Talvez você nem imagine, mas a Baixada Fluminense, região que engloba municípios como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Belford Roxo, é a casa de uma editora de quadrinhos independente e genuinamente brasileira. Apesar de haver iniciado suas atividades há menos de um ano, a Capa Comics já chama atenção, entre outros fatores, pela maneira como usa situações cotidianas da população local como inspiração para seus roteiros.

Personagens como Detrito, A Grafiteira e Seu Joel também são fruto do exercício diário de observação do próprio dia a dia feito pela criativa equipe da editora. Mesmo personagens e tramas que bebem na fonte da ficção científica têm seu ponto de partida no mundo real que todos nós enfrentamos e que diariamente nos prega surpresas, nem sempre agradáveis.

Para conhecer mais sobre o trabalho da Capa Comics, conversamos com João Carpalhau, um dos idealizadores da editora. Acompanhe o papo:

Quando, como o porque o Capa Comics foi criado?
Tudo começou num papo despretensioso. Eu já fazia trabalhos com tirinhas no jornal local e todo mundo no grupo tinha suas atividades isoladas. Um dia, tomando uma cervejinha, resolvemos unificar a coisa toda sob uma única bandeira. O clima da Baixada Fluminense, que alguns chamam de “provinciano”, propicia a experiência única de todo mundo se conhecer. Na Capa Comics, os que não se conheciam, acabaram se conhecendo no grupo e como todos têm gostos e sonhos parecidos, foi tudo muito espontâneo. Começamos as atividades bem devagar, em abril de 2013 e a coisa continua caminhando até hoje. Como sempre dizemos: É só o começo. Há muitas coisas que queremos colocar em prática e ideias não param.

Quantas pessoas estão envolvidas na produção dos quadrinhos?
Atualmente temos 17 cabeças. Desenhistas, coloristas, arte-finalistas, roteiristas e até um animador, um modelador e um programador. Como disse, as ideias são muitas, e essa galera veio pra ficar.

Fale um pouco sobre as características dos personagens principais dos quadrinhos da Capa Comics: Detrito, Não Tão Super, A Grafiteira…
O Detrito era um homem comum, tinha problemas como todos nós. No ato de seu assassinato, ele ganha uma segunda chance através de um acidente químico, mas talvez não seja exatamente a chance aos moldes que um ser humano gostaria. Ele se torna um monstro asqueroso. Sua história é um drama sobre enfrentar o mundo e vê-lo através de uma visão que as pessoas não querem ver ou fingem que não existe. Então a pergunta é: Quem é o monstro? O Não Tão Super é uma forma diferente de abordar a coisa do herói superpoderoso. Parece que nos quadrinhos, de uma maneira geral, há uma tendência das personagens terem uma vida perfeitinha, nada caótica e que tudo acaba bem no final. Isso não reflete bem a realidade que conhecemos. Já a Grafiteira é uma garota comum da Baixada Fluminense que acaba se envolvendo em uma trama interdimensional. O sci-fi, vai rolar solto e a ambientação também se dá em Mesquita e Nova Iguaçu, dado o forte contexto do skate e do grafite da região. A parte mais curiosa disso tudo é que todas as nossas tramas são inspiradas diretamente em fatos, acontecimentos e lendas urbanas da região. Tudo é como se fosse uma brincadeira no quintal de casa.

Vocês possuem dois selos: vermelho e amarelo. O que diferencia um do outro?
O selo amarelo é onde enquadramos nossas produções que não são tão pesadas em termos de violência. Não gostamos da coisa politicamente correta, mas convenhamos que tudo tem seus limites, e chamamos esse limite de bom senso. Então, para não termos problemas com a patrulha ideológica, criamos também um selo adulto, o vermelho. No selo vermelho, como direcionamos o argumento para um público mais maduro, temos mais liberdade para tratar de assuntos e temas mais pesados. Há também a vertente CAPA COMICS APRESENTA, onde começaremos a apresentar trabalhos de outros artistas de outras partes do país. O Resistente, por exemplo, é uma criação do Juliano Rocha, que é de SP. A ideia é crescer junto e mostrar que o nosso quadrinho é temperado com azeite de dendê e tem uma cachacinha pra acompanhar.

De que forma a realidade da Baixa Fluminense está presente nas histórias?
A Baixada é o nosso quintal de casa. Ela está presente em tudo que fazemos e no nosso dia a dia. Na Capa Comics temos gente de Nova Iguaçu, Magé, Belford Roxo, Caxias, São João, enfim, pessoas que, ao abrir a janela de casa, encontram seu cenário. As lendas urbanas por aqui são riquíssimas. Se você para numa padaria para tomar café, troca uma ideia com um desconhecido e de repente, sai dali uma história. O acidente químico do Detrito, por exemplo, é inspirado em um roubo de uma carga química que realmente aconteceu em Duque de Caxias. O vilão, o Jacaré, basta ir ao bairro do Sarapuí e perguntar pelo Jacaré Juninho, que é uma lenda assustadora e muito bem divulgada por estas bandas. E ainda há muitos outros elementos que quem é daqui acaba conhecendo, e quem não é passa a conhecer.

De onde vem inspiração para a criação de personagens como Seu Joel, por exemplo? Nossa, o Joel! Sem brincadeira, o caçador de monstros é um delírio coletivo de qualquer cidadão da Baixada que passa suas tardes assistindo a programas de notícias policiais. Esses programas geram muita indignação nas pessoas, elas pegam todo esse ódio pra si e não sabem como canalizar. Geralmente, quando você para num bar por aqui e começa a ouvir a conversa das pessoas, há sempre um que fala sobre essas as coisas escabrosas. O grande contraponto baixadiano é que por aqui a vida de qualquer um pode virar facilmente um filme do Charles Bronson. O nome Seu Joel foi inspirado num sapateiro aqui do meu bairro. Já o visual dele, eu queria que lembrasse o Mutarelli, um dos meus quadrinistas favoritos.

Em sua opinião, qual o futuro dos quadrinhos na época das plataformas digitais?  
É excelente pensar que as pessoas podem escolher o que realmente querem ler. A internet dá muita base para isso, mesmo sabendo que grande parte das pessoas navegando está muito mais interessada em pornografia do que propriamente em quadrinhos, literatura ou cultura de uma forma geral. Hoje mesmo, o Diego Berçacula, nosso ‘internetman’, me contou que o sexto maior “search” em nosso site é a palavra “porno” (rs).

Quem quiser ler os quadrinhos da Capa Comics pode encontrá-los em versão impressa? Como encontrar?
Nós lançamos uma revistinha de 20 modestas páginas. Foi um ponta pé inicial, o primeiro gibi da Baixada Fluminense. Em breve no nosso site as pessoas terão como adquiri-la e nós já estamos pensando em um formato maior e mais bacana para uma próxima publicação impressa. Tudo isso ainda é só o começo.

Além da produção das HQs, que atividades a Capa Comics vem desenvolvendo?
A gente vem desenvolvendo workshops, palestras e oficinas de quadrinhos. Em breve, também teremos desenhos animados inspirados nas nossas HQs e uma websérie do Seu Joel que está em fase inicial. Também temos o projeto da gibiteca que visa criar um acervo público de HQs aos moldes do belíssimo trabalho realizado em Santos-SP. Esperamos chegar ao fim deste ano e ver todas estas coisas realizadas, estamos trabalhando para isso. E nas palavras do velho Stan Lee, o caminho é EXCELSIOR!

Acesse o site da Capa Comics.


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