Dois adversários bem diferentes entraram na disputa da mostra competitiva nessa segunda-feira (3) no Festival de Veneza: de um lado o arsenal intelectual de Olivier Assayas com o francês Après Mai (Something in the Air), ambientado no pós-maio de 68, e do outro o japonês Outrage Beyond, dirigido por Takeshi Kitano e com muito mais violência.
Assayas chega a essa luta com armas comedidas e o intelecto, mas, mesmo assim, consegue vencer, principalmente por contar como obteve uma relevante derrota: a da ardência política sobre a expressão artística.
Em Après Mai, após o êxito internacional da série Carlos, o diretor recua sua artilharia narrativa em direção a uma reflexão íntima sobre a adolescência do pós-maio de 1968, quando a juventude francesa tentava tomar o testemunho dos protagonistas da revolta.
“No filme há muito amor, natureza, ternura… mas, a adolescência quase sempre é retratada de maneira caricata, cheia de festas, enquanto eu me recordo como algo muito mais melancólico”, explicou o cineasta em Veneza.
O personagem Gilles, seu alter ego juvenil, interpretado com brilhantismo por Clément Métayer, circula por essa França em que poucos tentam continuar instigando as brasas da revolução, mas com a solidão de quem, por espírito crítico, está destinado a confrontar com qualquer tipo de coletivo.
“Foi uma época séria e triste, de uma obsessão constante pela política. Tudo estava sufocado por uma espécie de ‘super eu’ que era a responsabilidade social. E na esquerda francesa havia algo triste, violento, que se refletia na juventude”, explicou o diretor.
Assayas já tinha retratado este período de maneira mais abstrata e poética em L’eau Froide (1994), mas, em Après Mai, ele opta por uma narrativa clássica, firmada em sua brilhante capacidade de retratar os grupos sem deixar de lado a individualidade de cada integrante.
Deixando de lado a idealização de Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores, escapando com habilidade do caminho tresnoitado, e considerando que a melhor representação daquela época foi a de Philippe Garrel em Amantes Constantes, Assayas escolhe para seu protagonista o mesmo para si mesmo. Após a decepção política, a criação artística.
Desta forma, após assistir com distância a explosão hippie, o consumo de drogas e o amor livre, Gilles busca refugio no cinema. “É um canto a fé na arte como ressurreição do perdido”, defendeu Assayas, que, por sua vez, não considera o cinema um meio de comunicação.
“O cinema é uma arte e, como tal, tem um valor dialético, ao contrário do jornalismo, que conserva as contradições do mundo e deixa que o público o interprete segundo seu olhar. Nunca desejei formar e dirigir a opinião dos meus espectadores”, concluiu.
Takeshi Kitano, mestre do cinema japonês e único diretor a entrar na competição do Festival de Veneza em suas 69 edições, também não facilita a vida para o espectador. Apesar de já ter conquistado um Leão de Ouro em 1997 com Fogos de Artifício, parece improvável que o diretor repita essa façanha nesta edição, já que seu novo filme não se encontra entres os melhores de sua filmografia.
Outrage Beyond, segunda parte de Outrage, corresponde à parte mais violenta de um diretor que, posteriormente, também se mostrou capaz de fazer sutis e pequenas histórias, como Verão Feliz.
Ambientado em um contexto de corrupção moral capaz de escandalizar até a retaguarda da máfia japonesa, o filme de Kitano tece uma trama de intricado divertimento que, por outro lado, exige uma grande concentração pela quantidade de personagens que trabalha e que acabam morrendo da maneira mais criativa.
“Eu gostaria de poder fazer um cinema mais artístico, mas tenho que fazer entretenimento para ter espectadores”, assegurou o diretor japonês na entrevista coletiva após a exibição de um filme que explora um gênero tão passado de revoluções que chega a flertar com a paródia.
“As pessoas são muito raras. Podemos rir até das cenas mais violentas”, acrescentou o diretor em referência a uma das execuções mais brilhantes das inúmeras cenas impecáveis de Kitano – quando uma máquina de lançar bolas de baseball mata uma das vítimas de Othomo, seu personagem.
Consciente de que a épica dramática se perdeu em seus filmes de ação, da mesma maneira que as emoções desapareceram das relações de poder, Kitano também elimina as mulheres e as crianças, o que torna Outrage Beyond um filme 100% masculino, no qual yakuzas e policiais são os mesmos cachorros, mas com diferentes coleiras.
“No Japão, a máfia e a polícia têm a mesma relação que no resto do mundo. Este não é um filme sobre a máfia japonesa, mas uma visão realista sobre o Japão”, concluiu o diretor.