Reprodução/Facebook Formação atual das Mercenárias

Em meio ao movimento pós-punk brasileiro, que revelou nomes como Ira!, TitãsAkira S, Fellini, Gang 90 e Voluntários da Pátria, entre outros, um grupo de mulheres se destacou. Eram As Mercenárias, que completaram 30 anos em 2013 e fizeram shows comemorativos para uma plateia dividida entre o saudosismo e a novidade.

Décadas após os anos 1980, bandas do new wave brasileiro seguem idolatradas por fãs de música pelo mundo. Em 2005, o selo inglês Soul Jazz lançou a coletânea, Sexual Life of The Savages. “Eu tinha a impressão que o Brasil estava dez anos atrasado, agora eu estou achando que está 30 anos atrasado”, detonou Sandra Coutinho, a baixista das Mercenárias, em uma longa entrevista, de 30 minutos, por telefone ao Virgula Música.

Sandra, que agora aposta suas fichas no projeto Jack & Fancy, com o amigo de longa data Clemente (Inocentes, Plebe Rude), contou ter um respeitável baú com músicas feitas no período em que morou 14 anos na Europa e dos últimos dez que passou no Brasil. As composições vão de música eletrônica, ambient, experimental a canções cantadas em português, inglês e francês.

“Tenho um repertório de 24 anos que nunca ninguém escutou. Eu fiz um trabalho solo na Alemanha que ninguém faz ideia do que eu faço. E isso já está ficando, para mim, desatualizado, e aqui nunca ninguém viu. Na época que eu cheguei na Alemanha, eu fazia música eletrônica, que aqui nunca ninguém imagina que eu fiz lá. Para mim já está desatualizado. E, para mim, ou eu me atualizo ou eu vou plantar mandioca”, ironiza.

Leia a conversa a seguir, em que ela fala, entre outros assuntos, sobre seu papel nas Mercenárias, as dificuldades de se fazer música experimental no Brasil, e a rejeição ao feminismo, sempre com muita franqueza e sem fazer média com nada nem ninguém.

Eu queria que você começasse falando sobre a sua formação musical. Eu assisti a um vídeo antigo seu, o Perdidos na Noite, do Fausto Silva, e lá vocês falam que você é a única nas Mercenárias que estudou, com formação erudita, inclusive…

É, o que aconteceu é que eu estudei piano. Bastante tempo, mas não como uma excelente aluna de piano. Então, quer dizer, eu sou uma pessoa que sei ler nota… Teve um momento que eu parei de estudar, passou um tempo e tal, e quando eu estava na universidade, eu resolvi voltar. Daí eu fui para uma escola em São Caetano e lá eu também tive aula de harmonia de jazz, contraponto. Aí eu voltei a largar de novo.

Então, eu tenho um conhecimento, mas não assim de poder falar da história da música clássica e tal.

Mas isso te ajudou a compor as músicas das Mercenárias?

Não. Não tem nada a ver porque. Eu acho que tem uma coisa que é natural da pessoa. É lógico que eu não posso negar um pouco que eu tenho de conhecimento de música. Paralelamente, eu venho de uma família musical. Meu avô, que eu não conheci, era maestro, em um certo sentido, ele tinha um caderno de valsas que ele escreveu, tocava violino.

Ele obrigou, não com um chicote, mas quase com um chicote, os nove filhos a aprender instrumento. Toda a minha infância, eu convivi com um tipo de farol familiar, o que já me trouxe uma musicalidade.

Então, acho que no momento que a gente montou a banda, ficou naturalmente nas minhas mãos, o momento de diretora musical. Eu era aquela que pescava todos os elementos que iam aparecendo em nossos ensaios e improvisações e montava aquilo.

Eu juntava aquelas inspirações e aquelas inspeções de cada pessoa, que estava lá naquele momento. Devido a essa minha tradição musical infantil, e sei lá, um talento natural, eu sou responsável por toda uma organização composicional e de arranjo. Mas não que eu tenha em algum momento, ah, isso é contraponto, X, Y ou Z. Isso aí eu nunca usei.

Tudo saiu de uma forma bastante visceral e de inspiração mesmo. Não composicional, a ponto de escrever no papel.

Porque você acha que tem um estigma com a música punk, pós-punk, de que os músicos não precisam saber tocar?

Eu acho que isso é uma desculpa. Eu acho que grupos bons, de punk, do que for, as pessoas tem que saber tocar bem aquilo que se propõe a fazer. Em termos mais complexos, de teoria musical, se eles têm um conceito, se o conceito for tocar só dois acordes, ele tem que tocar bem esses dois acordes, ele tem que fazer esses dois acordes soar bem. A corda tem que vibrar bem.

Eu acho que teve na história, aqueles bem toscos, bem tosqueira. Que faz parte do conceito. Na minha opinião, eu acho que mesmo que você escolha um estilo para você evoluir nesse estilo, você tem que se interessar por muitas coisas e se interessar por muitos coisas, mesmo que você diga, eu não quero, não gosto disso.

Eu escuto muita coisa. Aliás, eu escuto menos rock que outras coisas. Nem escuto rock, principalmente, ultimamente. Escuto às vezes coisas que aparecem e que não me interessam, não me interessam porque não trazem nada de novo. Eu acho que eu própria para evoluir no que eu faço, aliás eu acho que eu estou muito atrasado, eu deveria estudar muito mais e até para produzir as minhas próprias coisas.

Tem algum som que você ouvia na época das Mercenárias que você continua ouvindo hoje em dia?

Ah, não, viu? Não. Pode ser que eventualmente eu escute, mas eu escuto um pouquinho e passo para frente. Porque não me diz mais muita coisa.

Tem um movimento rolando de resgate do pós-punk brasileiro, inclusive o selo inglês Soul Jazz lançou uma coletânea, Sexual Life of The Savages, com grupos como Mercenárias, Akira S, Fellini, Gang 90. Porque você acha que o Brasil ainda não descobriu como esse movimento foi de vanguarda?

Para eles meio que passou o momento. Acho que desde aquela época, no Brasil tudo é muito ligado ao retorno financeiro. Como tudo aqui funciona, sabe? É um bando de gente meio burra. Você sabe como é que tudo funciona aqui, não é? Como os governantes funcionam. Eles não veem o Brasil como uma pátria que deve se desenvolver e blábláblá. Não, eles pensam em si.

Eu acho que da mesma forma, se movimenta o mercado cultural, mesmo naquela época. Então, naquela época na Europa e tal, os caras entravam com mais paixão pela arte. Investiam no conceito da coisa com conceito. Os produtores investiam em uma ideia. Eles se apaixonavam e dava certo. Porque uma coisa bem feita, dá certo. Não precisa achar que não tem público. Se você fizer o negócio bem feito, com tempo dá certo. E dá mais certo e perdura na história, mais que uma coisa mais fácil, que ganha uma puta grana, e, de repente,  é esquecida. Tudo bem, você ganha uma puta grana.

Então, acho que aqui nunca teve essa mentalidade, as gravadoras. Nunca tive e nem tem essa mentalidade hoje em dia. Nem sei como funciona hoje em dia, funciona pelas redes sociais e tal. E meio que fica um pouco na moda, imita um pouco a vanguarda da Europa. Às vezes, eu tinha a impressão que o Brasil estava dez anos atrasado, agora eu estou achando que está 30 anos atrasado.

Pelo menos do que eu vejo porque eu morei 14 anos fora e agora acabei de fazer uma viagens também. Eu cheguei aqui e estou completamente deprimida, no buraco. Porque aqui é tudo tarde, aqui não tem nem acesso à tecnologia, as coisas acabam sendo mal feitas. Você tem a intenção de fazer arte multimídia, é meio difícil você conseguir fazer uma boa instalação, fazer uma boa projeção.

Não tem nem qualidade técnica. Se você quer misturar sei lá, bases eletrônicas com isso, tem problemas acústicos. Sei lá, eu vejo assim. Então, é difícil um conceito dar certo e estar no pé que as coisas chegam na Europa.

Que lá também é o berço do experimentalismo, aqui pouca gente se arrisca. Essa é a minha opinião. Eu nem lembro a pergunta que você fez para mim…

Sandra, vocês das Mercenárias, estão fazendo 30 anos este ano. Quem daquela época  você considera que permanece relevante hoje?

Acho que todo mundo daquela época fez história e teve a sua originalidade. Todo mundo. Todas as bandas, desde as que eram chamadas na época de new wave, punks, pós-punks. Todas as bandas que surgiram na década de 1980, tinham a sua personalidade, originalidade e sua paixão.

A impressão que eu tenho é que na época a gente não fez nada para ganhar dinheiro, sabe? Era uma coisa tão ingênua, no sentido bonito da ingenuidade, de tocar mesmo. Queria fazer a coisa legal.

Então, quando hoje em dia eu escuto, ou eu vejo aqueles que ainda estão na estrada, eu fico emocionada porque eu vejo que eram composições muito legais, hits. Sabe assim, sei lá, quando você vê o Inocentes hoje em dia, sei lá, todas as bandas da época, você vê que, nossa, tudo era uma coisa bem legal, composicional, de temas, refrão. E sempre um exemplo sólido para as gerações.

Vamos citar os nomes, que bandas você poderia citar?

Desde as mais famosas, tipo um Ira!, Inocentes, Cólera, outras que eu não lembro o nome, tinha a gente, como chama a do Miguel Barella que o Nazi chegou a cantar? (Voluntários da Pátria), o Zero, tinha tanta banda naquela época. Cada uma tinha um estilo diferente da outra. Existiam as Garotas do Centro, sei lá, os Titãs no comecinho. Acho que eles tiveram toda uma trajetória. Gang 90. Enfim, acho que todo mundo. Aquele pessoal da época.

E comparando com hoje em dia, mudou muito? Piorou, ficou mais difícil ser artista independente?

Existiu uma época que eu não estava aqui no país, estava fora. E lá fora começou toda essa história de computador, de DJ, de programações, loops, a chamada música eletrônica, que eu acho que é erroneamente chamada de música eletrônica. Porque música eletrônica , basicamente, é composicional, vem de uma outra vertente, que é a música clássica, que é uma coisa muito mais instrumental, mexendo com timbre, tal.

Essa música eletrônica, assim denominada, na minha opinião, é uma música mais preguiçosa, porque pega um monte de pedaço, vai emendando. Geralmente é monotônica, não tem mudança harmônica porque é muito trabalhoso fazer isso no computador e geralmente as pessoas nem tem essa intenção.

Então, isso daí deu uma empobrecida na história. Inclusive, lá na Europa o que aconteceu e aqui também, teve muita gente que não conseguiu mais tocar porque as bandas grandes teve que reduzir elementos porque o DJ começou a entrar na parada e era mais fácil pagar um DJ que pagar uma banda para colocar em um bar, num clube, etc.

Eu acho que o avanço dessa tecnologia, tem o seu lado positivo, mas o lado negativo é que todo mundo acha que pode fazer tudo sozinho.

Então, hoje em dia eu acho que é superfácil produzir. Lógico, que não é tão fácil assim, você gasta uma puta grana, mas as pessoas tem mais acesso a ter um estúdio em casa e isso muda um pouco porque é um bombardeio de coisas e aparece mais quem fica 24 horas na internet, fazendo amizade e tal. Parece que mudou um pouco. Quer dizer, já era difícil aparecer a qualidade artística, agora o trampo agora é mais de relações pública que a feitura…

Você se inspira em modelos musicais femininos ou é uma coisa sua mesmo?

Eu posso ter admiração, mas não é uma coisa… Por exemplo, eu gosto da PJ Harvey, acho que ela tem um trabalho de valor, gosto da forma que ela trabalha o repertório, não é sempre igual uma música da outra, mas não tem nada a ver comigo. Simplesmente, eu vejo que ela tem qualidade.

Ou então a Bjork, mas também acho interessante, mas não é uma coisa que eu me vejo representada por estas artistas. Para mim mesmo eu tenho mais a busca da minha identidade, meu caminho.

Que público você espera encontrar quando vai fazer um show?

Essa é uma pergunta meio esquisita porque se eu vou tocar no palco do rock do Carnaval de Salvador, é lógico que eu vou encontrar um monte de roqueiro. E vou encontrar também o público jovem. É meio que, depende.

Eu acho que para as Mercenárias hoje em dia, que eu acho que também para mim meio que já encerrou o assunto. Até então, que teve nos últimos anos essa tentativa de divulgar o trabalho de 30 anos atrás. O público que foi sendo encontrado era tanto as pessoas que iam ver na época, quando muita gente novo, como o filho do filho do filho, que juntava três, quatro gerações.

Eu sempre tenho a expectativa de ter muita gente. E pronto. Ter um som legal e fazer um bom show. É a intenção.

E quais são seus próximos passos, as Mercenárias vão continuar tocando, ou você vai lançar um trabalho solo?

Ó, eu acho que das Mercenárias é pouco provável, da minha parte. Eu teria agora que investir em outras fases, que seria regravar as coisas que não foram regravadas, tal, isso tudo demanda muito tempo e investimento e eu acho que a minha tentativa agora é me atualizar comigo e com público.

Que eu fiquei 14 anos fora, voltei faz dez anos, eu tenho um repertório de 24 anos que nunca ninguém escutou. Eu fiz um trabalho solo na Alemanha que ninguém faz ideia do que eu faço. E isso já está ficando, para mim, desatualizado, e aqui nunca ninguém viu.

Na época que eu cheguei na Alemanha, eu fazia música eletrônica, que aqui nunca ninguém imagina que eu fiz lá. Para mim já está desatualizado. E, para mim, ou eu me atualizo ou eu vou plantar mandioca.

É cantado em inglês?

Olha, eu tenho músicas em inglês, francês, português, tenho coisas que eu fiz para trilhas, composições que eu fiz para dança-teatro, na Alemanha, coisas bem experimentais. Aqui também eu fiz composições para dança-teatro. Eu tenho um lado até de compositora de ambient, experimental, que nunca ninguém faz ideia.

E canções, mais canções básicas e coisas bastante esquisitas, que é a minha cara. Eu tenho um lado que vai mais nessa linha de algumas coisas das Mercenárias mais esquisitonas. E, quer dizer, isso que eu estou enroscada ultimamente.

E eu tenho também um trabalho com o Clemente (Nascimento, do Inocentes, Plebe Rude), que está aí há quase três anos, a gente não consegue fazer ir para frente. É uma dupla. Eu acho que em breve a gente vai conseguir lançar um clipe, chama Jack & Fancy.

A gente tem um repertório já grande.  A gente já tocou, há uns dois, três anos, a gente fez os bares do Augusta. E a gente tem as músicas já gravadas, basicamente, três que já estão mais riscadas e uma que a gente quer lançar. A gente fica querendo fazer isso, que é um trabalho bem legal, meu e dele. Tem umas músicas bem legais.

É um rock, mas cada canção é bem diferente uma da outra. A gente canta os dois. Ele também faz umas guitarras que ele não faz nos outros trabalhos dele. Ele canta com o Plebe Rude e com os Inocentes, uma guitarra mais básica mesmo. Mas comigo já sai uma outra história musical.

É meio que essa a intenção, botar esse negócio pra frente e tentar lançar meu solo. Ou então eu me aposento.

Sandra, você é um ícone feminino, muitas meninas começaram a tocar vendo você na TV. Ouvindo seus discos e tal. Você acha que o feminismo interfere na música que você faz? Está refletido lá?  

Ah, eu não tenho nada a ver com feminista.

É mesmo?

Eu nunca levantei nenhuma bandeira, lutei por direitos, nunca fiz nada disso. Não tenho a mínima intenção… Aliás, acho que quem quiser fazer, faz, quem quiser gritar, grita, mas particularmente, acho que a questão não está nas minorias, mas sim na vontade de achar a coerências das pessoas viverem bem uma sociedade com estilos diferentes.

É lógico que quem trabalha tem que ganhar o mesmo que o outro, tem injustiça. Mas também acho que nem todo mundo se faz de vítima. Quem quer ser dona de casa, é dona de casa, mas dá trabalho. Cada um que converse com o marido e se entenda com ele.

Sei lá, é que nem assim coisa de país. Que a outra quer usar pano na cabeça, quer se depilar ou não. Eu não vou agora lá para brigar pela outra lá, de um costume que eu não sei nem como funciona. Cada um tem um história de vida, uma tradição, que é difícil você achar que é certo ou errado.

Eu nunca fiquei achando isso e aquilo. É lógico que tem facilidades e dificuldades. Ah, as vezes você está lá tocando um baixo e o cara acha que você não sabe nada. Paciência, se ele acha problema é dele. Agora, eu não vou ficar brigando com o cara, xingando ele. Quem me reprime, afinal de contas, não é nem ele, sou eu mesma.

Tem muita coisa que é a cabeça da gente mesmo. A gente acaba se defendendo achando que o cara acha isso de mim. Então, é meio perigoso esses negócios aí e eu também nunca levantei bandeira, não.

Mas você acha que seu trabalho abriu caminho para que outras meninas surgissem tocando?

Acho que é bem provável. A questão que eu acho é assim. Quem se interessa por fazer a coisa, tem que fazer. Homem, mulher, seja lá quem for, tem que fazer. E lógico que uma pessoa que faz na sua frente, te dá um estímulo. Dá um incentivo.

Então, se eu dei minha cara para bater, fui lá e peguei um baixo e saí tocando. Eu tive a minha coragem. Se a pessoa viu lá: “Olha, ela pode fazer, ela é corajosa, eu também posso ir lá fazer”. Então, é legal, é um incentivo.

Sempre que você faz, você serve de exemplo e você encoraja as pessoas a também levarem a cabo, aquilo que de repente está pulsando no coração delas.


int(1)

"Dei minha cara pra bater, fui lá e peguei um baixo e saí tocando. Tive minha coragem", diz Sandra Coutinho, das Mercenárias

Sair da versão mobile