João Ricardo - Secos & Molhados


Créditos: gabriel quintão

O ano era 1973. Emílio Garrastazu Médici comandava o Brasil com mãos de ferro, a Ditadura Militar estava no auge e a inflação engolia o salário dos trabalhadores. Na televisão, uma banda formada por três homens requebrava de modo lascivo. Além da dança sensual, a voz aguda e feminina do vocalista quebrava paradigmas e confundia ainda mais a cabeça do público. O figurino era composto por plumas, paetês e penas, que pouco cobriam os corpos extremamente magros dos músicos. Era complicado entender tanta informação. O som que produziam misturava como um liquidificador rock, poesia, luta política e guitarra latina.  

Uma revolução musical estava em curso e se apresentava com um nome de difícil digestão: Secos & Molhados. A banda formada pelo imigrante português João Ricardo no começo da década de 70 estava disposta a quebrar a caretice empurrada goela abaixo pela ditadura e levar às últimas consequências a antropofagia musical do movimento tropicalista. Rapidamente as faixas do álbum homônimo Secos & Molhados alcançavam o topo das paradas de sucesso de todo o país e a banda se transformava no maior fenômeno da música brasileira de que se tinha conhecimento até então.



Arrancando declarações de amor e olhares de repreensão por onde passavam, os jovens João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad ditavam moda e lançavam tendência. Com críticas ácidas e letras descomplicadas, o álbum apresentava sons que viriam a se tornar clássicos mais tarde: O Patrão Nosso de Cada Dia, Rosa de Hiroshima e Primavera nos Dentes, além de faixas de forte apelo popular, como Sangue Latino, As Andorinhas e O Vira. Sempre na lista dos melhores discos da história da música brasileira, o álbum Secos & Molhados ultrapassou a marca de um milhão de cópias vendidas.

Em 2013, o álbum completa 40 anos. Para comemorar a data, João Ricardo, acompanhado do músico Daniel Iasbeck, sobe ao palco do lendário Teatro Itália nesta quinta-feira (22) – mesmo local onde foi lançado o disco original – para estrear uma temporada de shows repletos de música, poesia e muita história. Para aquecer os motores, o Virgula Música entrevistou o músico João Ricardo, que falou sobre os anos dourados dos Secos & Molhados, a relação com Ney Matogrosso e o atual cenário da música mundial. Leia a entrevista na íntegra: 

Virgula Música: Como começou seu interesse pela música?
João Ricardo:
Sou português, me mudei para o Brasil ainda garoto. Cheguei aqui muito jovem e tomei um susto quando descobri que ninguém conhecia os Beatles, entrei em desespero. Meu avô havia me dado um compacto antes de nos mudarmos, eu o ouvia repetidamente e achava aquilo o máximo. Depois eu comecei a trabalhar como jornalista, mas o meu sonho era fazer música. Trabalhava como crítico musical em alguns veículos. Nas horas vagas, eu compunha e sonhava em montar uma banda. 

Virgula Música: Você foi o compositor dos maiores hits dos Secos & Molhados. Quais foram as referências musicais durante a concepção do trabalho? 
João Ricardo: Na época eu ouvia muito Beatles e Rolling Stones, mas obviamente não são influências diretas para o som da banda. Quem me deixou mesmo enlouquecido foi o trio Crosby, Stills & Nash. Fui ver o filme sobre o festival Woodstock e fiquei maravilhado com o que eles conseguiam fazer com três violões. Era basicamente o que nós também fazíamos. Três caras que cantavam e tocavam violão. A diferença é que eles estavam fazendo isso para um público de 500 mil pessoas. Essa ideia ficou na minha cabeça e foi uma influência real para o trabalho que fizemos depois.

Virgula Música: Os Secos & Molhados são lembrados como uma banda que ditou tendência com o figurino de patês, máscaras e plumas. De quem foi a ideia de ousar também no visual? 
João Ricardo: Eu e o Ney fomos ver um show dos Mutantes, que na época tinham acabado de perder a Rita Lee. Eles eram a banda do momento, com uma grande estrutura e um som progressivo. Nós vimos o espetáculo até o fim, então eu olhei pro Ney e falei: ‘é, estamos ferrados’. Saímos do show e passamos horas pensando em um diferencial para a nossa banda. Eu era bastante ligado ao teatro e decidimos levar ao extremo essa questão do figurino, máscaras e pinturas. No fim das contas, nos estouramos. O Vira foi a música mais executada durante o Carnaval de 1975. As crianças nos imitavam nas matinês, e alguns pais detestavam, mas a maioria nos adorava. 

Virgula Música: Você acha que no contexto atual isso seria possível? Nós encaretamos? 
João Ricardo: Sem dúvida alguma! A concepção do careta pra mim não está relacionada à roupa, à maneira de se vestir ou às bobagens que você faz quando é adolescente. É uma questão de processo pedagógico. Como hoje alguém pode ter preconceito contra homossexuais? Há 40 anos havia preconceito porque era um assunto sobre o qual não se falava, não se debatia. Mas hoje nós falamos e parece que existe ainda mais preconceito. Você ouve uma entrevista minha ou de qualquer outro artista da minha geração, e todo mundo está falando sobre isso. Enquanto isso a geração que hoje tem metade da minha idade se diz preconceituosa. São todos uns bundões!

Virgula Música: A religião tem um grande peso nesse processo? 
João Ricardo: A religião tem um grande peso sim, mas também é questão de educação. No comando dessas igrejas evangélicas que estão dominado o Brasil estão pessoas ignorantes. O cara é praticamente analfabeto, não sabe escrever, não sabe ler, é pastor e ganha milhões. Não consigo entender que as pessoas parem para ouvir um cara desses. Não discordo das crenças, mas do oportunismo que gira em torno da fé alheia. São as pessoas que querem se aproveitar do outros para ganhar dinheiro. Isso também acontece na música.

Virgula Música: Como você enxerga o atual cenário da música? 
João Ricardo: Eu vivi a minha adolescência durante os festivais de música da Record, com a Jovem Guarda e com Tropicália, Beatles e Stones. Como hoje alguma coisa vai me interessar? A MPB tornou-se uma repartição pública. Você trabalha para a MPB e não pode fazer nada diferente, todo mundo tem a fórmula do sucesso e estão seguros naquilo. É só uma cópia do que se fazia há 30 anos. Enquanto os jovens estão exatamente na corrente oposta, você ouve o que quiser, quando quiser. O disco não existe mais. Talvez estejamos voltando para aquilo que é mais importante na música: a qualidade. Na verdade, eu ouço as coisas que a minha filha de 12 anos me mostra.

Virgula Música: E o que ela gosta de ouvir? Você interfere no gosto musical dela?
João Ricardo: É uma adolescente que ouve música pop norte-americana. Ela gosta de Demi Lovato e One Direction. Ela me pede para ouvir e dizer o que eu acho, sou sincero e justifico as minhas críticas. Mas eu gosto do Justin Bieber. Ouço um monte de gente detonar esse garoto, mas ele é bom. Certa vez o vi tocar com o Santana em Nova York. Ele pegou o violão, no improviso, tocou e cantou, ao vivo. Ele sabe fazer! Você pode não gosta da música dele, mas é o único que realmente faz música nessa nova geração”. 

Virgula Música: Sobre as maquiagens, afinal quem copiou quem? As pinturas do Kiss foram influênciadas pelos Secos & Molhados? 
João Ricardo: 
Eu soube da existência do Kiss em 1974 quando alguém me mostrou o disco deles e me perguntou se eu ao conhecia. Eu olhei para a capa do disco e falei ‘nossa, olha a gente aí’. O que aconteceu foi que nosso empresário da época colocou um anúncio sobre os Secos & Molhados na revista Billborad, que na época era a mais importante do seguimento no mundo. Nós pagamos a publicidade e pouco tempo depois recebemos uma proposta de uma gravadora que queria nos contratar. Eu recusei. Não deu outra, pouco tempo depois eles lançaram o Kiss. É claro que não dava para reproduzir a nossa sonoridade, mas o estilo é o mesmo. 

Virgula Música: Você vai se apresentar ao lado do músico Daniel Iasbeck para comemorar os 40 anos do disco Secos & Molhados. Há a possibilidade de uma reunião com o Ney Matogrosso? 
João Ricardo: Esses dias o zelador do meu prédio me perguntou por que a gente não se reunia e voltava a usar perucas? A resposta é óbvia. Eu tenho 63 anos, o Ney tem 72, imagina a gente de peruca rebolando no palco? É incabível! A impressão que me fica é que as pessoas gostariam de ver aquelas duas figuras juntas no palco, por uma memoria afetiva. Só que ninguém se dá conta de que somos senhores de idade. Aquilo que nos fazíamos é impossível de reproduzir hoje!

Virgula Música: E como é a sua relação com o Ney? São amigos? 
João Ricardo: Não existe mais uma sinergia entre a gente. Ele foi enquadrado pela MPB, acha que é como Gal Costa, Bethânia, Chico Buarque, entrou nessa onda. Mas o que ele não percebe é que fomos muito melhores que tudo isso. Não houve ninguém maior que os Secos & Molhados em termos de sucesso, ninguém! Não importa que tentem eliminar a importância daquele disco, mas o fato é que existe um antes e um depois do disco. Depois daquele álbum, as pessoas entenderam que são livres para escolher o que consumir. Mostramos que existia a música de qualidade e o resto. 

SERVIÇO: 

O que: Secos e Molhados 40 anos
Quando: De 23 de Maio a 13 de Junho
Horários: Quintas às 21h
Duração: 90 minutos
Valor: R$ 60,00 (inteira) – R$ 30,00 (meia)
Onde: Av. Ipiranga, 344 – República, São Paulo
Telefone: (11) 3255-1979


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