João Bosco lança o álbum de inéditas, “Boca cheia de frutas” (Foto: André Rola, João Ferro e Victor Correa)

Sobre sons de crianças, de pássaros, de vozes que parecem vir de florestas ancestrais das Américas e da África, João Bosco entoa repetidas vezes o canto yanomami: “waruku waruku waruku këëi moramakī waruku waruku waruku këëi” (“boca cheia, boca cheia, boca cheia, boca cheia de frutas, boca cheia, boca cheia”). São os últimos instantes de “Boca cheia de frutas”, disco de canções inéditas que o artista lança pela Som Livre hoje.

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Portanto, na sinfonia que entrelaça a terra e o humano, João amarra no último ato de seu álbum o sentido exposto no título: “Boca cheia de frutas”. O anúncio da fartura de cores e sabores, do que nasce do solo tornado alimento, do fim da fome e das fomes todas. Metáfora de futuro auspicioso, vindo não por acaso em língua indígena, num momento em que fica cada vez mais evidente que é dos povos originários que virá o adiamento do fim do mundo. A sabedoria de ver o futuro que a origem guarda. Sabedoria que o compositor desde sempre destila nas cordas de sua garganta e de seu violão.

Sua voz e seu instrumento, sábias de tempo na plenitude de seus 77 anos, são frutas que se apresentam na enorme boca do álbum. Assim como são frutas os legados de Aldir Blanc e Tom Jobim celebrados ali. Os orixás invocados. Os dinossauros do samba. O renascer após a ruína da alma. João Gilberto, fruto do Juazeiro. O bilhete de amor que podia ser pra você. A descrição da magia vulgar e da vulgaridade mágica do nascimento de uma canção. O cio da terra, eterno.

“Boca cheia de frutas” é, assim, um disco sobre o Brasil. O país da distopia de “O canto da Terra por um fio”, de rios asfixiados, da mata que arde. O país que se revela nos versos de “Buraco”, inspirados na história real do indígena que viveu isolado, morreu num buraco e “ao não se mostrar/ mostrou o Brasil”. O país da ausência, do vão. A boca sem nada, enfim — essa mesma que se projeta aqui cheia de frutas, boca farta que também é o Brasil. O país opulento que, no álbum e na mente do artista, se sobrepõe àquele outro, oco. No sonho de João, o vazio é berço da abundância.

FRUTAS

“Boca cheia de frutas” traz 11 faixas. Dez são composições inéditas de João: uma instrumental, que ele assina sozinho; sete escritas com Francisco Bosco, que é responsável com João, seu pai, pela concepção do álbum; uma parceria com Roque Ferreira; uma com Aldir, a partir de uma letra deixada pelo amigo; e uma releitura de “O cio da Terra”, clássico de Milton Nascimento e Chico Buarque.

“Dandara”, parceria de João e Roque Ferreira, abre o disco com o grave das percussões de Armando Marçal e Zero e do baixo de Guto Wirtti, como se brotando do profundo da terra. O violão do compositor e o piano de Cristóvão Bastos entram em seguida, adensando o ar e preparando para a chegada do canto sem palavras, fonemas de línguas de uma ancestralidade intuída, marca do artista ao longo de sua carreira. Canto que no disco aparece em muitos momentos, sempre com enorme expressividade, instaurando atmosferas.

“As vozes, muitas vezes, com seus fonemas, suas inflexões, elas te direcionam para um lugar. Um lugar onde a música vai acontecer”, reflete João. “Como num livro você tem um prefácio, como na vida você tem anúncios, elas funcionam assim”. O cantor mapeia suas referências: “Quando escuto grupos indígenas ou de países da África cantando, me emociono muito com os intervalos das notas. Aquilo te diz tanto sobre você e o seu passado, que você usa pra criar o seu futuro. É uma grande linha que se fecha”.

O lugar ao qual somos direcionados em “Dandara” é — como exposto nos versos de Roque Ferreira e na voz de João — “roça de Xangô de Obá Biyi”, espaço onde o narrador afirma: “canto Caymmi pra ninar”. Chão de João, enfim.

Em “Vir-a-ser”, de João e Francisco, o violão do artista, ao lado do baixo de Guto, da bateria de Kiko Freitas e do piano de Cristóvão refletem o caráter etéreo do tema: a canção que está para nascer, “uma esfinge de antemão”. Ecoando o título do álbum, a letra menciona “a grande boca” da canção que é ainda folha em branco, a boca que “nada confessa” ao compositor mas “nada esconde de ninguém”.

O processo de feitura de “Vir-a-ser” ilumina um tanto seu próprio assunto. Quando mandou a melodia para Francisco escrever os versos, João cantarolava no início “Poema dos olhos da amada”, poema de Vinicius de Moraes musicado por Paulo Soledade (“Ó, minha amada, que olhos os teus”). O primeiro verso de “Vir-a-ser” denuncia a referência: “Olhe nos olhos da canção”.

“Aquilo me lançou para uma tradição poética, que é aquela tradição viniciana, esse registro que fica na fronteira entre a tradição da letra da canção e a tradição da poesia brasileira”, conta Francisco. “O Vinicius é justamente a primeira pessoa a fazer essa dobradiça, entre a poesia e a canção. Então eu fui exatamente habitar essa dobradiça aí também. Ela é uma canção literária, com uma melodia que suporta esse peso”.

Lançada como primeiro single do disco, “O canto da Terra por um fio” é também parceria de João e Francisco. O canto isolado de uma arara anuncia a distopia da floresta destruída. Pela primeira vez no disco, aparece o verso da canção yanomami que imagina a boca cheia de frutas — manifesta naquele cenário de destruição como desejo-lamento, longínquo.

A letra evoca a cosmogonia yanomami — a relação umbilical entre humanidade e natureza, o sonho como lugar de comunicação com os ancestrais. Sobre esses versos, o canto de João é acompanhado apenas por seu violão e pelo violoncelo de Jaques Morelenbaum, num arranjo contundente e comovente em seu minimalismo. O arco sobre as cordas ecoando na madeira como que emula pelo avesso a serra que violenta o tronco.

João define a canção como “afro-indígena”: “Tem a pegada rítmica/harmônica afro e uma melodia que remete ao canto da floresta, ao campo, aos bichos, ao chão da terra e àqueles que a habitam”. Não é a primeira vez que João trafega nesse universo. “João do Pulo”, parceria sua com Aldir lançada em 1978, se refere ao personagem como “de sangue afro-tupi”. “É um caminhar na mesma linha, mas com um novo passo”.

“A questão indígena é fundamental para o mundo atual, e ela entra nesse disco como um traço da experiência contemporânea”, avalia Francisco. “É um disco de um artista que já tem uma história inteira por trás, mas que está vivendo o hoje, quer dialogar com o hoje”.

“E aí?”, parceria inédita de João e Aldir Blanc, é uma canção sobre desencontro, a partir de situações banais — o cumprimento não respondido, a visita que não chega. A história por trás da música é em si um desencontro.

“Acho que Aldir pensou que me mandou mas não mandou”, tenta entender o compositor. Ele decidiu, então, “corrigir” o desencontro e escreveu a melodia que ouvimos no disco. Guto, Kiko e Cristóvão conduzem com João o samba-bossa sereno. No início, um assovio guarda uma essência que sintetiza a beleza da amizade da dupla. “Penso na falta que me faz o Aldir. A sua não presença está na canção. O que é aquele assovio? Eu assovio como em ‘Vida noturna’, como em ‘Me dá a penúltima’, canções que ele adorava”.

Outro detalhe tocante do arranjo: o solo de piano cita “Tive sim”, de Cartola. João explica:

“Pedi isso para Cristóvão porque quando conheci Aldir, era uma das músicas que ele gostava que eu o acompanhasse. Toda festinha de violão que a gente ia, quando ele dizia pra mim “dó maior”, eu já sabia que era ‘Tive sim’. Então tudo nessa canção foi feito pra ele”.

“Dias que são assim”, de João e Francisco, captura aqueles momentos em que “um bicho espalha o lixo de nosso coração”. O instante em que a alma se quebra. A leveza flutuante da valsa-fox conduzida por João, Guto, Kiko e Cristóvão — e reforçada pelas cordas — contrasta com essa catástrofe existencial, mas ao mesmo tempo aponta para o renascimento do verso final: “Piso o carvão, recomeço a ser”.

Com produção musical de João e arranjos de base e de cordas assinados por Cristóvão — com exceção de “O canto da Terra por um fio”, no qual o arranjo é de Morelenbaum —, o álbum tem uma sonoridade que orbita naturalmente em torno do violão do compositor. João conta que batem em “Boca cheia de frutas” as ondas de um disco que vem ocupando sua mente e coração há décadas, desde que o ouvia em sua vitrola na juventude em Ouro Preto, mas que cresceu dentro dele mais especialmente nos últimos anos: “The composer of ‘Desafinado’ plays”, primeiro de Tom Jobim, de 1963.

“É uma pedra fundamental na música brasileira. Antes tinha vindo o Caymmi, em quem penso todo dia, o ‘Canções praieiras’, de 1954. Mas tudo isso em ‘The composer’ ganha uma madureza…”, define João. “Gosto dessa palavra, madureza, usada por Drummond, que indica que há um processo de procura, de dureza mesmo, de trabalho árduo, que depois se transforma em algo mágico. A ideia de que quando você está disposto a encontrar algo, pronto para receber isso, você trabalha duro nessa direção e de repente o sonho acontece. ‘The composer’ é isso. E, neste meu disco, ele é uma das frutas que eu trago”.

Há outras frutas depuradas em “Dinossauros da Candelária”, samba de João e Francisco no qual dialogam de maneira exuberante o violão de João e o violão de sete cordas de Rogério Caetano, que se bastam na faixa. A primeira dessas frutas é “Vai pro lado de lá”, de Candeia e Euclenes, citada já na abertura da canção — evocando Clementina de Jesus, que a canta num vídeo histórico da TV Tupi que pode ser visto no YouTube. A partir daí, se desenrola um samba carnavalesco de pés fincados num Catumbi mítico, com letra de mosaico trançado pela dupla, cruzando referências que incluem “Uva de caminhão”, de Assis Valente, e “Dois mil e índio”, de João e Aldir. Zeca Pagodinho e Martinho da Vila também são citados nos versos.

“Meu pai, Martinho e Zeca tinham marcado pra se encontrar pra fazer um samba”, conta Francisco. “Mas algo aconteceu e não houve o encontro. Por isso os versos ‘Era pra ter o Pagodinho/ Era pra ter o Odilê’ (referência ao compositor da Vila, parceiro de João em ‘Odilê, odilá’). Tem essa história aí dentro também. E tem a Dona Alba, mãe de santo do meu pai. Ele cantou o samba pra ela, e há ali um oriki de Oxossi. Ela ouviu e falou que estava bonito, mas que tínhamos que botar o olho de Oxossi, por isso a referência a ‘ojú odé’ (‘olhos de Oxossi’, em yorubá). Dona Alba é então parceira informal do samba”.

Do Catumbi, o disco nos leva para a Amazônia profunda. “Buraco”, mais uma parceria de João e Francisco, tem como personagem o indígena conhecido entre antropólogos como “Índio do Buraco” ou “Índio Tanaru”, que viveu isolado em Rondônia, recusando-se ao contato até sua morte em 2022, quando foi encontrado num buraco, paramentado como se esperando o fim.

Último sobrevivente de sua etnia, o personagem que aparece na canção materializa a dimensão do vazio do país, a boca sem frutas da nação. “Sem mundo, sem terra, sem povo, sem língua, sem nome, sem nada de si/ No oco buraco da História, em um tapiri”, dizem os versos, que mais à frente explicitam a metáfora: “Estóico viveu/ Estóico partiu/ E ao não se mostrar/ Mostrou o Brasil”.

O tom ao mesmo tempo solene e solar, de lamento e denúncia, é construído pelo violão de João, o baixo de Guto, a bateria de Kiko e o piano de Cristóvão. Os vocais do cantor no início e no fim a elevam e a ligam ainda mais ao chão trágico e transcendental.

“SobreTom”, faixa instrumental em compasso ternário que João fez em tributo a Tom Jobim, nos leva de volta ao Brasil da beleza em abundância. Estão com ele no arranjo — além de Guto, Kiko e Cristóvão — a flautista Andrea Ernest Dias e o trombonista Everson Moraes, ao lado de violinos, violas e violoncelos. O formato faz referência direta à sonoridade de “The composer of ‘Desafinado’ plays”. “Como naquele disco, o violão faz a parte harmônica, o piano só faz a melodia, o baixo é acústico, o trombone é aquele, a flauta é aquela”, explica o compositor.

Já “Samba sonhado”, faixa seguinte, tem como modelo a estrutura das gravações de João Gilberto, citado na letra como “fruto benfazejo que um Juazeiro dá”. “Tem uma introdução de cordas, depois a canção cantada só com cordas, voz e violão, por fim a percussão e bateria entrando apenas na repetição… Uma coisa que o João fez muitas vezes”, detalha Francisco, parceiro de João na canção.

Na companhia de Guto, Kiko, Cristóvão, Marçal e Zero, além das cordas, João canta com graça joãogilbertiana a agonia contemporânea da insônia (“Mas deito em vão/ O céu se fecha e os olhos não/ Cristais de telas vêm/ Desassossegos vêm/ E o sono passa como um trem”). O antídoto é exatamente essa fruta brasileira, o samba sonhado que o filho de Juazeiro lançou no mundo — irmão do sonho yanomami, outro terreno de ancestralidade que já havia se mostrado no álbum.

Aldir é lembrado novamente em “Gurufim”, homenagem composta por João e Francisco. A palavra gurufim designa o ritual tradicional do universo do samba — um velório no qual se canta e dança para se celebrar o morto. “Aldir morreu em 2020, na pandemia, e não pudemos nos despedir dele”, lembra João. “‘Gurufim’ é então uma espécie de despedida com atraso, mas da forma que ele merecia”.

A letra — cantada por João sozinho, acompanhado apenas de seu violão — parte da saudade de Aldir despertada pelo grito de um vizinho, vascaíno como o letrista, “reclamando um toque de mão”. Francisco assumiu a tarefa delicada de encontrar palavras que dessem conta do sentimento do pai pelo amigo: “Ele gostou muito, mas corrigiu um ou outro verso: ‘Isso aqui tá um pouco emotivo demais, Aldir não ia gostar’”. Ajustes que testemunham a intimidade de amigos que se (re)conhecem.

Introduzida por mais um canto de língua sonhada por João, “O cio da Terra”, de Milton Nascimento e Chico Buarque, encerra “Boca cheia de frutas” encerrando em si a síntese do chão fértil no qual o disco se sustenta. A sabedoria de conhecer o desejo da terra, respeitá-lo e colher o fruto que vem daí, as frutas que enchem a boca do futuro.

A canção se ergue sobre o violão de João, o baixo de Guto, o piano e o teclado de Cristóvão e a bateria de Kiko. Em sua parte final, se juntam aos instrumentos as vozes das crianças, os pássaros, os cantos mencionados na abertura deste texto. “Nada anuncia mais o futuro do que a euforia das crianças saindo da escola. É a vida ali”, diz João. “Note que lá em ‘O canto da Terra por um fio’ tem uma arara que canta. Mas ali é um grito de socorro, trágico. Em ‘O cio da Terra’, aquela arara se junta aos tucanos, ao sabiá, aos outros pássaros que existem dentro de uma floresta saudável, viçosa, inteira… e todos se juntam às crianças, porque elas são a mesma coisa, elas também são pássaros”.

Quando retoma aí o canto yanomami que anuncia a “boca cheia de frutas” que já havia mostrado em ‘O canto da Terra por um fio’, é como se João recuperasse aquelas palavras noutra dimensão. Numa terra fecundada. “Boca cheia de frutas”, o álbum, é semente e produto desse solo sonhado e, portanto, real.


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João Bosco lança o álbum de inéditas, "Boca cheia de frutas"

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