“Tudo bem, eu posso ter sido o que chutou a porta, tá? Chutei a porta exatamente com a intenção de abrir possibilidades, não só pra mim. Eu dizia, não se satisfaçam comigo! Vocês sejam, ocupem os espaços de vocês, não se satisfaçam com a minha liberdade.”
A declaração dada por Ney Matogrosso durante o MIMO Festival de 2016 no Rio de Janeiro, em seu camarim e exclusivamente ao Virgula, representa muito daquilo que o artista proporcionou de abertura de espaços e quebra de paradigmas para a música popular brasileira em uma época onde isso parecia impossível.
Na semana passada, Ney deu, entre outras, a seguinte declaração ao jornal Folha de S. Paulo: “Nunca peguei essa bandeira, não me interessa. Acho que eu sou útil assim, falando, conversando. (…) Eu não defendo gay apenas, defendo índios, fiz um vídeo recentemente pedindo a demarcação de terras. Defendo os negros, que estão na mesma situação que viviam nas senzalas, estão presos aos guetos.”
A manchete da entrevista trazia o trecho alarmante: “que gay o caralho, eu sou um ser humano.”
Um dos que beberam da fonte produzida pelo sul-mato-grossense – mas que, diga-se, jamais reconheceu sua influência -, o jovem Johnny Hooker, que acaba de lançar CD novo, não gostou do que entendeu das palavras do artista e rebateu em seu Facebook:
“É inconcebível ler a frase ‘Que gay o caralho, eu sou um ser humano’ no país que mais mata LGBTs do MUNDO(!!). Vinda de um artista cuja carreira em grande parcela se apoiou na bandeira da luta dessa comunidade, de seu próprio público. Um artista genial que perdeu o andar que o mundo tomou, ficou cristalizado, um cânone. (…) E em tempos de ‘Gay é o caralho’ a única resposta possível é que vai ter gay pra caralho, vai ser gay pra caralho sim, cada dia mais gay, cada dia um level a mais igual Pokémon.”
Se apoiou na bandeira?
Ney de Souza Pereira saiu de Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, deixando infância e adolescência solitárias para virar Matogrosso ao desembarcar em São Paulo, nos anos 1970.
Desde o começo nos Secos & Molhados, em 1973, até (e principalmente) o início da carreira solo alguns anos mais tarde, o cantor escandalizou o Brasil na segunda metade daquela década, sendo percussor do uso da androginia como estética artística e, apesar de brutalmente ameaçado pela censura do período militar, utilizando a masculinidade como mecanismo sensual de igual exploração ao da feminilidade, oposição total ao perfil bruto e pragmático do homem ocupante do topo da pirâmide patriarcal.
Nessa época, o ativismo pela liberdade sexual, social e de gênero rendia não só hematomas, mas também privação de liberdade e até a própria morte. Não tinha Amor e Sexo nem emojis para estabelecer a necessidade da popularização do debate.
Assim como é evidente a boa intenção de Johnny Hooker em levantar o alerta para o número de LGBTs mortos diariamente no Brasil, é tanto quanto a falta de necessidade de Ney Matogrosso em defender qualquer bandeira. Ele É a própria bandeira.