Perto do fim da cerimônia de entrega do Prêmio Craque Brasileirão 2008, Pelé foi chamado para ser homenageado. Enquanto o Rei dirigia-se ao palco e passava entre as mesas dos convidados, apenas uma pessoa, pelo menos no que dava para ver na transmissão pela TV, levantou-se para aplaudi-lo: o zagueiro Fábio Luciano, do Flamengo. Só uma pessoa. Uma.

 

Vejam bem, era a premiação dos melhores do campeonato deste ano e, por extensão, do futebol brasileiro. Se Muhammad Ali estivesse subindo ao palco numa cerimônia do boxe norte-americano, ou se Paul McCartney estivesse numa premiação da música pop britânica ou se Michael Phelps… ora, quem estamos enganando? Se Phelps entrasse naquele mesmo evento, na noite de segunda-feira, seria recebido com chuvas de papel picado, hurras e queimas de fogos espontâneas, sem que a organização precisasse fazer qualquer coisa para isso. “Ele come 17 ovos a cada duas horas pela manhã”, confidenciaria um dirigente a outro, em meio à baba de admiração, enquanto choviam listas telefônicas.

 

Pelé disse que não esperava ser chamado. Após falar sobre sua angústia e emoção durante o campeonato, encerrou o discurso assim: "espero não decepcioná-los nunca", como se pedisse desculpas por ser o maior atleta da história e ter seu nome transformado em palavra mágica para nós, brasileiros, sermos bem tratados em qualquer parte do mundo.

 

O fastio da realeza

 

Pode ser que Pelé já tenha falado bobagens, que suas decisões empresariais ou sua vida pessoal e familiar tenham lá seus equívocos ou falhas sérias. Pode ser que seu posicionamento político seja criticável. Pode ser. Nada disso importa. Deixemos até de lado o fato dele ter lembrado das crianças pobres quando fez seu milésimo gol, há 40 anos, ou que somos todos sujeitos a erros.

 

Talvez seja o fastio da bênção de sermos da mesma nacionalidade de Pelé e das homenagens a ele, talvez seja porque a festa estava mesmo meio protocolar. Também não importa. Era um festa de futebol. Pelé é o rei do futebol; logo não pode ser recebido com frieza ou aplausos meramente protocolares.

 

Formando uma nação

 

Se os craques de hoje são premiados, com mérito, como representantes do melhor futebol do mundo, devemos isso aos 22 homens representados ali por Pelé, Bellini, Dino Sani, Moacir, Orlando Peçanha, Pepe, Zagallo, Zito, representantes da Seleção de 1958. Homens que ajudaram a inventar a identidade nacional do brasileiro e, nas palavras de Nelson Rodrigues, livraram toda a Nação do "complexo de vira-latas". Foi só depois do título de 1958 que o otimismo do governo de Juscelino Kubitschek começou a emplacar e que a trilha sonora da chegada da modernidade ao país, a bossa nova, começou a ser conhecida.

 

Essa homenagem teve sorte pouco melhor: foram aplaudidos decentemente, mas não mais que isso. Os ocupantes das mesas mais próximas ao palco ergueram-se lentamente para bater palmas para eles, a ponto de ser necessário trocar a imagem para as câmeras que focavam as pessoas mais afastadas, essas sim erguidas para prestar a merecida ovação aos heróis nacionais.

 

E talvez aí fique ainda mais evidente o quanto é necessário lembrar permanentemente da conquista de 1958. Porque, senão o apego feroz ao complexo de vira-latas, o que pode explicar tão violenta repulsa ao ídolo que mais fez pela imagem e auto-estima de nosso povo em toda a história?


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Complexo de vira-latas revisitado: a avareza do aplauso no Prêmio Craque Brasileirão 2008