Ao pesquisar o significado de casa, além do clássico lar e edifício, é possível encontrar a definição de um lugar destinado a encontros de certas categorias de pessoas, cujos interesses, origens e cultura são expressados. A casa pode ser definida como um refúgio, abrigo e um lugar seguro em que você se sente à vontade para ser quem se é, além de expressar todos os medos, inseguranças e confissões.
No volume 1 de Chegamos Sozinhos em Casa, lançado em maio pelo trio paranaense formado por Jean Machado, Lay Soares e Lio Soares, a Tuyo cria esse lugar seguro. As mudanças físicas que o grupo sofreu ao longo dos últimos anos, de lar e cidade, impulsionaram a criação deste ambiente. Com um ano 2019 intenso, seguidos de shows, o grupo revela que não tinha parado para refletir sobre tudo que estava acontecendo “Eu sinto que eu não estava nem um pouco disposta, num período pré-pandêmico, a me avaliar identitariamente. Não tinha tempo, as coisas estavam acontecendo muito rápido. E eu tinha que em algum momento revisar meu sonho, o que eu acredito que seja um propósito pra mim, revisar se eu quero ter um propósito”, confessa Lio.
“No fim, a gente só vive sem saber se vai vingar”, canta o grupo na faixa homônima ao álbum. Nascidos entre a década de 80 e 90, os integrantes da Tuyo estão entre os 30 e 35 anos, idade em que muitas crenças, ações e verdades que sempre foram tomadas como imutáveis são deixadas para trás para dar lugar às novas certezas que vem pela frente. De uma geração que entendeu que seguir um checklist imposto não seria sinônimo de felicidade, o grupo confessa que esse é um momento de renascimento: “Na fase em que estamos, chegando perto dos 30 e 35, é uma fase de mudança, consciência diferente da vida e novas escolhas. Os dois volumes falam um pouco sobre esse renascimento de cada indivíduo”, explica Jean.
Dúvidas, incertezas, novas certezas, opiniões sinceras, decepções e desejos são algumas das confissões feitas em lugares seguros, quando nos sentimos bem e acolhidos. Após criar esse ambiente no primeiro volume, a Tuyo lança Chegamos Sozinhos em Casa Vol. 2 e dá vazão a tudo que estava engasgado nestes últimos anos na tentativa de entender o que será de agora. “Parece que estamos travados em 2019. Ele ainda faz sentido, mesmo com essa pausa forçada. Tem esse sentimento que estamos em crise, mas já estávamos assim há um tempo. Acho que o disco não fala da pandemia, mas é uma coincidência bem triste, a mudança de hábitos que falamos no disco é uma coisa que aconteceu neste último ano com todas as pessoas. Mudança de grupo, perspectiva e personalidade.“, completa Jean.
Com a presença de beats e camadas eletrônicas junto com a influência do R&B, o álbum produzido por Lucas Silveira, Janluska, jvck, Machado, Bruno Giorgi, Lucs, RDD, e lançado pela Natura Musical, traz uma conversa sincera que exige companhia, o segundo volume conta com as participações de Drik Barbosa, RDD, Lenine, Jonathan Ferr e Shuna. “A galera veio feliz e de peito aberto. Parecia que tínhamos acabado de nos mudar para uma casa e estávamos uma uma inauguração com os amigos. Tipo quando senta na varanda e começa a bater um papo, não tinha ninguém desconfortável”, relembra Lay.
Enquanto esta inauguração da casa não pode ser presencialmente, em um show para qual o disco foi projetado, a Tuyo te convida para participar aí da sua casa e se sentir nesta conversa entre amigos. Em entrevista, Lay, Jean e Lio falaram um pouco mais sobre a produção do álbum, a escolha das participações e como aprender a lidar com fracassos.
Daniela de Jesus: Quando eu estava lendo sobre o lançamento do álbum vocês afirmaram que é sobre um processo de ‘Adultecimento’. O Pra Doer, primeiro EP do grupo, saiu em 2017 e agora os dois volumes do Chegamos Sozinhos em Casa em 2021. Como foi esse processo de adultecimento para vocês ao longo destes últimos anos?
Lio: Menina, por onde começar? Eu sinto que Chegamos Sozinhos em Casa é um recorte do que discutimos juntos. Toda a liga que apoia essas conversas eu acredito que acompanha as fases da nossa vida. Eu sinto que é um bom resumo, nossa geração entre anos 80 e 90 é diferente da anterior. Nossos pais tinham muito claro os ritos que compreendiam as passagens do tempo, a infância era bem demarcada, adolescência e a vida adulta muito bem marcada. Eu sinto que pra gente essa linha tá um meio borrada, esses rituais que denunciavam o que é ser adulto. Então, eu tinha lá meus quatro ou cinco anos, eu me lembro de querer ser professora ou astronauta, saber cinco línguas, entendeu? Nessa construção de ter carro, ser casada, ter três filhos, saber o nome de cada um.
Lay: E pra muitas pessoas o que isso ainda faz sentido, acho que não podemos excluir, mesmo pra nós. Acho que o mais doido é poder abrir o leque, né? Acho que deixa mais desesperado é ter um leque de possibilidades que conta também com essa daí, que tem gente que segue esse ciclo e que tudo bem.
Lio: Eu sinto que o disco é um retrato dos rituais que conseguimos recortar ou catalogar da nossa vida que denunciaram que abandonamos a primeira infância, adolescência ou até a juventude, né? Que o tempo passou pelo nosso corpo de alguma forma.
Jean: É bem isso, né? O registro bonito dessa história, bem o que conseguimos colocar no papel. Muita coisa que vamos sentindo e que ainda não está pronto para ser dito também.
Lio: Eu sinto que eu não estava nem um pouco disposta, num período pré-pandêmico, a me avaliar identitariamente. Não tinha tempo, as coisas estavam acontecendo muito rápido. E eu tinha que em algum momento revisar meu sonho, o que eu acredito que seja um propósito pra mim, revisar se eu quero ter um propósito. Eu sinto que todos nós fomos obrigados de alguma forma a revisar nossas crenças e vida. Esse disco nem era para sair assim, ele estava pronto antes, bem falando desses movimentos migratórios do primeiro volume. Enquanto o segundo recorta um ciclo interessante de planejamento, de traçar uma meta, se frustrar e se arrepender. Traçar uma nova meta, se frustrar diferente e se arrepender diferente. Eu sinto que a passagem das faixas caminha por esse ciclo bem linear
D: Você comentou que o disco não era para sair assim, como estava sendo planejado?
Lay: A princípio era para ser um único disco, mas fomos compondo. Nos anteriores era mais uma coletânea de música que a gente tocava em shows. Nesse paramos para compor juntos, o que foi uma coisa diferente. Eu lembro que ficamos vários dias juntos trampando e as faixas foram surgindo. Com os acontecimentos dos últimos tempos catastróficos, fomos replanejando sempre buscando prazos, porque esse disco foi pensado para um show, foi pensado para tocar no Brasil e quem sabe lá fora. No fim, não agradecendo nada ao covid nem a irresponsabilidade governamental, mas replanejar foi bom e dividir ele em partes para entender como falar com calma de cada momento e da gente entender qual histórias estamos contando.
Lio: Eu sinto muito que fazer música é você está com uma tesoura e recortar um momento do tempo. Recortar esse trecho e tentar entender o que aconteceu, conforme vamos vivendo não dá para entender o que está acontecendo. Só conseguimos entender as situações quando elas passam, na hora dá um desespero e uma ansiedade, mas depois você olha para trás e percebe que era só fome, sono. Eu sinto que recortamos o nosso 2019 que foi bastante intenso e cheio de mudanças. Essa identificação que está rolando eu sinto que é por conta do recorte que escolhemos.
Jean: Sim, parece que estamos travados em 2019. Ele ainda faz sentido, mesmo com essa pausa forçada. Tem esse sentimento que estamos em crise, mas já estávamos assim há um tempo. Acho que o disco não fala da pandemia, mas é uma coincidência bem triste, a mudança de hábitos que falamos no disco é uma coisa que aconteceu neste último ano com todas as pessoas. Mudança de grupo, perspectiva e personalidade. Na fase em que estamos, chegando perto dos 30 e 35, é uma fase de mudança, consciência diferente da vida e novas escolhas. Os dois volumes falam um pouco sobre esse renascimento de cada indivíduo.
Lio: O segundo volume é autoexplicativo. Tínhamos uma plano, nos frustramos, construímos outro plano e nos frustramos de novo. Eu sinto que superfaturamos o sucesso, o dar certo e prosperar. Claro que é bom quando as coisas funcionam, mas o fracasso também tem lições. Faz parte da vida.
D: E vocês falam abertamente sobre os sentimentos. No primeiro volume, em ‘Pra Curar’ vocês cantam que “Nenhuma dor é pra curar” e, agora junto com Lenine em ‘Fracasso’, que “Todo fracasso é para sempre, toda memória humilhante”. Como é esse processo de falar abertamente sobre as dores e se colocar vulnerável?
Lay: Vou dizer, não é bom não. Mas é um jeito que nós conseguimos elaborar em um primeiro momento. Nós temos o hábito de vomitar um monte de palavra e música, porque aquilo deixa um pouco mais próximo da ideia do que acabou de sair da gente. Assim começamos a entender como vamos desenvolver em cima daquilo. Uma coisa que eu sinto falta é cantar em show, porque eu sinto que faz parte do momento pessoal e coletivo de reorganizar as coisas, quando eu to cantando e olho no olho de alguém. Acho que é muito difícil, mas é o que eu sei fazer para começar entender o que está acontecendo com a minha cabeça.
Lio: Eu sinto que a gente entrega muitas coisas particulares porque estamos protegidos pela metáfora, de estar falando como nos sentimos. E também porque nos sentimos seguros um com outro para falar sobre o que sentimos. Isso motivou também dividir o disco, porque para você se abrir, você precisa se sentir seguro, em um lugar que você se sente bem para dizer tudo. E eu sinto que o primeiro volume estabelece um território, e que o volume 2 é quando as confissões acontecem porque o território foi criado. Para que a gente se ponha vulnerável, é preciso ter a segurança de que não vamos receber uma nova sentença. Eu sinto que quanto mais a gente divulga relatos de frustração, menos a frustação é um monstro. Sinto que as pessoas conseguem lidar de uma forma melhor, sem banalizar, mas também sem evitar e fingir que elas não existem.
D: E se todo fracasso é para sempre, como lidar com os fracassos?
Jean: Nós aceitamos, tentando não repetir. Porque tem coisas que não vamos consertar e só fazermos mais besteira, tem coisa que não tem tanta solução assim. O que eu puder fazer pra consertar tá aqui, mas tem coisa que foge da nossa responsabilidade e competência. Eu acho que todo fracasso é pra sempre até o momento em que entendemos que ele não pode ser repetido também, sabe?
Lio: Não é questão de malefício e sentença. Eu sinto que quando estamos inebriados pelo desejo de vitória perdemos a riqueza e estética da imperfeição. Transitamos socialmente entre dois grandes extremos, romantizar grandes violências ou romantizar grande sucesso. Esse lugar das pequenas frustrações enfiamos debaixo do tapete. Eu larguei a faculdade e lidava mal com isso, ficava pensando ‘bom, então eu sou burra, sou ignorante, sou um jumento, sou imperfeita’. Como se fosse um uma espécie de fardo que eu tenho que carregar para o resto da vida. Rolava muito isso nos papos de autoajuda em que as pessoas diziam que se você começasse uma coisa e não terminasse você tinha um grande problema. Todo mundo começa um monte de coisa e não termina! Porque vê que não deu certo. Para, frustrou. É. Começa de novo. Tanta vitória quanto o fracasso são pontos no trajeto, não são lugares permanentes e a gente passa por eles, para, toma um café, entra no ônibus e segue a viagem. Eu sinto que quando a gente convidou o Lenine foi muito olhando também para o trajeto dele. O Lenine é um artista que vem dizendo pro Brasil em todas as novelas das nove, duras verdades com muita doçura.
D: Sobre as participações, os dois volumes contam com diversos nomes como Drik Barbosa, RDD, Jaloo, Lucas Silveira. Como vocês escolheram os convidados?
Jean: Eu sou fã do RDD a muito tempo, acompanho o trabalho dele e gosto desse corre que ele tem feito para popularizar uma música tradicional da Bahia. Nesse momento em que estávamos produzindo o disco, conseguimos o contato com ele, ele conseguiu se aproximar e pô é lindo assim. Foi muito bom trabalhar com pessoas que admiramos, todo mundo entrou nesse disco quis fazer parte desse recorte com muito carinho, todo mundo se entregou muito, foi bem legal.
Lay: Nossa, tudo se encaixou de um jeito tão natural. Nós ouvíamos as músicas e eu lembro que os nomes iam surgindo, sabe? E a galera veio feliz, de peito aberto pra fazer parte. A galera veio feliz e de peito aberto. Parecia que tínhamos acabado de nos mudar para uma casa e estávamos uma uma inauguração com os amigos. Tipo quando senta na varanda e começa a bater um papo, não tinha ninguém desconfortável.
D: Sobre a parte melódica do álbum, eu sinto que ele cria uma atmosfera parecida com um mergulho. Com uma presença mais definida para o eletrônico em comparação aos últimos trabalhos, como foi essa produção?
Jean: É muito doido, né? Eu sinto que foi uma transformação muito natural, eu acho que o disco ele replica uma estética que a gente estava aplicando nos shows. Ele permite novos arranjos com uma estrutura, com uma instrumentação que a gente já usava nos shows. Porque o violão no ao vivo é difícil de encaixar então colocamos de forma diferente, parte do processo de composição desse disco foi para servir uma estrutura de show que desse para circular sem tantos instrumentos. Os produtores musicais são o Lucas Homero, Bruno Jorge, Lucas Silveira, o Jack e eu, então fomos conversar com todos eles sobre a necessidade de ser um disco mais vivo. Nós gostamos de dançar, mas também não gostamos de ficar cansados. Então eu acho que o disco no geral ele é um disco minimamente dançante, mas para ficar com o pé no chão. Quando imaginamos a audição do disco é sempre em um show. Enquanto os outros é para você colocar em casa, tomar um vinho.
Lio: Pra Curar é um disco opaco, tenso, cheio de camada, com pouco silêncio, muito cíclico. Neste, construímos um lugar mais rígido, aberto, mais dub-beat, movimentado, robusto.
D: Eu queria saber um pouco do azul do álbum, porque a estética do azul está bem presente desde o começo da divulgação, como foi essa escolha?
Lio: Aconteceu porque estávamos pensando nos símbolos. O Jean estava falando sobre um território suspenso sobre uma fronteira, que a gente tem chamado hoje de não lugar, ou lugar nenhum. Eu sinto que o azul é uma metáfora interessante, porque antes nos registros da antiguidade ele não era identificado como uma cor. E isso é estranho porque hoje ele é considerado uma cor primária, ele existia na natureza mas não era retratado como azul, ninguém tinha estabelecido um lugar para ele na língua. Eu sinto que é um lugar para nós, tudo que é diferente hoje luta por uma nomenclatura, para ser reconhecido. Diversos grupos lutam por uma nomenclatura hoje e eles sempre existiram, como o azul.