David Shields e Shane Salerno tinham legitimidade para abrir a hermética rotina de J.D. Salinger, o autor do famoso O Apanhador no Campo de Centeio em sua polêmica biografia? Salinger tem superado a inundação de críticas e emergindo suas qualidades de pesquisa, enquanto os autores reivindicam o direito a compartilhar suas descobertas.

“Entendo que as pessoas sejam muito protetoras com Salinger, o problema é que sugerir que fizemos um trabalho ruim contando sua vida de maneira honesta. Se quiséssemos fazer algo negativo contra ele, poderíamos ter feito em um ano, não gastando uma década da minha vida e US$ 2 milhões do meu bolso”, criticou Salermo em entrevista a Agência Efe.

“Ninguém disse que os dados do livro estão errados. Só disseram que não deveríamos ter publicado e isso é ridículo”, ao descrever as reações de muitos críticos como “crianças que choram porque descobrem que Papai Noel não existe”.

Salinger foi publicado nos Estados Unidos no fim do ano junto com um documentário dirigido por Salerno, e se anunciou como a biografia definitiva do escritor de O apanhador no campo de centeio, um homem recluso que ficou fechado por mais de meio século na pequena cidade de Cornish (New Hampshire), onde morreu em 2010 aos 91 anos.

O primeiro ponto que os autores discutem é sua condição de ermitão. “(Ele) não o era, não estava recluso. Howard Hughes sim, ninguém sabia onde estava e o que fazia. Mas Salinger ia todos os dias aos mesmos lugares. Os ermitãos não vão ao jantar da igreja todo domingo. Não vão ao centro comprar jornal. Não convidam crianças do instituto a tocarem música “, afirmou Salerno.

Além de desmistificar a personalidade do escritor, iluminam dados sobre sua vida. O primeiro, de que o escritor deixou material literário pronto para sua publicação (até cinco livros) a partir de 2015, o que agitou o mercado literário e afiou as suspeitas de que seria uma estratégia para otimizar o rendimento comercial do livro e do documentário.

O segundo, desempoeirar material gráfico, cartas e testemunhos até agora desconhecidos sobre o autor, especialmente os da sua relação sentimental com Jean Miller entre 1949 e 1954, que abriu seu arquivo de mais de cem cartas com Salinger, assim como as fotografias e cartas que seu amigo Paul Fitzgerald, tinha guardadas, incluídas algumas do processo criativo de seu livro mais famoso, ícone dos adolescentes de uma geração.

“Estamos orgulhosos de ter podido ver esse material e partilhado com o mundo”, diz Salerno.

Segundo ele, Miller é “a maior janela” para conhecer Salinger. “Ela o conheceu antes de O Apanhador no Campo de Centeio e depois, antes de ir para Cornish e ainda depois. E esse período, antes que começasse a lenda do Salinger recluso, era um buraco negro para os biógrafos”, se gabou.

E foi na hora de retratar o Salinger íntimo que os alarmes soaram. “As respostas sobre quem era Salinger estavam em suas contradições. Tirou sua fotografia da capa de O Apanhador no Campo de Centeio, porque não gostava da autopromoção. Mas quando viu Joyce Maynard aos 18 anos em uma capa da New York Magazine, se sentiu imediatamente atraído”, exemplificou.

“Sua filha (Margaret) dizia muitas coisas horríveis sobre ele e inclusive escreveu um livro sobre isso (O guarda dos sonhos). Seu filho (Matt, ator) relatava o oposto, dizia que era um pai extraordinário e que sua irmã mentiu. Nós contamos as duas histórias”, diz.

Na hora de articular esses dez anos de documentação, Salerno e Shields optaram por dois eixos temáticos: a Segunda Guerra Mundial – o título original é A guerra privada de J.D. Salinger – e sua permanente busca pelo sentimento religioso, que dá nome aos capítulos do livro. “O primeiro o construiu como escritor. O segundo o afastou da popularidade”, resumiu.

“A Segunda Guerra Mundial foi o trauma que transformou sua vida”. Passou de menino rico da Park Avenue em Nova York que romantizava a batalha a um trabalhador pesado no Desembarque de Normandia.

Após sua experiência bélica, se internou em uma instituição mental e escreveu seu primeiro relato Uncrazy (não-louco).”Alguma alquimia literária foi gerada nessa instituição que o mudou como escritor. E, de fato, começou a escrever sobre Holden Caulfield em primeira pessoa.

Sobre isso Salerno ressaltou que é algo que é preciso respeitar no material sobre Salinger são seus escritos anteriores à guerra.

Mas essa mesma guerra foi o que o tornou um ser em uma busca desesperada da religião. “Depois da guerra transitou por várias religiões, tentando curar a ferida causada por ela”. Buscava um lugar que não encontrou jamais e a última frase que disse a sua família foi “estou no mundo, mas não faço parte dele”.


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Biografia de Salinger desmistifica autor de O Apanhador no Campo de Centeio