A música brasileira está de roupagem nova e é desafiadora, contestadora e libertadora, de um jeito quase nunca visto antes. Liniker, Rico Dalasam, Lay, As Bahias e a Cozinha Mineira, MC Linn da Quebrada e Juprincess do Bairro são alguns nomes da cena queer que estão dando a cara a tapa e se destacando na mídia de uma sociedade conservadora, conquistando um público que cresce absurdamente por meio de seus trabalhos, que vão do soul a mpb, e do rap ao funk. Todos feitos com maestria.
Para falar sobre esse estado atual da música brasileira, da questão de gênero, e de como os dois assuntos se relacionam e são encarados pelo público, o Virgula juntou toda essa galera, no prédio da Red Bull, em São Paulo, durante o Pulso. Como se fosse um lero de bar, os novos artistas soltaram o verbo e não pouparam pudor nas respostas. Assuntos como o preconceito e empoderamento, por exemplo, também foram abordados. Vê aí que o papo é dos mais interessantes, e, se depender deles e dos fãs, a conquista está só começando. O babado é forte.
ACEITAÇÃO E REPRESENTATIVIDADE
“Desde sempre as pessoas sentem a necessidade de se ver nos veículos, desde a aparição de Ney Matogrosso e Ângela Ro Ro, por exemplo. Então, quando a gente existe, fazemos visível um monte de gente que sempre foi invisível”, inicia a conversa Rico Dalasam, o primeiro rapper assumidamente gay do país. Liniker, um dos nomes mais falados da atualidade, e que usa a arte para transmitir sua identidade como homem gay e negro, segue a mesma linha de pensamento: “Hoje vejo que está rolando um lance das pessoas perderem o medo de não se colocarem. Tem muita gente se colocando. É um fluxo de uma coisa que já existia e estamos vindo para ressignificar isso, para falar que existimos e fazemos parte disso”.
A rapper Lay, que propaga o discurso empoderador e feminista por meio de suas músicas, entra na conversa: “Sempre teve um público, e vejo que ele carece de pessoas assim como nós, de sermos as pessoas que vão estar à frente da parada levando a mensagem. Figuras como nós sempre existiram, não somos novidade, mas acho que o público estava precisando de algo mais fresco, com um ar jovial.”
MÚSICA E GÊNERO
“A música é a nossa voz”, fala Lay em tom firme, e continua: ” Eu, como mulher me sinto na obrigação de levar essa mensagem por essa ferramenta de informação. Toda mulher tem um pensamento real e muitas vezes é além do que é vendido. Eu tenho a necessidade de ser esse instrumento e falar coisas que não ouvimos por aí.”
Dalasam também se vê nessa função de ser o porta-voz de seu público e fala o quanto a música o ajudou: “Sabe, a música sempre foi tudo o que eu tinha, tudo o que eu falava e escutava. Tinham músicas que me ajudaram a me entender, a me descobrir e olhar com firmeza para dentro de mim. Hoje poder fazer música que represente isso para as pessoas é fundamental pra mim. A ideia é cantar para mais pessoas e que cada uma delas possa se encontrar”.
“As pessoas pensam que bicha não faz cultura. Só que estamos fazendo música e tendo todo esse alcance. Então, levar essa representatividade para tanta gente é importantíssimo e mostra o quanto o gênero têm qualidade. São coisas que estão caminhando juntas. A partir do momento em que a pessoa vê a bicha cantando, começa a respeitar.”, lacra Liniker.
PRECONCEITO
Mesmo com toda a exposição, e adoração dos fãs, os artistas contam que não conseguem sair ilesos do preconceito. “Se as pessoas me conhecem são em certos lugares específicos, pois eu circulo pela cidade nesse eixo de voltar para a periferia, onde eu moro, de transporte público mesmo. Se eu subo de salto e unha pintada no ônibus, sofro o mesmo preconceito que as outras pessoas. Ali não somos artistas. Então, as coisas continuam meio iguais, e espero que mude, só que não pode mudar só pra mim, tem que mudar geral, tá ligado”, relata Dalasam.
Raquel Vírginia, transsexual e uma das vocalistas da banda As Bahias e A Cozinha Mineira também passa por situações parecidas, embora o reconhecimento tenha aliviado um pouco o preconceito: “Sinto um privilégio por ser travesti negra. Em alguns lugares, como padaria, manicure, por exemplo, sou super bem tratada; primeiramente porque trato todo mundo com respeito, outra, porque eles sabem quem sou. Mas, em Banco o gerente sempre acha que sou garota de programa. Então, tem dessas coisas, as pessoas que antes me viam na rua e achavam que eu era garota de programa, hoje me tratam bem porque já me viram na televisão”. Liniker complementa: “Se a gente não tivesse essa visibilidade hoje, continuaríamos sendo o povo da periferia que sofre preconceito a todo momento. O desrespeito ainda rola, muitas vezes até em cima do palco. Mas no instante em que você tem visibilidade, as coisas melhoram”.
Assucena Assucena, que também é transsexual e outra metade vocal das Bahias e A Cozinha Mineira, conta que preconceito artístico também rola com elas: “Somos muito desrespeitadas com a nossa obra porque insinuam que a gente não compôs o nosso próprio disco, como se interpretação fosse uma coisa menor. A música é um ambiente totalmente machista e dominado por homens. Daí, quando vêem duas travestis entrando em cena, automaticamente colocam a divisão desse trabalho da mulher como se ela fosse menor, e não nos dão espaço para perceber que a composição é totalmente nossa”.
Lay manda a real: “É muito louco isso, porque o respeito vem do trabalho. Antes eu era público e hoje eu tenho um trabalho. Então, vejo outros artistas me respeitando assim como eu os respeito. Viemos do gueto e não vamos perder a essência. Damos vários rolês na rua, de madruga. A diferença de tratamento é mais pelo respeito”.
EMPODERAMENTO
Assucena celebra que está rolando um empoderamento das minorias: “Eu assisti a entrevista do Liniker no programa do Jô Soares e tive uma sensação de empoderamento. Sabe, quando você vê uma bicha preta com todo aquele arcabouço cultural, aquele jogo de voz, um instrumento poderoso de manifestação política, social e artística, se manifestar em um programa de circulação nacional, você percebe um choque, uma contradição colocada ali que foi exposta. Temos que disputar esses espaços e estamos chegando. Temos que nos empoderar onde queremos estar, e isto está acontecendo.”
“As pessoas sabem do nosso poder de voz porque estamos com o microfone na mão, e o tamanho da nossa ousadia é grande. Se mexer com a gente, vamos colocar a boca no mundo”, finaliza Dalasam.