Netinho da Bahia foi um pioneiro do axé baiano. Fã de Luiz Caldas nos anos 1980, o artista, na época ainda comandante da Banda Beijo, foi um dos grandes responsáveis por levar o ritmo nordestino para o restante do Brasil, fazendo parte do primeiro grupo baiano a se apresentar no Domingão do Faustão, lá em 1986.
Levou o ritmo para a Copa da Itália, em 1990, com trio elétrico e tudo. Mesmo trio esse que esteve na Avenida Atlântica, no Rio, na estreia do axé na capital carioca. Com Milla, Menina, Como e uma releitura de Você É Linda, de Caetano Veloso, o cantor conquistou o Brasil e se tornou parte importante da geração que fez do axé uma paixão nacional.
Tudo em sua vida mudou a partir de 2013.
Netinho, nascido Ernesto de Souza Andrade Junior, em Santo Antônio de Jesus, interior da Bahia, teve hemorragia no fígado após uma biópsia. Foi diagnosticado com adenomas no órgão, sofreu com derrames cerebrais, tonturas, paralisia, falta de equilíbrio, perda de peso, voz e memória recente, tudo em decorrência do uso de esteroides androgênicos anabólicos, que são proibidos pelo Conselho Federal de Medicina para fins estéticos.
“Naquele momento eu me vi sem ego. Tudo que dá suporte ao ego humano eu não tinha. Estava sem minhas posses, sem meu corpo, não tinha nada. Nunca pensei em morrer no hospital, acho que o que me salvou foi isso. Mas chorava muito, ficava muito desesperado porque não entendia o que estava acontecendo”, disse ele, em entrevista exclusiva ao Virgula.
A primeira tentativa de retorno aos palcos foi em 2014, mas o sintomas voltaram e Netinho retornou ao Hospital Sírio-Libanês em uma situação psicológica ainda pior. “Tive depressão profunda depois desse show, tentei me suicidar duas vezes. Fui mandado à força para o hospital de novo e fiquei lá mais seis meses”, lembrou ele.
Agora, chegou a hora de tentar de novo. Forte e persistente, Netinho se sente melhor e pronto para o novo desafio. Liberado para fazer shows completos, o músico se apresentou por 1h40 durante o Réveillon em uma festa particular no Rio de Janeiro. No Camarote do Nana, em fevereiro, o cantor retorna ao Carnaval de Salvador onde estreou há quase 30 anos. “Estou voltando agora, com autorização do doutor Kalil [Filho], pra fazer o show inteiro. Olha que maravilha! Já me testei fazendo uma prévia no Rio de Janeiro, em dezembro, cantando 10 músicas e não senti nada de anormal. Fui convidado para fazer o Réveillon no Rio, cantei 1 hora e 40 [minutos]. Ainda tenho desequilíbrio e tontura, mas dancei como pude, fiz minhas palhaçadas lá que adoro fazer, pulei – olha que absurdo! – pulei no show, imaginei que no outro dia não ia sair da cama. Mentira! Estava ótimo, não senti nada, olha que fantástico! (…) Então eu já estou liberado, mas sigo tudo passo a passo pra não ter que fazer o show e correr para o hospital, né? A ideia de Kalil era de apenas um show por mês, mas agora ele já abriu, só pediu que eu faça os shows sempre [com ele] me observando no dia seguinte”, afirmou.
Leia abaixo a entrevista completa
Virgula – Como você se sente, depois de tanto tempo lutando contra tantas dificuldades, conseguir agora retornar ao Carnaval de Salvador?
Netinho – Me sinto vitorioso, porque em vários momentos eu achei que não conseguiria. Logo que fiquei doente, durante o processo – que foi longo, cheio de intercorrências, muitas, algumas até que ninguém soube, porque eu entrei em coma e minha família optou por não propagar nada, fora os boletins médicos do hospital, que não relatavam tudo, bem com o cuidado de me preservar, por isso no meu livro, que lançarei neste ano, eu conto toda a minha história, que foi única, difícil e cheia de eventos misteriosos também. Me ver hoje, em pé, vivo, com voz, cantando… imagine, eu perdi minha voz toda, tive paralisia geral, perdi um monte de coisas. Pra mim é uma vitória fantástica, não só minha, mas do ser humano. Eu estar vivo hoje é uma prova que podemos tudo, conseguimos tudo, se acreditarmos. E outra, minha vida hoje é uma prova de que não devemos desistir de nada nunca. Dos sonhos e, principalmente, da vida, independente do que aconteça. Tentei desistir duas vezes. Tentei dois suicídios em 2014 e não deu certo, porque sou medroso. Aprendi a valorizar a vida como nunca.
Virgula – O que passou pela sua cabeça quando você foi contratado para fazer o show?
Netinho – Não tenho nem como te definir, porque fiquei tão feliz, tão contente, tão grato, muito agradecido, porque, como você sabe, em 2012, antes de adoecer, eu decidi ir morar no Rio de Janeiro porque eu estava um pouco cansado de tudo que vinha acontecendo no Carnaval aqui da Bahia, insatisfeito com os caminhos que a nova música baiana tomava e me sentia fora da festa. Em 2013, cheguei a fazer o Carnaval da Rio de Janeiro, lá na avenida Vieira Souto. Adoeci em 2013 e fiquei sem cantar no Carnaval da Bahia desde então. Estou comemorando triplamente. Primeiro minha vida, que vou comemorar sempre; segundo, a volta ao Carnaval e em Salvador; e terceiro por ser no palco do Camarote do Nana, que é fantástico e me traz uma lembrança maravilhosa, porque no ano de 2000, ainda quando o Nana Banana desfilava na rua no Circuito Dodô, fui convidado para puxar o bloco, e foi um dia lindíssimo. Cantei para um público que não era o meu, mas foi um momento lindo da minha vida.
Virgula – O que esses anos de tanta luta mudaram na sua percepção em relação sua própria vida?
Netinho – Eu digo a você que reaprendi a viver. Em tudo. Porque só pra lhe citar um exemplo, quando fui transferido do Hospital Aliança (Salvador) para o Sírio Libanês (São Paulo), quando eu acordei, dois dias depois porque entrei em coma, eu abri os olhos e não lembrava de nada. Olha que situação: você acordar em um hospital, só vendo teto branco, sem saber onde estava, quando era aquilo… tentei mexer meu corpo e não tinha nada, eu estava completamente paralisado, não tinha movimento nenhum e só mexia meus olhos. Me assustei quando a imagem começou a clarear, eu comecei a ver pessoas no meu quarto e tentei gritar, chamar pelo nome, mas não tinha voz. Por um triz eu não fiquei louco. Eu entendo hoje que se não estivesse em um estágio tão ausente por tantos remédios que estava tomando, eu teria ficado louco, porque eu entendia e não entendia o que estava acontecendo ao mesmo tempo. E vi naquele quarto, que não sabia onde era, uma amiga de São Paulo, uma amiga de Portugal, da cidade do Porto, uma amiga de Salvador e uma de Natal. Fiquei louco! Não sabia se estava em São Paulo, Natal, Rio de Janeiro onde estava morando, fiquei louco. Depois disso tudo, a mente dá um reset. Ela, ela… como se apagasse tudo e começasse a aprender tudo de novo. Da mesma forma como tive que reaprender a andar, reaprender a falar, reaprender a fazer tudo de novo, como se fosse um recém-nascido. Então esse reaprendizado, até dos movimentos motores do corpo, foram idênticos ao reaprendizado da vida toda. Tudo mudou pra mim. Naquele momento eu me vi sem ego. Tudo que dá suporte ao ego humano eu não tinha. Estava sem minhas posses, sem meu corpo, não tinha nada. Nunca pensei em morrer no hospital, acho que o que me salvou foi isso. Mas chorava muito, ficava muito desesperado porque não entendia o que estava acontecendo. Até que minha memória começou a entender. Então mudou tudo, minha noção da vida, a ideia de que podemos ser positivos e melhor a cada dia, a noção de que a opinião do outro não importa pra ninguém. Graças a Deus minha autoestima sempre foi muito alta – e é ainda. Nunca precisei de elogio pra ser feliz, sou um admirador de mim mesmo. Isso tudo se revelou muito forte depois do que eu passei, porque pra mim isso é a vida real. Porque eu acredito que nossa experiência de estarmos aqui é individual. Tudo em nossa volta, nossas posses, são testes, provas, nós seremos o que nós fizermos dessa prova.
Virgula – Como você está de saúde agora? Quais foram as recomendações médicas para a realização do show?
Netinho – Eu tentei fazer show em 2014, no Citibank Hall, Rio de Janeiro. Passei um mês de cama e voltei para o hospital. Tive depressão profunda depois desse show, tentei me suicidar duas vezes. Fui mandado à força para o hospital de novo e fiquei lá mais seis meses. 2015 saí e fui liberado para fazer show, cantando apenas cinco músicas. Fiz quatro em duas semanas, três em Recife e um no Rio de Janeiro. Passei mal, meu nariz sangrou, minha tontura aumentou muito e eu tive que voltar para o hospital. Mais cinco meses. Depois mais três. Depois mais dois. Em seguida, só revisões. Estou voltando agora, com autorização do doutor Kalil [Filho], pra fazer o show inteiro. Olha que maravilha! Já me testei fazendo uma prévia no Rio de Janeiro, em dezembro, cantando 10 músicas e não senti nada de anormal. Fui convidado para fazer o Réveillon no Rio, cantei 1 hora e 40 [minutos]. Ainda tenho desequilíbrio e tontura, mas dancei como pude, fiz minhas palhaçadas lá que adoro fazer, pulei – olha que absurdo! – pulei no show, imaginei que no outro dia não ia sair da cama. Mentira! Estava ótimo, não senti nada, olha que fantástico! A partir daí, consultei o doutor Kalil e a pergunta foi: ‘Netinho já pode fazer show?’ e ele disse: ‘bota esse moleque para trabalhar’. Então eu já estou liberado, mas sigo tudo passo a passo pra não ter que fazer o show e correr para o hospital, né? A ideia de Kalil era de apenas um show por mês, mas agora ele já abriu, só pediu que eu faça os shows sempre [com ele] me observando no dia seguinte. João, cheguei a tomar 28 remédios por dia enquanto estava internado, isso tirando o que vinha pela veia. Não tomo mais nada hoje. Além da tontura constante que eu sinto, que é um processo longo para que vá embora e eu já aceitei isso e trabalho com essa aceitação. Não sinto mais nada, meu amigo. Tenho essa tontura, esse desequilíbrio que faz com que eu não possa caminhar muito rápido, mas que não me impede de cantar. Minha voz… ainda não a tenho como antes, porque também é um processo longo, mas me foi dito que minha voz, com toda a fono[audiologia] que eu fiz nos últimos quatro anos, só voltará quando eu começar a fazer shows de verdade, como fiz no Réveillon, porque eles disseram que isso também é um trabalho da mente.
Virgula – Você pretende sair em turnê ou gravar novos projetos após o Carnaval?
Netinho – Minha turnê já está lançada! Fiz o show do Réveillon, estou fazendo agora o [Camarote do] Nana e vou seguir fazendo shows pelo Brasil. Eu, como cantor baiano, nunca tive a turnê organizada como os artistas do Sul fazem. ‘Nós vamos para a Bahia, depois para Minas Gerais, depois Espírito Santo…’ nunca. Sempre foi uma coisa menos organizada, nós vamos para o Norte, depois vai pra lá, vem pra cá… aquela loucura de sempre. Então, vou seguir fazendo isso. Sobre música nova, eu não pretendo gravar agora, só no verão do ano que vem. Meu show agora vai ser focado na minha música, meus sucessos, e nos sucessos do axé dos anos 1990, que pra mim foi a música mais gostosa que tivemos no Brasil. Tudo que eu gravei foi romântico, então o show que levarei para o Brasil até o começo do ano que vem é esse. É um show baseado nos meus sucessos todos e no axé que gosto de tocar.