que nos identificamos no processo de criação. Poetas e músicos. Para somar e dividir. Destes exemplos de fora, destaco Lurdez da Luz. Nos ligamos muito no que ela escreve e ela é co-autora de três composições do disco.

Veja vídeo da Aláfia

Que outras bandas e artistas mais gostam, entre contemporâneos do Brasil?

Acompanhamos Racionais, Letieres Leite e Caetano Veloso bem de perto. Ouvimos bastante rap, jazz e música baiana. Gostamos do Bá Kimbuta e somos fã do Raphão Allafin.

Vocês têm referências como batuque de umbigada, partido alto, jongo e baile black, como conseguir coesão entre esses elementos?

Estes elementos da cultura negra citados estão bastante diluídos no nosso som. A coesão se dá através da reverência estética e política à questão ancestral. Como diria Mano Brown em Sô Função: “Há seis mil anos até pra plantar/ os preto dança todo mundo igual sem errar”.

Nós nos posicionamos juntos às tradições de resistência. A expressão da negritude – em países que passaram por situações escravagistas de extremo horror como o nosso – é afirmativa. O racismo atrasa o lado e a dificuldade impregna a linguagem.

Quando tratamos de África na diáspora não nos referimos mais ao continente e/ou uma cultura africana específica mas à raiz das centenas de povos que ascendemos e à sua vida antes do transplante transatlântico. É um não-lugar ao qual pertencemos também. É claro que há uma relação flutuante entre mito e realidade na compreensão desta África que também nos intriga e isto está colocado em “Mulher da Costa” – primeira faixa do álbum – em que perguntamos “quem pratica a África?” e respondemos que a “África é só teórica”.

Questionamo-nos e não ignoramos nossa ignorância sobre a realidade de um continente tão diverso e complexo. No nosso ponto de vista, a contradição da arte que se considera fruto da diáspora africana está posta e esta arte se torna mais interessante quando assume e encara esta contradição com responsabilidade. Um primeiro passo seria assumir que o vínculo que temos com a África é bem fantasioso e as alusões no disco não podem ser pretensiosas e/ou levianas. Pelo sangue. Teórica e praticamente.

De que maneira a cultura popular é importante para se conseguir fazer um funk/soul/pop brasileiro?

Falamos disso quando me referia à questão ancestral. É pertencimento. Acreditamos que quem está ligado de fato às tradições de seu povo se comunica em níveis mais profundos mesmo que tenha uma proposta estética mais radical e de vanguarda. Tim Maia e Jorge Ben são essenciais no sentido mais profundo do Brasil e mesmo quando falavam coisas que até então pouquíssima gente conhecia, tinham retorno positivo do público e são até hoje referências.

Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro a partir de outros contextos regionais também revolucionaram e foram bem recebidos. A tropicália é quase que fundada sobre isso. O que se chama de antropofagia cultural é mais ou menos o uso destas tradições espontânea ou propositadamente e o afrontamento ao tradicionalismo ortodoxo. A antropofagia é uma tradição também. A tradição é um contexto que não se escolhe e, por isso, não se nega completamente. Nos distanciamos de nós mesmos mas não o suficiente para reconhecer onde se esconde o atávico e fundamental e combatê-lo.

Qual é o conceito do álbum e como ele surgiu, antes, durante ou depois do processo?

O repertório do álbum nasceu principalmente e basicamente de um recorte pop baseado na extrapolação de pontos fundamentais da nossa cultura. Há uma proposta de narrativa no disco que procura tocar em temas existenciais de maneira sutil.

Há esta relação com um passado desconhecido, o amor romântico, o amor à música, a luta do dia a dia, o sexo, a tecnologia e a natureza falando sempre mais alto. O conceito do disco não são os mitos iorubás, mas isto está muito presente nas nossas músicas e letras. Digamos que a cosmovisão iorubá inspirou o recorte.
Tudo isso em São Paulo, esta cidade que nos abraça e nos trai tanto. Além do barato que tiramos, cantamos algumas mágoas que temos com esta terra também. Ou seja, questões primordiais enviesadas nas vielas da cidade. Isso no que se refere às canções.

Aláfia é a abertura de caminhos. E os caminhos não são exclusividades dos pés. São infinitas as possibilidades de abertura de caminhos num mato fechado. Caminhamos por ecossistemas e encontramos e reconhecemos as palmeiras, os bichos. Procurando a sombra do baobá, às vezes sentamos embaixo de uma paineira. Nosso limite existe. A cultura afro-brasileira é ciliar nestes caminhos que abrimos.

Sobre o som é meio que sobre a banda: nascemos com esta sonoridade. Os músicos que se juntaram para celebrar o Aláfia deram luz a este som. E esta é nossa voz. Como no galo e no adolescente, ela amadurece, mas está lá desde que é. Levamos para estúdio e lapidamos. Acrescentamos sonhos ao que acreditávamos ser o real.
O disco demorou muito por causa disso. Começamos a gravar em 2011 entusiasmados com o som que tirávamos nos shows e percebemos que dentro do estúdio, gravando separados, soaríamos outra coisa e que esta coisa poderia ser tão entusiasmante quanto a outra.

Então nos debruçamos sobre este som que nascia e exploramos bastante as possibilidades que o estúdio e a edição nos oferecia. A pulsão inicial dos arranjos e repertório, porém, foram o palco e a narrativa que apresentamos no espetáculo.

A música negra é muito rica, se tivesse que escolher cinco momentos e artistas no Brasil e no mundo, quem apontariam?

Consideramos negra principalmente a música que se coloca a despeito de um padrão branco. 

1. Ragtime e a força política do Jazz – Nos Estados Unidos, baseados nas tradições recentes afro-americanas, Scott Joplin é um artista cuja popularidade trouxe à tona uma problemática racial. O ragtime foi contestado brutalmente. Seus temas são demais. A produção “protojazzítica” da virada do século 19 para o 20 fortaleceu toda a safra posterior de músicos negros que lutariam pela liberdade individual e coletiva com Jazz em punho.

2. Choro de terreiro – Quase contemporâneo a Joplin, no Brasil, havia Pixinguinha. Pixinguinha é cria dos terreiros da Françáfrica e sua postura era de mil grau. É loco como sua inventividade melódica reforça a emoção dos seus temas que se tornaram os mais populares do Brasil. E o que chamamos de samba também tem seu fundamento ali. O filho de Ogum Bexiguento é muito principal na nossa cultura. Os eruditos pagam pau até hoje.

3. A África no Jazz – Max Roach é fundamental pra mim. O disco We Insist! com Abbey Lincoln e Charles Mingus, embora seja pouco conhecido, é uma obra prima que inspirada no Pan Africanismo trouxe a África para o centro dos argumentos do jazz na luta pelos direitos civis.Ter colocado a África aí fez muita música que amamos acontecer. Fez Archie Shepp. O jazz é um movimento político que deu força às palavras de Gil Scott Heron, Last Poets e ao rap consequentemente. Ainda ecoam no Hip Hop as palavras de Billie Holiday cantando Strange Fruit e os solos de Coltrane.

4. O nascimento do funk – James Brown fundou o funk como afirmação. Fez a devolutiva de carga pejorativa que o racismo imprime sobre a cultura negra com seus estereótipos e generalizações. James Brown, moleque rebelde criado nos campos de terebintina, gritava a história de um povo nos seus mantras. Lamento e júbilo nos grunhidos e movimentos cabulosos de dança. Fundiu a cuca dos caretas. Virou a mente dos jovens. Desconstruiu o acorde e acordou milhares. Encafifou quem até então sabia o que era música afro-americana e qual era a sua estrutura. James Brown é estrutural e influenciou George Clinton, Miles Davis, Stevie Wonder, Gilberto Gil, Racionais e até Fela Kuti (que embora africano se considerava black power man – e isso é também um fruto da diáspora). Enfim, James Brown influenciou a grande maioria dos artistas que nos influenciaram e amamos profundamente.

5. Consciência Black Vol.1 – Racionais com Pânico na Zona Sul. Todo mundo que viveu este momento considera um ponto de virada na noção do poder da música RAP e nas possibilidades de atuação do hip hop junto aos jovens da periferia das grandes cidades. Percebo nisso um paralelo com o momento em que a geração de MPB dos anos 60 ouviu Chega de Saudade do João Gilberto pela primeira vez. Revolucionário.


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Nova aposta da música negra, Aláfia lança disco e faz show no Sesc Pompeia