Aos 81 anos, Hermeto Pascoal está mais afiado que nunca. Com o novo álbum na bagagem No Mundo dos Sons (Selo Sesc), disco duplo com inéditas, o ícone e seu grupo se apresenta no Sesc Pompeia neste sábado (12), às 21h e domingo, às 18h, em shows que integram a programação do festival Jazz na Fábrica.
No interior de São Paulo, como parte do festival Jazz & Blues, a turnê de lançamento passa pelo Sesc Taubaté, 16/8; Sesc Bauru, 19/8 e Sesc Presidente Prudente, 23/8.
Hermeto dedica o CD aos irmãos de som Vinicius Dorin e Antonio Luiz de Santana “Pernambuco”, e ao “Anjo” Rafael Accioli, seu bisneto e neto de Fábio, integrante do grupo. Todos já falecidos e lembrados com faixas especiais: Vinicius Dorin em Búzios; Salve, Pernambuco Percussão!; e Rafael amor eterno”.
O parceiro Sivuca ganhou Forró da Gota para Sivuca e o pianista americano Chick Corea, que Pascoal chama carinhosamente de “Chiquinho Corrêia”, está em Um abraço Chick Corea. Ainda são lembrados o trompetista Miles Davis, o contrabaixista Ron Carter, o pianista Jovino Santos e Ilza da Silva, mulher com quem Hermeto conviveu por 46 anos, teve seis filhos e faleceu no início dos anos 2000.
Em meio a tantas homenagens, o virtuose ainda se dedica ao Som da Aura. A composição foi composta segundo a teoria do multi-instrumentista: ele acredita que cada ser humano e sua fala formam uma música particular. A faixa é uma sequência de diálogos do grupo, transformadas em música por Hermeto, de acordo com a harmonia que soa ao falar.
Gravado em fevereiro deste ano no estúdio Gargolândia, em São Paulo, Hermeto e grupo – formado pelo baixista Itiberê Zwarg, no grupo desde 1977, o baterista Ajurinã, Jota P. no comando dos instrumentos de sopro e o percussionista Fábio Pascoal, filho do compositor – se reuniram durante a semana do carnaval de 2017 para a produção dos disco.
Além de assinar a direção musical, composições e arranjos, Hermeto toca com sua maestria particular apitos, escaletas, berrantes, teclados, chaleiras, colheres e pianos preparados.
Apesar do longo período longe dos estúdios com o grupo o músico nunca deixou de produzir. Nesse intervalo, gravou trabalhos com seu duo, compôs, fez shows, improvisou e recebeu recentemente o título de “Doutor Honoris Causa” pela universidade New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos.
Leia entrevista com o mestre dos magos da música não apenas brasileira, mas universal e, desconfiamos, interplanetária:
Ouvi aqui o disco, você voltou a pesquisar o som da aura…
Hermeto Pascoal – É um negócio que a pessoa tem que ter muita sensibilidade. Porque é um negócio real. Não é uma coisa que você está ajeitando para aquilo ser cantado. É o canto natural de nós mesmos, de todos nós, seres humanos.
Da onde vem sua música?
Hermeto – A minha música vem de outro plano. De outro plano para cá, para este planeta, a Terra, em que nós estamos. As pessoas perguntam e eu digo. Eu nasci com a música, eu trouxe a música comigo. Eu sou 100% intuitivo, autodidata, teoricamente falando. O meu negócio é o sentir, nada de querer ter uma coisa antes do sentimento. Aí o saber fica com mais segurança. Na música é isso, você tendo uma segurança, libera a sua mente, sem coisa de fórmulas na mente, decorar fórmulas. Aí tira completamente a criatividade, eu sou um cara totalmente solto, desse jeito.
É verdade que o senhor é muito exigente com os músicos?
Hermeto – Essa coisa de exigência que eu digo, é o cuidado. Porque eu não exijo que as pessoas façam o que eu faço, eu exijo que as pessoas puxem de suas mentes, das suas possibilidades para fazer, dos caminhos que eu dou com a música. Isso que é o negócio. Não é exigir que todos façam igual, isso é um pecado horrível, eu quero que cada um sinta aquilo que eu está fazendo e que cada um posso sentir a sua coisa. Semelhante sim, porque nada é diferente. Nem eu faço diferente. Se não estaria isolado, não estaria no mundo. Porque o sentir vem dos céus, o corpo da gente é só um aparelhinho que recebe tudo isso. Aliás, baita aparelho.
Muita gente acha que a música brasileira já foi melhor, são saudosistas. Mas este disco, feitos com músicos atuais, evidentemente, mostra que o problema não é a música…
Hermeto – O dinheiro é brincadeira. Você nasce, paga pra nascer, vive, paga pra viver e quando morre, paga pra se enterrar. O que tem que fazer é o que você tem vontade, o que você gosta. Às vezes a pessoa para ganhar dinheiro, não faz o melhor. Porque primeiro é preciso fazer para si. Por que nada é para os outros primeiro. Quem faz as coisas para os outros primeiro, até para vender uma fruta, você tem que plantar, colher. Você, no seu gosto, tem que passar para as pessoas, em todos os sentidos e porque não na música. A minha relação com o grupo, com o público, pra mim é isso. O público pra mim é uma escola, eu aprendo, a gente mistura, isso é a música universal.
O que é música universal?
Hermeto – Música universal é você ver que eu não toco só forró. Saber que não existe nada diferente, o que existe é uma semelhança. E temos que ter cuidado para que a semelhança não vire imitação, não vire o que a gente vê no mundo, a padronização. Até nas comidas. O meu pessoal foi comer depois do show e cada um pediu um sanduíche, e o sanduíche veio tão grande que um só dava pra gente dividir pela metade. Mas eles estão fazendo isso pra induzir as pessoas desde o começo, pra encherem a boca.
Na música também?
Hermeto – A música é assim. A maior sujeira da música é o seguinte. Não existe música brasileira, música americana, como eu te falei é semelhante. Se eu gente senta numa cadeira e ouve três discos, pode ser um disco do Japão que você vai ver que as músicas são semelhantes. Agora essas músicas que fazem para ganhar dinheiro você vê que elas são padronizadas, cansativas, são aquelas coisas que coitadas das crianças que estão nascendo agora. É como estão fazendo com a tal da comida padronizada.
Muita gente fiz que sua música é difícil, mas as crianças amam sua música. Como você explica?
Hermeto – É uma prova de que não é difícil. A criança, só é criança no corpo, na alma não. Você pode estar conversando com uma criança que tem um espírito muito mais adiantado que o meu, muito mais vivido que o meu. Sem números, sem nada. Pela própria natureza, natureza do céu, né? Isso que eu quero dizer pra você, no meu caso, é que a natureza para mim não é só aquilo que é natural, é tudo aquilo que tem som, que tem imagem, as coisas bonitas que você gosta. E às vezes você tem que transformar uma coisa bonita em uma coisa aparentemente feia, que não é feia, a gente com a própria energia da gente transforma aquilo em uma coisa linda.
Nessa música que eu chamo de música universal existe criatividade e confiança que cada um tem a sua maneira de existir. Deus botou a gente no mundo para isso. Tem as coisas para ver, da natureza e da cidade grande. Você chega na cidade grande e as buzinas dos carros na cidade grande, pra lá e pra cá na hora do rush. Você pode dizer que mesma as buzinas tendo um som igual, por causa da diferença de distância de um carro pro outro, a sonoridade vem diferente.
Cuidado com o dinheiro. A melhor maneira de você usar o dinheiro, ele fica danado quando você não guarda. Quando você guarda, ele quer ver você ficar velho e cheio de dinheiro. Aí você não tem mais quase amigo porque já morreu todo mundo e aquele dinheiro não tem nem pra que fazer. Vamos cuidar gente, de cada um fazer o que gosta de fazer.
Como que surgiram as homenagens do disco?
Hermeto –As homenagens vieram sem nenhuma premeditação, na hora que eu ia ouvindo o disco, fui lembrando das pessoas. Cada música daquelas eu lembrava destas pessoas. Veio assim na cabeça uma lembrança. Eu perguntava para meu filho que estava comigo mixando. Para mim não importa quem está aqui e quem já se foi, para mim é a mesma coisa. Aí, pronto, ficou. Cada música dessas foi a minha parte. Não digo que se essa pessoa escutar, ela vai se lembrar que foi feita para ela, mas que vai sentir, que vai gostar, eu tenho certeza que vai.
Pra gente encerrar, conte uma história do Miles Davis…
Hermeto – Eu vou contar só uma passagem. Eu fui tocar em Paris. Estava lá eu e Jovino dos Santos, pianista, pra tocar e fui convidado pela Radio France para fazer a entrevista. Falei uma porção de coisas e, no final, ele disse ‘entrevistei’ o Miles Davis e eu no final perguntei para ele quando ele morresse, o que ele gostaria de fazer na Terra, se era música e tal. Aí ele disse, eu queria fazer uma música que nem aquele albino louco, meu amigo Hermeto Pascoal. Isso aí explodiu no mundo, da outra vez que eu fui pra Europa as perguntas que vinham com aquela conversa que eu toquei com Miles Davis, agora já vinha com essa pergunta aí.
Mas eu lutei boxe com ele, eu brincava com ele, você já sabe, e isso tudo se espalhou no mundo porque os próprios músicos americanos se assustaram. O Miles Davis não era assim, de brincar com as pessoas. Ele passou por uma fase muito má, aquela coisa de drogas, e quando eu conheci o Miles ele estava tranquilo, estava lutando. Tinha um ringue na casa dele pra lutar boxe.Ele botou as luvas, arrumou uma pra mim. Daqui a pouco ele foi pro ringue e me chamou. Começou a lutar boxe. A minha vista corre muito. Aí quando a gente foi pra dar soco um no outro, os meus olhos como corre muito, eu vi que era pro outro lado que ele estava olhando, eu dei-lhe um murro no olho, acertei ele. Mas o que doeu muito foi a minha mão. Ele estava forte, com 45 anos.