Setembro de 2012. Depois de gravar “um vídeozinho no quintal de casa cantando Caetano”, Karla da Silva chega aos estúdios da primeira edição do The Voice Brasil, da Globo, no Rio de Janeiro, canta Serrado, clássico de Djavan, e ganha uma vaga no time de Claudia Leitte.
Naquele programa ficou até a semifinal, onde deu adeus ao sonho de ser a “melhor voz do Brasil”, mas por um bem maior. Abriu espaço para uma artista igualmente importante e competente, Ellen Oléria, e ganhou seu lugar na música brasileira.
Karla da Silva é negra, carioca, periférica, sambista, e está bem longe da versão “europeia” de cantoras brasileiras que a mídia, por tantos anos, priorizou ante até mesmo a qualidade de suas vozes. O poder de Karla, que, não se engane, é tão linda quanto qualquer outra “musa” do mundo pop, está na voz e na diversidade. Agora ela está lançando Imortais, um genuíno funk dos morros do Rio que celebra nomes da música preta brasileira, como Jorge Ben, Banda Black Rio e Tim Maia. Mas nem pense em colocar rótulos em cima de sua música.
“Eu não acredito que essa música me faça ser esse novo nome do funk. Até porque no disco nós passeamos por muitos ritmos. As pessoas até me perguntam ‘mas Karla, qual o seu estilo?’ e eu falo ‘gente, nem eu sei’”, diz ela, em entrevista exclusiva ao Virgula.
Mas essa ideia de empoderamento é recente na sua cabeça. Como também, vamos admitir, na maioria dos brasileiros que buscam algum tipo de progresso em preconceitos enraizados no conservadorismo. “A primeira vez que eu ouvi a palavra empoderamento foi uma fã que me disse. Ela virou pra mim e falou ‘você me empodera’. E eu fui procurar isso e fiquei muito emocionada. E em toda a oportunidade que eu tenho de estar com o microfone na mão eu falo isso, podemos estar em qualquer lugar porque, durante muito tempo, fomos colocados em gavetas e fecharam essas gavetas”, afirma.
O disco novo, Gente que Nunca Viu Vai Ver a Pretíssima Coroação, dá o recado logo em seu título: pautado pela música negra, de pista, dançante, animada e cheia de conteúdo, algo cada vez mais frequente entre os novos diversificados artistas da música popular brasileira.
Confira a entrevista:
Virgula – Queria que você falasse sobre o processo de composição e escolha da música como single
Karla da Silva – Então, esse próximo disco meu tem quatro composições minhas, mas eu venho de uma trajetória de ser somente intérprete e nesse disco resolvi trabalhar esse lado [compositora] também. As músicas já estavam quase todas decididas quando encontrei com o Claudemir, compositor de muito sucesso, mas mais ligado ao samba e ao pagode, e ele disse que tinha composto uma música pra mim e mostrou no celular. Eu de cara já adorei. O nome do disco é Gente que Nunca Viu Vai Ver a Pretíssima Coroação, que vem de toda a questão de referência e reverência à música negra e mundial. Tem mais a ver com esse meu novo momento na carreira, uma música mais de pista, urbana, tem muito a ver com minha mudança pra São Paulo também.
Virgula – O single tem características fortes do funk e soul carioca, inspirado em Black Rio e outros nomes. Você acha que pode preencher essa lacuna na música negra que existe desde a morte de Tim Maia?
Karla da Silva – Eu não acredito que essa música me faça ser esse novo nome do funk. Até porque no disco nós passeamos por muitos ritmos. As pessoas até me perguntam ‘mas Karla, qual o seu estilo?’ e eu falo ‘gente, nem eu sei’. Tenho tantas referências, e isso faz parte das características da minha geração. A gente bebeu de muitas fontes. Nascemos nos anos 80, teve o rock, o pop brasileiro, depois veio os anos 90 com aquela enxurrada de pop. Ao mesmo tempo ouvindo em casa Djavan, Tim Maia, Elis Regina, e ia pra rodas de samba… essa é minha formação. Então eu dizer pra você que essa música me coloca nessa lacuna aberta, eu acho que não. Porque se a pessoa for no meu show achando que vai encontrar algo bem puxado para o funk, não vai encontrar. Fica bem difícil fazer com que eu preencha essa ou outra lacuna.
Virgula – Queria então que você explicasse algo que não entendi, porque você resolveu escolher esse single como carro-chefe da divulgação desse CD?
Karla da Silva – A questão que eu digo dele mostrar um pouco do que vem por aí não é muito pelo estilo que a música se encaixa, mas pelo clima festivo que ela traz, o clima solar. Eu venho de um disco mais introspectivo, em outra pegada. Então quando eu digo que escolhi ela porque anteciparia o que vem nesse novo álbum, é nesse sentido, por ser uma música dançante, de pista, noturna, para o DJ tocar. Esse disco terá esse caminho.
Virgula – Pode falar um pouco sobre a experiência no The Voice Brasil e a importância do programa na sua carreira?
Karla da Silva – Eu sou muito grata ao The Voice Brasil, e minha entrada nesse programa era algo que eu não esperava, pensava ‘ah, deve ser treta entrar nesses programas, mas eu vou mandar’, e eu fiz um vídeozinho no quintal de casa cantando Caetano, e eles me chamaram. Fui pra primeira etapa, depois a segunda e quando você vê, está lá na live audition que os carinhas vão virar a cadeira. Foi muito legal, primeiro porque é uma porta muito grande, participar de um programa no qual não vão calouros, todo mundo sabe qual é o grau de dificuldade de estar ali num programa daquele, e qualquer lugar que você vá no país é reconhecido. Um programa que passa aos domingos na televisão brasileira abrange muitas pessoas, e você não tem [na hora] muita noção disso. Teve uma lista de um produtor norte-americano que ele selecionou as 40 melhores audições do The Voice no mundo inteiro e um produtor do reality me mandou e eu estou em 13º lugar. Então você começa a entender que a sua música chegou em pessoas de todo o mundo. O que de melhor pode acontecer em um programa como esse e porque ele é válido é isso, a gente luta tanto pra nossa música chegar em mais pessoas e a televisão sai disso, ela escancara sua música.
Virgula – Pra finalizar, não poderia deixar de falar com você sobre diversidade. Como você enxerga o cenário atual da música brasileira, que tem dado mais espaço para pessoas de diferentes perfis e que fogem do padrão de beleza tradicional?
Karla da Silva – Eu acredito que o mundo está em uma mudança muito grande. Por algum motivo espiritual e terreno também, porque isso tem a ver com trabalho, dedicação e suor de muitas pessoas, o mundo está se abrindo para novas pessoas e, querendo ou não, os tabus todos estão caindo, então eu fico muito feliz quando vejo o Liniker, a Tássia Reis, fiquei muito feliz quando eu vi a Ellen Oléria, por exemplo, campeã da primeira edição do The Voice, uma mulher negra, gorda, lésbica, ser a melhor voz do Brasil, porque se estão falando de voz, terá que ser voz, já que tinham muito padrões ali. A luta é muito grande, né? Eu sou uma mulher periférica, negra, fora de um padrão europeu de corpo e estilo, e você começa a perceber que é referência para muitas pessoas.
A primeira vez que eu ouvi a palavra empoderamento foi uma fã que me disse. Ela virou pra mim e falou ‘você me empodera’. E eu fui procurar isso e fiquei muito emocionada. E em toda a oportunidade que eu tenho de estar com o microfone na mão eu falo isso, podemos estar em qualquer lugar porque, durante muito tempo, fomos colocados em gavetas e fecharam essas gavetas. É uma grande celebração, vamos de alma lavada e leve, porque a arte faz isso, a arte, a música, ela tem que ter essa leveza. Então através do seu som, da sua arte, é uma luta, uma bandeira, um movimento. Eu sou uma negra em movimento. Tudo isso é muito importante. Eu fico muito feliz de fazer parte desse momento, dessa geração, de ter pessoas tão especiais na arte e na luta por uma democracia mesmo, real e de verdade.
Artistas e a diversidade na música
Créditos: Gabriel Quintão