“Estava tudo errado para as mulheres, para o povo preto, para os indígenas e para os LGBTQIA+. Precisamos equilibrar essa balança, não eles lá em cima e a gente embaixo.”

Com a primeira versão lançada em 2010, “Diário de Bordo” é um projeto do rapper Rashid que, entre 2010 e 2015, ganhou novas versões. Inspirado nos Racionais MC’s, Jay-Z e Kendrick Lamar, o cantor lançava todo ano uma nova versão debatendo sobre problemas sociais. Após seis anos do último lançamento, Rashid retorna com “Diário de bordo 6” em um momento que o cantor sentiu a necessidade de falar sobre o que está acontecendo no país e no mundo.

Hoje, 19 de maio de 2021, o Brasil conta com 439 mil mortes causadas pela COVID-19 e uma média de 64 mil novos casos registrados. Entre os vacinados, estão 18,54% da população com a primeira dose, enquanto 9,17% receberam a segunda, dados do Consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde. A pandemia da COVID-19, e a forma que ela está sendo tratada no país, foi um dos principais motivos que impulsionou Rashid a cantar sobre o atual momento do Brasil, e do mundo, na faixa “Diário de Bordo 6″, lançada no dia 06 de maio.

Sobre o isolamento social, a violência contra negros, mulheres e a população LGBTQIA+. Além do avanço de ideais como o terraplanismo e o movimento antivacina, Rashid canta versos em que denuncia a realidade e questiona esses ideais. Em “Diário de Bordo 6”, o cantor grita sobre os acontecimentos recentes na história do país e ressalta como a música tem um papel de ampliar o debate, além de servir como instrumento histórico para futuras gerações.

“A música planta essa semente. Em vários momentos as pessoas não estão abertas para ouvir sua opinião, só que a música faz um papel diferente. A música entra devagar, ela vai entrando, sem a pessoa perceber e, de repente, por mais que a pessoa discorde de várias coisas, a música passou e deixou uma sementinha ali.”

Depois de inúmeros pedidos dos fãs, Rashid sentiu que precisava escrever. Por isso, retornou ao projeto “Diário de Bordo” para falar sobre frustrações, desejos e revoltas a respeito do momento atual do país. Com o intuito de trazer sua mensagem com mais clareza, o artista produziu o clipe relacionando o isolamento e a quarentena, causada pela pandemia da Covid-19. Com participações de Chico César e DJ Caique, Rashid amplia o debate e cria um registro acerca deste período que a população deseja, mas não deve, esquecer.

Neste sábado (22), o cantor apresenta a faixa “Diário de Bordo 6” pela primeira vez no show virtual “Tão Real”, Uma jornada Musical por Rashid. O evento está programado para acontecer às 20h na plataforma Legato, os ingressos já estão disponíveis.

Em entrevista, Rashid contou um pouco mais sobre a origem do projeto “Diário de Bordo”, sobre a faixa “Diário de Bordo 6” e como foi a produção do clipe junto com Chico César e o DJ Caique.

 

Daniela de Jesus: Como surgiu a ideia do projeto “Diário de Bordo”?

Rashid: Essa ideia surgiu no começo da minha carreira, como um lance de estar espelhando coisas que meus ídolos do rap já faziam naquela época. Acho que não necessariamente no Brasil, embora você veja os Racionais com “Vida Loka” 1 e 2. De Mc’s fazendo músicas com uma periodicidade, que tinha o mesmo tema, um mesmo ambiente, assim, colocava o mesmo nome. Então, foi um pouco espelhado nisso, mas ao mesmo tempo por uma vontade de falar determinadas coisas que eu achava que cabiam no mesmo lugar. E aí “Diário de Bordo” nasceu, eu sinceramente não imaginava que ela chegaria tão longe assim. Mas eu acho que no final das contas se tornou uma parada daora, porque ali o pessoal pode acompanhar a evolução do Rashid. A sequência “Diário de Bordo” mostra perfeitamente isso, meio que um ano após ano, tem um dos anos aí que eu não lancei, mas você consegue acompanhar. Com o lançamento de 2021 você tem um salto, tanto no tempo, quanto na evolução, no discurso, na postura, no jeito que eu canto. Vai ser um lugar que as pessoas vão poder acompanhar essa evolução.

D: Você falou que também tem inspiração dos racionais aqui do Brasil e tem do pessoal de fora, quais são os nomes de fora que você tem como inspiração?

R: Tem vários mcs que fazem, por exemplo, tem o Jay-Z que tem uma sequência de discos no começo da carreira, ele tinha o disco vol 1, vol 2. Se eu não me engano, tem três também [In My Lifetime, Vol. 1, Vol. 2… Hard Knock Life, Vol. 3… Life and Times of S. Carter]. Depois ele tem o “The Blueprint 1”, “The Blueprint 2”, “The Blueprint 3”, que é a trilogia mais famosa dele. Mais recentemente tem o Kendrick Lamar, por exemplo, que tem uma sequência de música chamada “The Heart”, que se não me engano, foi até a quatro, que são músicas que ele lança perto dos lançamentos dos álbuns. As coisas que eu falo na “Diária de Bordo”, talvez até caberiam em um disco, mas teria que achar o momento específico, e “Diário de Bordo” é simplesmente aquilo, é o meu reporte e o meu recorte da realidade do jeito mais cru possível. Toma aí.

D: Como a maioria foi feita anualmente dá para notar toda essa evolução, sua e da sociedade como um todo também.

R: Sim, sim, total. Eu acho que acaba servindo até como referencial histórico, como se eu estivesse escrevendo vários artigos todo ano e, de repente, no momento que alguém quiser entender um pouquinho do que aconteceu em cada época, eu acho que “Diário de Bordo” pode ajudar. Principalmente esta, que veio nesse momento político do Brasil, nesse momento de pandemia. Acho que tanto o clipe quanto a música ajudam a contar um pouco essa história. Daqui 30 anos, quem olhar pra trás, assim como olhamos pra trás, vê na época da ditadura, a música “Cálice” que vira um grande ícone de uma música que conseguiu driblar a censura e vir parar nos ouvidos. Como Gilberto e Gil, com “Back in Bahia”, contando sobre o exílio e a saudade da Bahia e do Brasil. Eu acho que “Diário de Bordo”, daqui trinta anos, vai ajudar as pessoas a ilustrarem um pouco do que foi isso.

D: Por que você parou de fazer o diário de bordo e, já emendando, o que te motivou a fazer esta sexta versão?

R: Eu parei porque como eu falei, nem imaginava que ela fosse chegar tão longe, sabe? Não era uma pretensão e digamos que você tem que desprender um tempo e uma energia pra fazer uma música dessas, é uma música forte, uma música que envolve muita coisa, que envolve muito a opinião. Consequentemente, acaba atraindo muita gente que discorda também. Então, você acaba tomando algumas pancadas por causa disso. Eu tinha feito cinco, ali até 2015, falei, ‘OK, tá tudo bem’. Chegamos até a transformar num EP na época, então as pessoas podem procurar “Diário de Bordo” nas plataformas e achar esse EP com as edições. Desde 2016, o Brasil começou passar por alguns momentos de conturbação política mesmo, que foram sendo agravados ao longo dos anos até chegar num ápice em 2018. Uma discussão muito grande, a ignorância tomando conta e em tudo que foi acontecendo desde a eleição de 2018 até culminar na chegada da pandemia. Foi a gota d’água.

Desde o ano passado eu venho pensando em fazer a parte seis porque as pessoas me pedem, me pedem muito. Engraçado, porque ninguém tinha falado nada de que essa música aconteceria. Nos últimos meses, todas as lives que eu fazia, deixava caixa de perguntas no Instagram, alguma coisa, sempre tinha muita gente falando da “Diário de Bordo 6”. Essa energia estava no ar, isso até ajuda a explicar o motivo que eu resolvi voltar, porque estava tudo me direcionando a fazer uma nova versão. A situação meio que pedia isso e eu sou só um cara que reporta os acontecimentos, entendeu? Então, os próprios fãs estavam sentindo que era o momento. Eu não falo nada que as pessoas não saibam, por eu falar por muitas pessoas, aquilo representa um grito que muita gente queria dar e que não tem projeção pra fazer. O Rashid tem, as pessoas se sentem identificadas, por isso que eu falo o que eu falei na música. As pessoas estarem me pedindo para fazer a “Diário de Bordo 6”, me coloca uma responsabilidade nas costas, mas ao mesmo tempo, também, me dá uma tranquilidade de que eu sei que tem muita gente contando com isso. Uma boa parcela do público que está desejando porque eles tão querendo falar isso também, eu sou o cara que até então pode falar por eles nesse momento.

D: Como é isso pra você? De servir como um porta-voz e conseguir fazer isso rodar.

R: Acho que a parte mais difícil, talvez, seja fazer rodar. Especialmente nesse momento em que tudo é muito polêmico, você dá uma opinião política embasada e é sempre muito polêmico, porque você acaba recebendo porrada de todo lado. Muitas dessas porradas sem embasamento nenhum, ou embasadas em opiniões vazias e achismos. Estamos em um momento em que a ignorância e a hipocrisia realmente tomaram conta. Fazer essa música girar, fazer essa música circular nesse momento, eu acho que é um dos grandes desafios, porque como que eu faço a música chegar nas pessoas que não ouvem o Rashid? Eu acho que aos poucos vamos conseguindo furar essa bolha, justamente por esses comentários que eu vou recebendo, que rechaçam, mostra que a música está chegando em outros lugares. Isso quando está pensando em mudança, é essencial. Conversar com pessoas que discordam da gente, precisamos dialogar, e a música planta essa semente. Em vários momentos as pessoas não estão abertas para ouvir a sua opinião, só que a música faz um papel diferente. A música entra devagar, ela vai entrando, sem a pessoa perceber e, de repente, por mais que a pessoa discorde de várias coisas, a música passou e deixou uma sementinha ali na mente. Conforme o tempo for passando e a pessoa for vendo novas coisas acontecendo, essa semente vai começar a crescer. Isso que motiva, eu tô mandando carta para uma par de gente, tô tipo o Emicida naquela música lá, “Escrevendo carta de amor pra todo mundo”. Nesse caso, não é necessariamente uma carta de amor, mas eu estou aqui escrevendo e mandando. Uma hora chega, uma hora a pessoa se identifica, uma hora bate. E aí é que as coisas mudam.

“Eu tô mandando carta para uma par de gente, tô tipo o Emicida naquela música lá, ‘Escrevendo carta de amor pra todo mundo'”

D: Como você acha que paramos nessa situação, de, por exemplo, ter que contestar terraplanismo e estar argumentando para comprovar a eficiência da vacinação?

R: Meu Deus do céu! O que eu vim fazer aqui, minha Nossa Senhora? Eu tô tipo assim, como eu vim parar aqui? (risos) Eu acho que o mundo todo viveu essa guinada para um campo que não envolve só a política, um campo psicológico talvez, que vai para essa coisa um pouco conservadora, tradicionalista. Não sei dizer que os Estados Unidos é o grande culpado, mas sem dúvida nenhuma, os Estados Unidos tem uma grande influência sobre tudo que acontece no mundo hoje, principalmente no ocidente. A eleição do Trump, toda campanha, aquela coisa do fazer América grande de novo, o que ele dizia que era esse tornar a América grande significava, né? Acho que aquilo foi uma grande campanha para esse conservadorismo voltar, mas isso aconteceu em várias regiões do mundo. Eu acho que provavelmente, independente do Trump, isso ia acontecer também. E aí, a gente viu um grande incômodo das pessoas com com os avanços do campo progressista. No Brasil, acho que é um grande ícone que representa esse avanço foi o grande número de alunos nas faculdades, pretos e indígenas, acho que isso foi uma das coisas que incomodou muito. Percebe isso pelo o quanto estavam sendo debatidas aqui as cotas.

De repente, num comentário ou em outro, notamos o quanto a ascensão social, mesmo que pequena, mas o fato da empregada e do filho da empregada estarem viajando, estarem indo pra Disney, ouvir declarações assim, acho que isso foram grandes demonstrativos do de como determinadas coisas que estavam mudando, mesmo que de forma lenta. Isso estava incomodando essas pessoas. Como se a ala mental, vamos dizer assim, porque eu acho que isso se estende além da política, é como se a ala conservadora tivesse se sentido ferida para sair novamente, né? Eu lembro quando saiu o resultado da eleição em 2018, por exemplo, a gente dizendo que seríamos resistência. Muitas pessoas rebateram isso, como se ia sair para quebrar tudo, a ignorância tomou conta de um jeito que as pessoas estavam atribuindo a isso, sem nem saber o que significava isso, o que queríamos dizer com resistência. Mas é isso, o mundo tem que andar para frente, cara, não dá para gente viver a base de coisas que foram pensadas, milênios atrás, simplesmente achar que é assim, entendeu? Até porque estava tudo errado para as mulheres, para o povo preto, para os indígenas e para os LGBTQIA+. Precisamos equilibrar essa balança, não eles lá em cima e a gente embaixo.

D: Como você acha que esse período vai ficar marcado no futuro?

R: Acho muito difícil identificar tudo enquanto estamos vivendo o momento. Mas, eu acredito que daqui a cinquenta anos, uma parte, que me deixa triste, é que eu acredito que haverá uma certa dúvida. Assim como colocam a prova agora, o lance da própria ditadura. Quem não sofreu ou não não teve nenhum membro da família desaparecido fica questionando todo esse período. Como as pessoas que não sofrem racismo querem opinar sobre o racismo ou uma mesa repleta de homens debatendo sobre a questão do aborto. Isso que acontece provavelmente acontecerá. Eu acho que o nosso papel, enquanto resistência, é esse, de colocar os fatos na cara da sociedade, estampar os fatos. Então, os artistas têm feito isso. Você vê música, pintura, todo tipo de manifestação artística ilustrando esse momento. Esses tipos de coisa irão ajudar essas pessoas a olhar para trás e encontrar ali os pontos.

D: Como foi a ideia de fazer o clipe, como foi o processo criativo e, aproveitando também, como você teve a ideia de convidar o Chico César?

R: A ideia do clipe todo crédito é do Levy Vieira, o diretor. Fechamos a ideia na quarta-feira e ele apareceu com a ideia na sexta para gravarmos no domingo. A equipe foi reduzida, por causa da pandemia, foram sete pessoas contando comigo. A locação, as luzes, o cenário, tudo foi incrível. O clipe tem um pouco dessa sensação meio claustrofóbica, de estar dentro de casa, preso, sem opção de sair por está vivendo uma quarentena. Tem mania de perseguição, está vendo coisas, está vendo gente lá fora, em alguns momentos aparecem vários Rashids ali, porque representa o meu conflito comigo mesmo, dentro desse momento. O Chico vem tipo essa entidade, essa energia que vem de outro planeta e invade ali pela tela da TV como se ele entrasse na minha mente. Aquilo foi a forma que arranjamos para gravar o Chico de longe, de uma forma remota. Gravamos separado o Caíque também. Os fãs precisavam olhar e perceber que foi tomado todos os cuidados e que passava essa ideia. Para mim é um dos meus melhores clipes, um dos que mais sintetizam a mensagem da música.

Trazer Chico César, nasceu quando eu entrevistei ele na LAB Fantasma TV, na Twitch. A nossa energia bateu muito. Um cara muito muito sangue bom, aquela energia boa, um cara que pensa a frente do seu tempo. Quando surgiu a “Diário de Bordo”, ele chapou demais, fizemos a música meio que num bate e volta, assim, foi muito rápido pra fazer o som. A participação dele foi uma das coisas que elevou o nível da música. A música estava no décimo andar, como ele subiu para o décimo quinto. Com a caneta, potência, voz, com aquilo que ele diz, com a melancolia que ele traz pra música, sabe? Tudo absurdo.


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“Meu recorte da realidade, do jeito mais cru possível” Rashid fala sobre “Diário de Bordo 6”

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