Caetano Veloso já disse que Milton Nascimento é um movimento, assim como existe o tropicalismo, a bossa nova e o hip hop, existe Milton Nascimento. A verdade, no entanto, é que o músico que completa 50 anos de carreira com o CD e DVD ao vivo Uma Travessia, é o nome mais conhecido do Clube da Esquina, cena mineira que revelou nomes como Tavinho Moura, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Toninho Horta e os integrantes do 14 BisFlávio e Cláudio Venturini, Hely Rodrigues, Vermelho e Sérgio Magrão.

Em entrevista coletiva no hotel Emiliano, em São Paulo, na quinta-feira (29), Bituca, como é chamado entre amigos, fez jus ao hit Canção da América e enalteceu a amizade. “Quando comecei a compor, me baseei muito na minha família. Para eles, a coisa mais importante do mundo é a amizade. E eu falei que eu só ia compor com coisas que eu acreditasse e baseado na amizade”, afirmou o músico. Wagner Tiso e Lô Borges participaram do novo trabalho.

Milton contou ainda detalhes de como fez o álbum Clube da Esquina, que completa 40 anos em 2013, os bastidores de hits como Canção da América e Coração de Estudante e ainda que tem 136 afilhados e gosta de compor em meio à bagunça das crianças. “Quando vou compor, tenho uma maneira diferente dos meus amigos compositores. Eu não gosto de ficar sozinho, não gosto de silêncio”, afirmou, antes de completar. “Eu prefiro época de férias, o pessoal vem, nem me pergunta se pode, mas vem. Aí eu vou para um canto e começo a compor e tal, alguns me ajudam.”

Idolatrado por artistas internacionais como Earth, Wind and FireBjork, Duran Duran, Wayne Shorter, Hebie Hancock e Carlos Santana, Milton falou longamente com a imprensa quinta-feira (29), no hotel Emiliano, quando contou “causos” que revelaram seu lado “bruxo”. Leia os melhores trechos, selecionados pelo Virgula Música.

DESCOBERTA PELOS JOVENS

É uma coisa interessante porque o fato das minhas músicas, eu, meus colegas e tudo, estar sempre fazendo coisas, e é uma maravilha. É um negócio tão bonito que esses dias eu fui numa cidade do interior de Minas e tinha um garotinho de seis anos, que queria tirar um retrato comigo. Aí, o primo dele falou: “Não vai tirar, não, porque você não conhece nenhuma música dele”. O menino começou a cantar Maria, Maria inteira. Com seis anos.

Aí, ele falou: “Não está legal, tinha que dançar também”. E começou a dançar também. Aí me contaram. E ele foi na casa que eu tava eu falei: “É você que quer tirar retrato comigo?”. Ele falou: “É”. “Mas não vai tirar, não”. “Você não sabe música minha”. Eu sabia que ele sabia. Aí, cantou a Maria, Maria, com uma letra que ele também inventou. E eu falei: “E a dança?”. Mas dançou maravilhosamente.

Aí, você vai em um lugar, tem a rapaziada toda. O negócio de música, isso não tem idade não. Você tem que gostar e acabou. Eu não me meto numa dessas não. Acontece que não é só aqui no Brasil que o pessoal chega e vê a garotada na plateia. Isso é no mundo inteiro. Por exemplo, na Noruega, um garoto escreveu que queria cantar comigo. Eu falei, ótimo, só preciso conhecer o rapaz, a voz, pra gente poder fazer alguma coisa. E o rapaz é fantástico. Teve um filme que passou, não vou lembrar o nome, com a música dele, bem novinho, e a gente fez um show e depois uma entrevista andando pela rua da cidade onde a gente estava. E eu vi uma catedral de 1100. Eu olhei a catedral, mas que coisa mais linda, que vontade de cantar aí dentro. Aí, fomos andando, andando, eles viraram a esquina, entraram na catedral e disseram: “É aqui que vocês vão cantar”.

Mas não tem idade, não. Música não tem idade, não mesmo. Nem eu tenho idade.

CRIANÇAS

Eu, quando vou compor, eu tenho uma maneira diferente dos meus amigos compositores. Eu não gosto de ficar sozinho, não gosto de silêncio. Eu tenho 136 afilhados, de batismo, fora umas tartarugas que eu andei batizando.  

Eu não sabia, me chamaram para levar tartarugas de três dias para o mar. E quando eu vi foram 400 tartarugas e eu não sabia que quem joga a tartaruga no mar vira padrinho delas, o que eu vou fazer?

Então, voltando, eu prefiro época de férias, o pessoal vem, nem me pergunta se pode, mas vem. Aí eu vou para um canto e começo a compor e tal, alguns me ajudam. Acho que é isso, não tem alguma coisa muito especial não. Quer dizer, tem, não é?

MÚSICA E MISTICISMO

Quando eu apareci, eu fui criado na religião católica, em Três Pontas, mas aí um dia eu fui com um amigo, que me pediu para levar umas balas e uns doces para um centro espírita, que era dia de São Cosme e Damião, para as crianças. Aí eu fui e cheguei lá, uma entidade veio conversar comigo. Isso foi aqui em São Paulo.

 A entidade veio falar comigo, eu não querendo muito, fiquei meio assim. Porque as pessoas lá do centro disseram: “Hoje não tem consulta”. O Pai João veio brincar com as crianças, eu, “graças a Deus”. Aí quando veio, eu tava na porta, ele veio botou a mão aqui, fez assim, para eu ir para um sala. Ele disse, você não pode ser triste do jeito que você é, que tem muita gente que vai precisar de você.

E falou você, é o seguinte. Daqui a três meses vai acontecer uma coisa que nem você vai acreditar. Bom, três meses depois, eu estava no Maracanãzinho cantando Travessia. Aí, teve uma época que eu tive um problema na cabeça, aí foi a primeira vez que eu mexi com pessoal do candomblé, que a Nana Caymi me receitou lá, foi um negócio muito bonito. Aí, foi numa cachoeira, ela botou uma porção de velas, eu adoro velas, uma comida para santo e falou, está tudo certo com você e tal.

E tem uma coisa que eu esqueci de falar, no centro eles falaram assim, você nunca fuja que você vai ter um centro. Mas eu pensava, como é que eu vou ter centro? Eu estava brigado até para religião católica. Aí, quando a mãe de santo falou para eu não fugir que eu ia ter um terreiro, eu pensei a mesma coisa.

E aí começou aquele negócio de viajar com os estudantes e tal. Aí aconteceu uma coisa, numa cidade pequena, daquelas que eles nem pensam que algum dia um artista vai lá. E tinha um ginasiozinho assim e eu cantei, eles cantaram comigo, tudo. Contrariando o pessoal que dizia que as minhas músicas não servem para nada, que o pessoal não ia entender.

Aí, de repente, começou uma luz amarela assim na plateia e eu olhando aquilo, olhando, olhando. Olhava assim para o olho das pessoas, estava brilhando. Aí, quando acabou, eu encostei na parede e falei, poxa, como é  que eu posso ser tão burro. O meu centro, o meu terreiro, e também meu sacrário, é o palco. E, a partir daí, a coisa mais importante da minha vida é o palco. É chegar no palco, o pessoal me suspende.

CLUBE DA ESQUINA

Quando eu estava acabando de fazer o curso de contabilidade, eu falei com os meus pais que eu estava indo embora de Três Pontas, para viver com exclusividade só de música. Aí, meu pai falou assim: “Eu se fosse você, estudava alguma coisa porque música não é só questão de talento. É sorte também.

Eu concordei com ele, então fui para Belo Horizonte, mas eu queria estudar astronomia, só que lá não tinha faculdade de astronomia. E eu fui fazer um outro curso lá, estava eu e o Márcio Borges, fomos lá na faculdade, peguei os papéis, subimos uma rua lá. Uma hora eu olhei para o Márcio e perguntei: “Você tem um fósforo aí?”. Aí, ele falou tem, mas ele deve ter pensado, o que que o Bituca está querendo, ele não fuma. Eu falei, me empresta aí. Eu peguei, acendi, botei fogo na papelada, aí começamos a gritar no meio da rua: “Viva a música, viva a música”. E aí fomos para o bar, acho que ficamos dois dias dentro do bar (risos).

E aí a coisa minha de música mesmo foi que eu gostava de cantar, tocar contrabaixo, piano e violão, mas não gostava de compor porque eu queria tentar fazer arranjos de música dos outros e nada parecido com ninguém.

Aí, Márcio depois de seis meses me convenceu. Me levou para assistir um filme chamado Jules e Jim, do François Truffaut. E a gente entrou na sessão de duas e saímos depois da sessão de dez. Aí, estávamos andando assim, eu falei: “Marcinho, vamos lá para sua casa, e vamos começar a compor”. Ele pegou um caderno, eu um violão e fizemos três músicas e fomos fazendo, fazendo, fazendo.

São onze irmãos lá e tinha o Lô, que naquela época devia ter 10 anos e ele tinha um grupo com um irmão dele, bom de música também, o Beto Guedes e outro que eu não lembro o nome. E eu ficava olhando assim, aquelas coisas com a musicalidade incrível e ficava lá.

Foi passando o tempo e um dia a mãe dele pediu para ir comprar um pão na padaria. A gente morava num edifício, ele saiu do apartamento, ouviu minha voz e ficou lá, esqueceu de tudo. E quando voltou foi aquele bafáfá dentro de casa.

Aí, bom, teve um DVD que eu perguntei para ele: Qual que você gostou mais, do Bituca ou do músico. Ele falou, ah, dois dois. Eu falei, então tá. Passou um tempo na minha vida, aconteceu tudo, eu mudei para o Rio. Mas eu sempre ia na casa dos Borges, em Santa Teresa, lá em Belo Horizonte. Aí, um dia eu cheguei lá, estava a casa toda aberta e ninguém lá.

Aí, andei, tal, quando eu estava saindo, o Lô estava chegando. Eu disse: “Que bom que você chegou, vamos ali no botequinho ali embaixo, eu tomo uma batida de limão, você toma um guaraná”. Descemos. Aí, chegamos lá, eu falei com o dono do bar, me vê uma batida de limão para mim e o Lô falou assim: “E outra para mim”. E recebeu aquela olhar que dizem que é o 43. Mas não valeu de nada o meu olhar. Ficamos conversando até que ele falou: “Bituca, o negócio é o seguinte, eu adoro você, suas músicas, sou louco com tudo, mas eu tenho um negócio para reclamar”. Eu falei: “Mas o quê”. E ele: “Vocês (eu e os nossos amigos) não gostam de mim”. Eu falei: “Que isso, como é que você fala uma coisa dessa”. E ele: “É, vocês saem de noite, vão para mil lugares e nunca me chamaram para ir com vocês”.

Aí, eu olhei bem para ele e falei: “Lô, sabe de uma coisa, sabe quando que eu descobri que você não é mais criança? Quando você pediu a batida de limão, agora”. Ficamos conversando e ele disse: “Eu tenho umas coisas que eu faço assim, mas não são músicas intereiras, são pedaços de músicas. Você quer ouvir alguma coisa?“. Eu falei: “Quero, vamos lá”.

Fomos para casa dele e ele começou a tocar umas coisas lindas e teve uma hora que ele começou a tocar um lance que eu peguei um outro violão. E eu tenho uma mania que quando eu gosto de ouvir, de fazer coisa, eu abaixo a cabeça e fui tocando uma coisa em cima da harmonia dele. E quando eu levantei minha cabeça, estava a mãe dele na porta chorando e o Marcinho escrevendo uma letra. Foi a primeira música que a gente fez e se chama Clube da Esquina.

E, depois, a partir desse dia, ele começou a compor uma música atrás da outra, uma mais bonita do que a outra e parecia que fazia para mim. Então, eu falei Lô, vamos para o Rio. Foi aquela confusão porque a mãe dele não queria que ele fosse para o Rio, que ele era muito novo. E eu falei, mas vai. E levei o Lô para o Rio.

Aí, ficamos lá, sempre fazendo aquelas coisas. Um dia eu lembrei do Beto Guedes e falei: “Lô, vamos chamar o Beto Guedes para vir para cá?”. Aí, voltamos a Belo Horizonte, falamos com os pais do Beto Guedes e a mãe dele falou assim? “Com você, ele pode ir para qualquer lugar”. Ele veio para o Rio e nós começamos a fazer o negócio. Um dia, eu falei: “Lô, acho que nós vamos fazer um disco. Mas um disco duplo, com coisas da gente e acho que vai ser Clube da Esquina o nome do disco.

Aí eu levei na Odeon (hoje EMI), eu fui lá conversar com o pessoal. E um diretor disco que não, onde já se viu fazer um disco com um rapaz que ninguém conhece. Mas tinha uma pessoal lá chamada Adail Lessa, que todas as pessoas chamavam de pai dos músicos porque tem duas histórias dele. Porque quando João Gilberto, Tom Jobim, Milton Banana, todo mundo chegaram lá na Odeon, e eles falaram que iam fazer o negócio da bossa nova, o pessoal entrou numa que não queria fazer, aí o Lessa alugou uma orquestra de madrugada e gravou com ele. E no dia seguinte levou para eles e o pessoal quase caiu duro para trás.

Com a gente, ele chegou e falou os meninos não são bobos, não, deixa eles fazerem, o que eles querem fazer. Aí a gente fez o Clube da Esquina, que é uma dificuldade para provar para todo mundo que não existe clube. É um problema, vem gente do mundo inteiro para conhecer o clube que não existe.

E foi um negócio porque a crítica caiu de porrada. A gente não estava nem aí, o que a gente queria era tocar e depois o disco foi entrando na cabeça de todo mundo. Inclusive fora do Brasil e até hoje ainda é muito comentando e tudo. E assim é a história desse disco que esse ano faz 40 anos que foi lançado.

CINEMA 

Eu sou apaixonado por cinema e vejo muito. Ultimamente até que não, mas sempre vi muitos filmes. Eu adoro teatro, antes de ser conhecido como músico, eu trabalhei no teatro com Plínio Marcos. Isso ninguém sabe.

Eu adoro representar, já trabalhei em vários filmes, brasileiros, alemães. O Fitzcarraldo, por exemplo, foi uma coisa assim, a história da filmagem é melhor do que o filme. É uma confusão que nossa senhora (risos).

E tem o lance que tinha o Klaus Kinski e a Claudia Cardinale, que é uma maravilha. E eu era o porteiro do teatro e aquele negócio todo acontecendo e o Klaus Kinski enchendo o saco de todo mundo. Eu cheguei e falei, acho que eu não vou continuar nesse filme não. Aí, ele chegou para mim e disse assim: “Olha não é com você que eu estou brigando, não. É que esse pessoal não entende nada de cinema”. Só ele entende.

Eu ficava olhando assim a Claudia Cardinale fazendo crochê e pensava, como é que pode ser tão angelical, com essa cobra do lado. Fora umas coisas que eu não vou contar que ele andou aprontando, que nossa senhora (risos). Inclusive saiu dando tiro no diretor, o Werner (Herzog).

Noites do Sertão foi o filme que eu mais gostei de fazer e queria fazer mais. Mas parece que o povo não acredita em mim. Eu fico assim, poxa, tem um ator aqui precisando de diretor.

WAGNER TISO

Eu sou de Três Pontas, do Sul de Minas, e a primeira pessoa que eu mexi com música foi o Wagner Tiso, era uma coisa interessante porque eu ficava na varanda da casa dos meus pais tocando sanfona e gaita. E na frente tinha uma casa, tipo uma madeireira, que ficava escura, eu nunca vi ninguém ali, achava eu. Aí fiquei, fiquei, fiquei e aí apesar da gente ser vizinho, a gente se conheceu mesmo mais tarde. E começamos a tocar juntos, eu com 14 anos, ele com 12 na boate. E lá em Três Pontas eram músicos mais velhos, mas quando eles viram a gente, eles queriam que a gente entrasse para o grupo deles. Então, umas das coisas mais importantes da minha vida é o Wagner Tiso. Eu lembro que inclusive meus pais, quando viram a gente juntos. Chegaram e falaram, esses dois aí nunca vão se separar. E é verdade que a gente está junto até hoje.

LÔ BORGES

Tinha que chamar (para fazer participação especial no DVD). Tipo o Wagner, tem que estar lá.  E está muito bonito porque ele está cantando maravilhosamente. E, é aquele negócio porque para mim, eu quando comecei a compor, eu baseei muito assim na minha família que para eles a coisa mais importante do mundo é a amizade. E eu falei que eu só ia compor com coisas que eu acreditasse e baseado na amizade. Então, estão aí, o Wagner, o Lô e todos os músicos. A coisa é a amizade.

CANÇÃO DA AMÉRICA

Eu estava gravando um disco em Los Angeles, que é uma cidade que mexeu muito comigo, e assim, meio triste, porque eu fui pela primeiro vez em 68, para gravar o disco Coragem, com o Eumir Deodato, só que ele estava com o Tom Jobim gravando o disco com o Sinatra. E a gente estava em Nova York, mas aí eles me levaram para Los Angeles e eu fiquei lá sozinho em Los Angeles. Porque estavam lá os estúdios e não sei o quê e tal. E fiquei triste, muito triste. Inclusive eu fiz uma música que para mim é a música mais triste, eu nem lembro me o nome dela (risos).

Aí, o segundo o terceiro disco, que eu fiz lá, a gente estava fazendo a mixagem, numa época que não tinha esse negócio de Pro-tools, essas coisas todas que hoje tem, então, eram seis rounds lá no teclado do estúdio. Aí, de repente, entrou uma voz no estúdio, que eu nunca tinha ouvido e falou: “Quem fez essa música aí?”. Aí, o produtor fez assim (aponto para Milton). E ele falou, uma pessoa que faz uma música dessa não pode deixar de ser meu amigo. Aí veio, me deu um apertão aqui (no ombro), isso eu conto no DVD, que eu falo lá que até hoje ainda dói (risos).

Aí, deu a volta ficou na minha frente me olhando. E a gente acabou, foi todo mundo para casa. E teve dois dias de folga e eu estava lá no hotel, com aquela coisa minha de Los Angeles mexer comigo. E eu liguei para o meu produtor e perguntei: “Quem é aquele cara que estava lá no estúdio falando uma porção de coisa”? Ele disse, ah, é o Rick (Fataar). Eu falei, olha, liga para ele e diz que se ele não tivesse falado nada, tudo bem, mas já que falou, tem que cumprir. Para ele aparecer aqui hoje no hotel.

Esse produtor é pior do que eu. E ele falou assim para ele, você não conhece o Milton Nascimento, se você não aparecer vai acontecer até terremoto. Aí, não demorou muito, o cara estava lá na porta. Eu olhei assim, no vidrinho, e pensei: ih, o que que eu vou falar com esse cara agora. Aí, entrou, começamos a conversar. Aí me perguntou se eu conhecia o pessoal da gravadora. Eu falei, do Herp Alpert, ele falou, não é esse tipo de pessoa. Eu estou te perguntando do pessoal que trabalha lá.

Eu falei não, não conheço. Ele falou, então vamos sair e vamos conhecer o pessoal. Aí saímos andando, era o antigo lugar onde o (Charlie) Chaplin tinha o estúdio. Quando nós íamos entrar tinha um guarda que foi até engraçado porque o Rick chegou para ele e falou, “esse é um amigo meu, brasileiro, está aqui gravando um disco muito bonito. Aí, o guarda falou: “Brasileiro? Como vai a Sônia Braga, eu falei está ótima, lindíssima, cada vez mais”. Aí, ele: “E Pelé?”. Também, está ótimo.

Aí entramos  e começamos a conversar com todo mundo da gravadora e foi um negócio muito legal, depois saímos para a rua e tal. E ele tinha problemas com Los Angeles, ele era da África do Sul, e sentia muita solidão também em Los Angeles. E aí, saímos, fomos ver o Jeff Beck. Que ele foi ensaiar com o Jeff Beck. E ele falou “vou te deixar no hotel porque ensaio é muito chato”. Eu falei, eu não acho. Quando eu falei isso, ele (faz o barulho do carro acelerando), “então vamos”.

E cheguei lá, ficamos vendo o ensaio, conversando, esse negócio todo. E depois fomos na casa de um casal amigo dele. E a senhora lá me perguntou: “Onde você vai ficar morando em Los Angeles?” Eu falei, não eu não vou morar em Los Angeles. Eu estou indo de volta para o Brasil depois de amanhã.

Só que eu não tinha falado com o Rick, não é? Isso foi uma pedrada para ele. Aí, chegou lá num corredor, uma hora ele falou: “Milton, vem aqui”. Aí, tinha um piano, ele começou a tocar uma música que falava sobre um cara e a namorada dele que tinha uma coisa que atrapalhava o amor dos dois porque os amigos deles tavam todos saindo da cidade, então, eles ficavam sozinhos dava aquele negócio neles. Mas era uma música lindíssima. E eu fiquei mal, devia ter falado para ele antes.  E aí pedi para ele me mandar a letra e a música, ele não mandou. Até hoje. Haja tempo.

Então vim embora para o Brasil e não encontramos mais e tal. Até teve uma outra época que eu fui gravar outro disco. Cheguei lá em Los Angeles, o Rick não estava lá. Aí eu fiquei onde está esse cara? Ninguém achou.

Aí, eu tava lá na minha cama, acendi o abatjour e comecei a escrever uma letra. Que comigo é assim, quando eu começo a escrever uma letra, música vem junto. E aí escrevi uma coisa tipo “desencontro”, mas eu não queria escrever desencontro.

Então, tem a palavra encounter que é o “encontro” e eu botei o nome da música de “unencounter”. Aí me falaram, não, essa palavra não existe em inglês. Eu falei pode não existir até a hora que eu botei. E vai ser assim e está até hoje. Então, o nome principal da música era Unencounter e gravei no próximo disco que eu ia fazer. E depois o Fernando Brant escreveu, a  Canção da América que virou aquilo quer todo mundo sabe o que deu.

Então, eu nunca pensei que ela fosse virar aquilo tudo. Como eu digo lá (no DVD), um amigo vem me visitar, aí toca Canção da América, o amigo foi embora, Canção da América, vai receber diploma, Canção da América, vai casar, Canção da América. Tudo é Canção da América.

CORAÇÃO DE ESTUDANTE

Teve um filme chamado Jango e eu fiz metade das músicas do filme e o Wagner (Tiso) a outra metade. E um dia chamaram a gente para ver o filme e foi muito bonito, mexeu muito com a gente, e o final do filme aparece o Jango numa solidão fazenda que tava lá acho que no Uruguai, não tenho certeza. E começou a tocar essa música que o Wagner tinha feito. Aí eu olhei aquilo ali e falei, isso aqui é minha época de trabalho com os estudantes, viajando pelo Brasil  afora. E quando acabou o filme, eu falei com o Wagner, vou colocar uma letra nessa música.

Aí, foi um negócio assim, demorei para botar. E recebi um telefonema de um amigo que estudava na Itália. E estava triste porque não conseguia fazer os trabalhos naquele dia, era estudante, esse negócio todo, eu falei vem para o Brasil, vem aqui para minha casa, você faz o negócio aí. E ele disse: “Se eu for para o Brasi, aí que eu não vou fazer nada”. Eu falei não, vai sim, vai ter um quarto para você, com escritório, você não precisa nem pensar que eu estou em casa.

Aí, ele veio, e chegou supercansado, caiu duro, dormiu. Eu fiquei olhando assim, fui para o segundo andar e comecei a escrever a letra do Coração do Estudante. Escrevi de uma vez. Aí quando acabou, eu estava cansado para caramba, encostei assim no sofá e fiquei olhando assim para cima. E tinha um vaso que era assim, dois corações, mais dois corações, mais dois, mais dois, no final existiam mais de mil corações. E o nome da planta era coração de estudante. Aí, eu falei, pronto, é isso.


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Com 136 afilhados, Milton Nascimento diz que gosta de compor em meio à bagunça