Première do filme Amor?, de João Jardim, com Lília Cabral, Júlia Lemmertz e Du Moscovis
“Onde termina o amor e onde começa a violência?”. Essa é a pergunta central do filme Amor?, de João Jardim (Janelas da Alma, Pro Dia Nascer Feliz e Lixo Extraordinário), vencedor do prêmio do Júri Popular no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que aconteceu no último final de semana. O questionamento, inclusive, é feito por uma das personagens do longa, interpretada pela atriz Mariana Lima, uma das poucas que saíram do ciclo de violência a quem foi submetida.
O filme foi exibido na manhã desta sexta-feira (03) no Cine Livraria Cultura, em premiere para convidados, entre eles jornalistas e profissionais que estudam o comportamento humano e trabalham com o assunto, com a presença do diretor, a atriz Silvia Lourenço, Lia Diskin, co-fundadora da Associação Palas Atenas, Carlos Zuma, coordenador do Instituto Noos, e Cida Medeiros, coordenadora de Comunicacao Corporativa da Avon.
Apesar de ter patrocínio do Instituto Avon, que sustenta um belo projeto de combate à violência doméstica desde 2007 e promoveu o encontro, o filme vai mais além desse tipo de agressão. Para o diretor, o filme é sobre o amor. E para isso, foi buscar depoimentos sobre as relações de pessoas comuns, em conversas informais apenas com um gravador de mp3. Mas ao invés de expor suas intimidades, chamou grandes atores brasileiros para dar vida aos relatos, como Lília Cabral, Angelo Antônio, Júlia Lemmertz, Du Moscovis, Mariana Lima, Fabiula Nascimento, Silvia Lourenço, Claudio Jaborandy e Letícia Colin.
“Fizemos uma pesquisa longa, inclusive com ajuda do Instituto, e entrevistamos mais de 60 pessoas. Primeiro fomos nas classes mais baixas, mas esbarramos na questão do estereótipo. Vimos que era mais interessante focar na classe média. É tudo transcrito dos que as pessoas falaram. Muito pouca coisa foi inventada, só modificamos para não identificar quem é a pessoa. O local, a família, o nome, algumas circunstâncias. O que eu fiz foi cortar, porque as conversas duravam 1h/1h30 e queria com 15 minutos”, comentou Jardim.
Quando perguntado sobre o que o moveu a levar o projeto para frente, o cineasta afirmou que não era nada pessoal. “Pra mim, o tema é muito bom. Fala da questão da opressão, da violência. Foi interesse mesmo, não é algo que eu consiga racionalizar. E me daria oportunidade de trabalhar com atores bons, além de ser um exercício muito prazeroso (embora tenha sido muito difícil para todos nós lidar com tanta dor). Eu lia matérias nos jornais e percebia que eles não estavam falando o mais importante, que é a questão subjetiva, a questão do sentimento. Fica sempre o estereótipo de alguém que é o monstro e sabemos que não é assim. Então vi um espaço fértil pra construir alguma coisa”, comentou.
A psicanalista e diretora do IPPIA (Instituto de Psiquiatria e Psicoterapia de Crianças e Adolescentes), Amélia Vasconcellos, foi convidada para a sessão e foi só elogios ao diretor, mas sustentou a opinião de que o filme não trata sobre amor. “Ele consegue trazer uma denúncia muito bem feita, do ponto de vista artístico e tira uma interpretação excelente dos atores sobre um problema muito atual. O que mais gostei foi a palavrinha final, ‘o amor interrogado’. Isso é paixão, patologia da paixão, e foi muito bem denunciado nesse filme. O que a gente percebe, e como psicanalista posso dizer isso, que há uma não-maturação dos aspectos afetivos no ser humano atual. Eu vejo isso como uma parada no desenvolvimento, daquilo que deveria ser a construção do amor. A coisa começa muito cedo. Todos eles mostraram como muito precocemente, dentro da família, eles tiveram dificuldade de aprender a amar. Mas há uma diferença essencial entre paixão e amor. Aqui a gente viu muito a patologia da paixão, não viu amor”, analisou.
Para a atriz Silvia Lourenço, que interpreta a personagem lésbica Julia, o trabalho foi justamente não interpretar, mas viver aquele discurso como se fosse seu. “Logo que o João me apresentou o projeto, uma coisa ficou bem clara pra mim como atriz é que pra conseguir fazer esse trabalho eu teria primeiro me desprover tecnicamente do que estou mais habituada a fazer que é intepretar, ali o desafio seria não interpretar. Seria conseguir, sem juizo de valor, sem julgamento, me colocar no lugar da pessoa que deu o depoimento”, contou.
“Isso é supercomplicado, porque eu teria que não interpretar o momento em que ela busca a palavra mais exata pra se comunicar, o momento em que é mais difícil de falar… é nesse instante que a minha subjetividade como atriz se mistura a da pessoa. Aí o trabalho fica mágico. É quando consegui me permitir contar aquela história como se fosse minha e compreender como essa pessoa lida com a afetividade”, continuou.
Sobre sua personagem, Silvia acredita que não era apenas ela a culpada. “Ficou claro pra mim que ali que as duas eram vítimas. Existia uma combinação de fatores entre ela e a namorada que fez com que se perdessem no caminho do amor e que confundissem violência com amor”, comentou.
Para compô-la, a atriz disse que passou por vários ensaios com o diretor, que a tratava muitas vezes como se ela fosse a real vítima. “O João fez isso separadamente com cada ator. E dentro desse ensaio, o João sempre perguntava pra mim: ‘você acha que ela tem facilidade de dizer isso?’ E o melhor é que ele se referia a mim como se eu fosse a Julia. ‘Mas pra você é fácil dizer isso? Você está totalmente refeita?’. E aí a gente foi compondo. É muito incrível quando você compõe uma história que existe, porque aí você não tem como julgar. Dramaturgicamente, é muito rico pro ator. A vida real supera qualquer roteiro ficcional”, explicou.
Amor? chegará ao circuito comercial em abril, segundo João Jardim. Mas antes, chegará às telonas o excelente documentário Lixo Extraordinário, sobre a vida e obra do artista plástico Vik Muniz e seu trabalho com os catadores de materias recicláveis, do qual foi co-diretor.