Nunca antes na história desse país a filosofia punk do faça você mesmo havia ido tão longe. O cientista maluco autodidata Arthur Joly, paulistano de 38 anos, não apenas montou suas próprias bandas, selos e estúdios, mas ao longo de pouco mais de 15 anos desenvolveu sua própria tecnologia para construir sintetizadores modulares e cortar vinis.
Joly é o Professor Pardal que criou essa lindeza aqui, o Jolymod III:
Os sintetizadores modulares, cujos modelos mais conhecidos são da marca Moog, são instrumentos analógicos em que diferentes partes dele se conectam por meio de arranjos (patchs). Seu som, resultado do controle de voltagens e do formatos de ondas e diversas combinações estiveram por trás da sonoridade de mestres da produção como Giorgio Moroder e Brian Eno e artistas como Kraftwerk, David Bowie, Donna Summer, Tangerine Dream, Vangelis, Jean Michel Jarre e Depeche Mode.
“Descobri através da internet que dava pra construir kits de sintetizadores e como eu sempre fui fuçador de solda e tudo mais, comprei um kit, deu certo, comprei outro kit, deu certo. E em menos de um ano, eu já estava montando”, afirma ele ao Virgula. “Os sintetizadores analógicos têm vida própria. Eles são sensíveis à temperatura, os botões e cabos influenciam, o tamanho do cabo influencia na afinação. Eles são seres que se você deixar ligado de um dia pro outro, no outro dia você pode voltar e eles estarem com um som diferente. É um bicho esquisito”, detalha.
Veja vídeo de Joly fazendo um sintetizador funcionar
Como se não bastasse a loucura de aprender a fazer sintetizadores sozinho, Joly também vem se tornando referência na prensagem de vinis no Brasil. Ele se prepara para a iminente chegada de novas fábricas no país, atualmente só existe a Polysom, no Rio. “Meu foco hoje em dia é ter essas fábricas abertas, pra quando eles abrirem, as matrizes serem feitas no meu estúdio obrigatoriamente, porque não tem outra máquina”, diz Joly. Bem, talvez ele não seja tão louco assim.
Eu e o fotógrafo Gabriel Quintão o encontramos no Red Bull Station, em São Paulo, enquanto ele participava do Pulso, projeto voltado para criação de novos sons e pesquisas que reuniu 30 artistas de diferentes durante dois meses que se encerrou na semana passada.
O que veio primeiro o vinil ou o sintetizador?
Arthur Joly – Eu sou produtor musical e comecei a produzir meus primeiros discos em fita cassete com um Tascam de fita, então meus dois primeiros discos eram extremamente analógicos, em que eu metia a mão na massa mesmo. Nem existia muito a tecnologia de computação na música. Então isso foi uma coisa que eu apreciei. Meu primeiro vinil, feito com músicas minhas, foi em 2007, sete anos depois que eu tinha assumido a vida como produtor musical. Fiz na Polysom e quis fazer na época em que até pouca gente fazia porque na época pra mim era o ápice do analógico. Fazer o disco e vê-lo em formato físico em que você colocasse uma agulha. Pra mim, isso sempre foi mágico. Tinha saudade dos meus vinis de infância e o quanto isso era importante. Ouvir os discos vendo capa, lendo ficha técnica, na época do CD isso me fez falta.Mas a história inteira foi toda acontecendo meio sem querer. Mais ou menos em 99, eu tinha três banda e nenhuma delas era aceita por gravadoras. A gente mandava demos, que na época era o único jeito de fazer um disco, fazer demos e alguma gravadora te chamar. Depois de tentar várias vezes e não dar certo, eu falei, quer saber, eu vou abrir minha própria gravadora e fazer em CD-R, que era uma coisa que tinha acabado de sair. Aí eu fiz três títulos em CD-R, de músicas minhas, um era de música eletrônica chamado Mugomango, todo feito em computador, outro era uma banda chamada TchucbandioniS, que eu era vocalista e guitarrista, e a outra era a banda Labo, que surgiu a partir de uma jam, que era no MAM, no Ibirapuera e depois foi pro Blen Blen virou um evento.
A gente lançou os três discos, eu e o pessoal dessas bandas, resolvemos bancar e fazer capas pintadinho à mão. E logo depois surgiu oportunidade de fazer mil cópias de CD por um preço razoável, aí essas mesmas três bandas de juntaram e fizemos mil cópias. Na mesma época, surgiu a Tratore, que é uma distribuidora independente, e a gente começou a distribuir o disco em lojas.
Arthur Joly
Créditos: Gabriel Quintão
Aí já era Reco-Head?
Joly – Isso, a Reco-Head surgiu daí. Por essa falta de gravadora, eu criei o meu selo, começou com bandas minhas, passou um tempo, ela começou a aglutinar os amigos. Até que em 2003 surgiu a Elza Soares querendo fazer um disco comigo. Não só como produtor, compositor, e me convidou pra ser o selo dela.
Com 26 anos, eu estava com o peso de um mainstream nas costas achando que ali eu tinha achado o meu caminho. Só que calhou de ser uma época em que as gravadoras já estavam começando a decair, por causa da pirataria digital. Então, o disco que foi calculado vender 30 mil cópias pra se pagar até hoje não vendeu nem 20 mil. Foi um prejuízo que a gente levou e isso me fez dar uma desacelerada na história de selo.
Eu sempre mantive minha história com produtor musical com banda, porém meu ganha-pão mesmo, meu dia a dia, acabou sendo música pra publicidade. Isso veio acontecendo até uma época eu que eu comecei a ter uma renda extra, que dava pra comprar equipamento e eu me apaixonei pelos sintetizadores, que eram coisas que eu já gostava há muito tempo.
Aí comecei a comprar no e-bay, sintetizador, sintetizador. Uma época eu me separei, sobrou mais dinheiro ainda, eu comecei a comprar sintetizador, meu estúdio ficou parecendo um loja. E eu, “pô, tenho vários sintetizadores analógicos, na época do meu disco eu usava tudo virtual, agora eu tenho eles, porém eu não tenho um modular, que é aquela parede, telefonista e tal”.
As poucas vezes que eu procurei, não dava pra comprar, era caríssimo, não dava pra trazer. Aí eu descobri através da internet que dava pra construir, kits de sintetizadores, e como eu sempre fui fuçador de solda e tudo mais, comprei um kit, deu certo, comprei outro kit, deu certo. E em menos de um ano, eu já estava montando os Reco-Synths, que é vertente Reco-Head para os sintetizadores.
Isso não faz muito tempo, foi em 2009. Nesses seis anos eu construí mais de 30 sintetizadores diferentes, cada um com uma especificação, cada um de um tamanho, mas os principais que eu me orgulho e mais utilizo nas minhas produções são os Joly-Mods, que são os gigantescos. O Jolymod I fica no meu estúdio porque ele foi construído de um jeito que parece um piano de cauda, então fica difícil de transportar. O II fica na casa de um amigo que logo de cara comprou. E o III é o que eu trouxe para a Red Bull para deixar durante o Pulso, em agosto aqui, que é pra ser usado pelos músicos. Porque, pra mim, eu não fiz pra meu uso, fiz para que as pessoas usassem em discos e que isso fosse lembrado em uma ficha-técnica, de preferência em um vinil, “usei um Jolymod”.
Eles têm até nome, é uma maneira de humanizar o instrumento?
Joly – Os sintetizadores analógicos, eu digo que eles têm vida própria. Eles são sensíveis à temperatura, os botões e cabos influenciam, o tamanho do cabo influencia na afinação. Eles são seres que se você deixar ligado de um dia pro outro, no outro dia você pode voltar e eles estarem com um som diferente. É um bicho esquisito. E como o que eu mais gosto é de criar os designs e as carcaças, o meu negócio é não fazer nunca um igual ao outro, apesar de já ter feito em série. O que eu gosto mesmo é dar um nome pra cada sintetizador, é uma fase da minha vida, eu documento, tiro fotos do processo, catalogo no meu site. E aí sempre que acabo um já emendo em outro.
E o lance de prensar vinis?
Joly – Durante esse meu processo de ter banda, eu sempre fui fascinado pelo processo de masterização, que é o processo final de fazer um disco, você vai num engenheiro de master e aí você, pá, carimba o final do seu disco. Toda vez eu que eu ia masterizar na Classic Master, com o Carlinhos Freitas, eu sempre pensava, talvez um dia eu queira masterizar um disco. Um dia eu peguei um compressor, que é um equipamento que usa-se pra isso. E eu consegui tirar um som meio parecido com o do Carlinhos para aquela música em especial.
Aí, eu pensei, pô, será que eu consigo? E eu passei cerca de dez anos comprando equipamentos de masterização, que são caros e dependem de você ir buscar no exterior ou encomendar. Então, é uma coisa que eu fui fazendo muito aos poucos, porque é caro, e também pra ir praticando. A master é uma coisa que você tem que pegar confiança. Durante um tempo masterizei só coisas minhas, depois coisas do selo, aí há um ano e meio eu resolvi abrir a Reco-Master que é um estúdio de masterização, que atende a qualquer banda que chegar lá.
Ouça TchucbandioniS
Eu tava com a Reco-Master, o Reco-Synth e a Reco-Head e aí um dia um cara me ligou e falou. “Eu fiz aí na internet uma pesquisa, vi que você mexe com solda, masterização, eu tenho aqui uma máquina de cortar vinil”. Eu falei, poxa, e aí? “Olha, ela tá quebrada, eu queria ver se você podia me ajudar”. Eu falei, cara, eu só ouvi falar em uma máquina de vinil até hoje, que era do DJ Xerxes, que em 99/2000, a Red Bull até ajudou a arrumar essa máquina. Aí, ele falou, é essa mesmo, ela ficou dez anos quebrada, eu peguei e estou tentando consertar. Eu precisava arrumar aquela máquina, não podia existir uma máquina dessa parada no mundo. Eu sabia que era uma máquina Neumann, que existem pouquíssima e aquilo deveria ter um valor não só histórico, mas pro futuro também.
Uma máquina dessas funcionando tira a obrigatoriedade de fazer sempre fazer master de vinil na Polysom, no Rio. Aí, eu entrei nessa de cabeça. Não importa o que eu tivesse que fazer, essa máquina ia funcionar. Aí, foi isso, me envolvi, levei a máquina pro meu estúdio, em dois anos a gente conseguiu fazer a máquina funcionar. Fui pra Nashville aprender a cortar disco de vinil. E ela começou a funcionar de fato em outubro do ano passado. Não faz nem um ano que ela tá cortando discos e nesse meio tempo tanta coisa aconteceu que hoje eu tenho essa máquina que eu comprei do (Bruno) Niggas, que é de master, tem uma segunda máquina que eu comprei de um alemão, que eu faço dubplates, que é a máquina que irá fazer os cortes do Pulso, o Niggas, que era o meu sócio agora tem uma empresa que corta os discos quadrados, com outro torno que eu reformei, estamos fazendo um outro torno pra ele.
E eu agora estou focando essa máquina, a inicial, pra fazer só master em acetato pra quando abrirem as fábricas novas no Brasil, pra que eu seja o fornecedor da matriz, que é a primeira cópia do vinil. Então, esse é meu foco hoje em dia, ter essas fábricas abertas, pra quando eles abrirem, as matrizes serem feitas no meu estúdio obrigatoriamente, porque não tem outra máquina.
E você acha que a estética da música também está acompanhando essa volta do vinil e do sintetizador?
Joly – Na verdade, o que aconteceu? Tanto o sintetizador modular, quanto o vinil, eles só foram extintos porque a indústria deu uma virada de tentar ganhar mais, mais rapidamente. O vinil deixou de existir porque surgiu uma mídia muito mais barata e no tempo em que você faz um vinil, você faz 30 CDs, o que você gasta pra fazer um vinil, você faz mil CDs, então, quando surgiu esse novo formato e ainda tirou algumas coisas que o vinil tinha de ruim, o chiado, o tamanho, que algumas pessoas não gostavam. Então, quando surgiu o CD, o vinil foi deixado de lado porque a indústria obrigou as pessoas a amarem o CD. Amou durante um tempo até aparecer o MP3. Só que o vinil tem qualidade e coisas incríveis que não deixaram de existir quando surgiu o CD.Então, a indústria, de certa forma, acabou, tanto que a maioria das máquinas brasileiras foi derretida, mas ainda bem que sobraram alguns caras que mantiveram pra ter essa retomada. Na verdade, nem é uma retomada que vá crescer agora que está em voga e sumir de novo. Ela vai ter essa subida e eu acredito que fique nesse patamar pra sempre como uma das possibilidades. A banda pode fazer um videoclipe, um CD no iTunes, uma camiseta, um vinil. Vira parte do kit.
Ouça Mugomango
Eu acho que toda banda tem vontade de ter o vinil e se tiver condição de pagar, vai ter. Não tem por que não ter. E acho que pro músico, pelo menos pros músicos da minha geração, eu tenho 38 anos, ter um disco lançado em vinil e como levantar um troféu. Tá vendo, a minha banda existe e tem até disco de vinil. Eu acho que é uma coisa que faz parte do mito.
E com relação aos sintetizadores a mesma coisa, os modulares deixaram de existir porque começaram a surgir menores, mais práticos, você não precisava ficar trocando cabo, o timbre você trocava digitalmente. Até que chegou no plug-in, que você liga o computador e tem 700 sintetizadores. Ele é prático, porém, o som de um sintetizador, a possibilidade que um modular te dá de criar timbres e viajar numa onda, é única. Por isso que eles estão de volta, em diversas formas. A mais popular hoje é o Eurorack, que é um padrão que você encaixa vários fabricantes em um mesmo case.
Você, pessoalmente, o que te dá mais satisfação na música hoje?
Joly – Putz, o que mais me deixa feliz é vez as coisas acontecendo com as pessoas que eu conheço. Me deixa feliz é ver uma banda que começou o cara sozinho no quarto tocar na rádio, ver um post do cara feliz pra caramba que tá conseguindo viver de música. Ou ver uma matéria com o cara que lá no meio ele fala, “pô, usei os sintetizadores do Joly”. Coisas desse tipo que meu deixa feliz na música.
Eu, atualmente, optei por não fazer tanta publicidade, fazer mais música. Então, financeiramente, eu tô numa das piores fases da minha vida, comparadas com a fase da publicidade, mas disparado eu tô na fase mais realizado e feliz com minha profissão, que eu tô trabalhando com coisas que realmente me deixam feliz. Ver uma música ficar pronta, ver um cara levantar um vinil lá no meu estúdio como se fosse um troféu dele. Ver as pessoas postando vídeos usando o Joly-Mod, isso pra mim é a coisa que mais me deixam feliz, certamente.
Você acha que a música aqui no Brasil, do tempo que você começou a produzir,está mais acessível e está aparecendo mais gente talentosa?
Joly – Gente talentosa sempre teve, agora as pessoas ficam mais facilmente conhecidas ou reconhecidas. Na época, era dificílimo, era ou MTV, ou rádio, ou, sei lá, festival de colégio, não tinha meio termo. Agora, com esse jeito de você poder fazer uma página, você poder fazer shows em vários lugares ou até essa iniciativa aqui no Pulso, eu acho fantástica. Os festivais que tem. Melhorou em vários sentidos.
A indústria fonográfica tem muito pouco tempo de vida. Se você pensar quando saiu o primeiro disco de vinil, 1950, não faz nem 70 anos. Meu pai nasceu, estava nascendo o primeiro disco de vinil. No tempo da minha vó, era só o acetato. Eu mesmo já vivi muitos coisas. Eu nasci na época do vinil, vi o vinil acabar, vi o CD viver, vi depois o MP3, teve ainda fita cassete, minidisc, laser disc. Sempre vão existir novos formatos.
O legal é que hoje em dia as bandas acham mais fácil o seu nicho, aí podem achar diversos nichos no mundo e fazer o que o Fabrício (Nobre, dono da produtora A Construtora Música e Cultura) estava me falando agora. Uma banda pode ter um nicho aqui em São Paulo e viajar o mundo inteiro porque esse mesmo nicho existe do outro lado do mundo, “poxa, essa banda também toca música de gaita de fole com violino, ah, a gente também”, Aí o cara vai lá. Não precisa da gravadora.