Marcelo Jeneci
Marcelo Jeneci cansou de ser fofo. “São temas um pouco mais pesados que no primeiro disco”, diz, sobre seu segundo álbum, De Graça. Mesmo ouvindo sons indies como James Blake, Tame Impala, Grizzly Bear e Connan Mockasin, contudo, o filho do pernambucano Manoel e da paulistana Glória continua sendo o rapaz criado na na Cohab Juscelino, em Guaianases, no “fundão” – como os moradores da periferia se referem às regiões mais afastadas do Centro – da zona leste.
Jeneci em 91, aos 9 anos, em foto de família
“Todo esse traço, essa assinatura de fazer música popular, vem de ter crescido consumindo muita cultura popular. Então, quando eu paro para fazer uma música, eu fico tentando fazer uma melodia que seja assobiável, que seja sedutora. Naturalmente, isso vem de lá. De quem cresceu no meio da cultura popular, tenha sido no rádio, na televisão”, afirma ao Virgula Música.
Autor de hits como Amado, parceria com Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves gravada por Vanessa da Mata e Longe, feita com Arnaldo Antunes e Betão Aguiar, registrada por Arnaldo e também por Leonardo, o músico de 31 anos não é mais o mesmo de Feito pra Acabar, álbum de 2010 que embalou milhares de casamentos ao som dos sucessos Pra Sonhar e Felicidade, que o elevaram ao panteão da nova MPB.
Pra Sonhar, maior hit de Jeneci
Em sua nova fase, o traço mais perceptível é a psicodelia. Produzido por Kassin, senha para alguns dos trabalhos mais destacados da nova cena, e coproduzido por Adriano Cintra, que ficou conhecido por seu trabalho no Cansei de Ser Sexy, De Graça teve participação de Eumir Deodato, “só” o arrajador de Tom Jobim e um dos brasileiros com maior projeção internacional.
De que maneira sua origem em Guainases, na periferia de São Paulo influencia a sua música? Como que isso está presente dentro da sua música?
Acho que toda base vem da criação, do berço, da família, vem do lugar onde a gente é criado, desde a infância, da adolescência, desde o começo da vida. Eu fiquei em Guianases até os 19, 20 anos, mais ou menos. Minha formação aconteceu toda lá, isso está diretamente ligado à música que eu faço porque eu acho que toda esse traço, essa assinatura de fazer música popular vem de ter crescido consumindo muita cultura popular.
Então, quando eu paro para fazer uma música, fico tentando fazer uma melodia que seja assobiável, que seja sedutora. Naturalmente, isso já vem porque vem de lá. De quem cresceu no meio da cultura popular, tenha sido no rádio, na televisão.
Para ir mais longe, mais efetiva a música tem que ser. Então o tronco da música que eu toco vem de lá. E o acabamento estético, os galhos, já passa para a segunda parte da minha vida, que é mais zona oeste, onde está a sonoridade um pouco mais rebuscada, de me preocupar com essa parte mais estética.
Mas o tronco mesmo da música é popular porque cresci em uma família que ouvia muita música em casa e o fato de ter sido na periferia também, como muita gente que vem ali do Grajaú, principalmente a galera do hip hop. Eu lá na outra ponta da cidade, no fundão da zona leste, fui absorvendo essas coisas e achando que tinha mais mais a ver fazer uma música que fale sobre as relações, sobre as coisas boas, uma música um pouco mais positiva, ao invés de ter pegado um lance assim mais panfletário como o hip hop.
E é isso, está totalmente presente em tudo que eu faço como compositor, esse começo da minha vida, o fato de ter sido um começo na periferia de São Paulo.
Você acabou respondendo àquela que seria a minha segunda pergunta. Porque em uma entrevista ao jornal O Tempo, de Belo Horizonte, você havia comparado o pop com uma árvore.
Claro.
É curioso que no encarte tem uma árvore, mas sobreposta com imagens do mar. Esse diálogo entre essas duas forças e essa referêcia marítima foi algo que você quis buscar ao decidir gravar o disco no Rio? Ou é apenas uma alegoria?
Não, não é uma alegoria e eu nem fui buscar neles. Eu me preocupei ao lado da Cris Naumovs, que assina a arte gráfica, em desenvolver um conceito que foi sempre de ter duas imagens sobrepostas, com duas camadas. Ao mesmo tempo em que você olha para um lugar, você vê outro, como uma árvore sobre o mar. Assim como na capa do disco são duas imagens minhas. E toda a arte gráfica é em cima de duas imagens sobrepostas para, tipo, situar, você olha para uma coisa, mas está vendo outra ao mesmo tempo.
Então esse lance de dizer que o melhor da vida é de graça, que é uma frase de Orkut, praticamente, acho que é uma coisa que você fala, mas ao mesmo tempo você tem que olhar direito para perceber o que é essencial, o que é de graça mesmo e deixar essa ficha cair.
E essa coisa de ser o segundo disco, de ter uma segunda camada, de ser o segundo capítulo de uma mesmo livro, então, tinha a necessidade de trazer sempre duas imagens sobrepostas.
Agora, o fato de eu ter ido gravar o disco no Rio de Janeiro, ter chamado novamente o Kassin para produzir, tem mais a ver com sair da minha cidade para ficar três meses num outro ambiente me dedicando somente a esse trabalho, que foi esse período, esse inverno de 2013, em que eu fiz o De Graça lá no Rio de Janeiro.
A questão do mar estar sempre presente é porque é uma metáfora muito bacana de usar, o lance da água, da chuva, do mar, do ir e voltar. No trabalho do Eumir Deodato, nos arranjos de orquestra das cordas, ali, sim, eu sinto que é uma coisa bem marítima, como se fossem cordas atravessando a música, cordas noturnas marítimas entrando em um mar muito revolto.
Cada um pode ter a sua interpretação sentimental da canção, do instrumental da canção, pós a letra. E quando eu falo que o melhor da vida é de graça, o mar é uma das coisas que vale lembrar que é de graça.
Um de Nós – Marcelo Jeneci
Nesse seu disco que você tenha ido em uma direção mais ácida, psicodélica, a maioria das suas mensagens são positivas. Você arriscaria dizer por que isso acontece?
Sim, já vieram me perguntar se eu sou otimista. Eu não sou otimista, porque o otimista espera que tudo dê certo. Pelo contrário, eu fico levando a vida esperando que quando algo der errado, que tenha algo de positivo também ali dentro.
De algum modo o recado desse disco, ele traz alguma coisa de positivar, de dar risada da própria desgraça, de valorizar e viver com graça, fala sobre isso, sobre viver com graça, com uma parceria com a própria vida, sendo amigo do tempo, assistindo à vida oscilar entre algo que desce e sobe, uma onda senoide perfeita, que vai para cima e para baixo.
Essa abordagem do recado do disco, ela vem do berço, de ter pais que são muito sorridentes, muito positivos, sorridentes, que se divertem muito. No sofrimento, na dificuldade também dão um jeito de levar aquilo numa boa, com uma sabedoria, e uma convicção de que logo melhora. Piora aqui, melhora ali, acaba um sonho, você bota outro no lugar, é um pouco dessa coisa de levar a vida. Você viver com graça, por isso que ele tem esse nome, é gratidão de agradecimento, a graça de viver é de graça no sentido de brincadeira, levar a vida mais assim.
São temas um pouco mais pesados que no primeiro, mas com essa mesma gestalt. De dizer, ó, aqui é foda, aqui a gente sofre, aqui eu sofri, aqui também mas vamos nessa, a gente não está sozinho, está todo mundo sacando a mesma intensidade da vida e é extraordinário viver, tendo ou não tendo, vamos juntos. É quase como se fosse esse recado final do disco.
Tudo Bem, Tanto Faz – Marcelo Jeneci
Você ouve muita música, o que te surpreendeu positivamente nos últimos tempos?
Eu não ouço tanta música, como muitos amigos meus. Eu ouço pouca música, mas várias coisas têm me supreendido, me deixado feliz. Porque eu amo música e comemoro quando ouço uma música muito boa. Comemoro mesmo, se eu estiver na rua levando a mão para o céu e fico muito feliz.
O disco mais recente do James Blake acho muito legal, o mais recente do Tame Impala, o Shield, do Grizzly Bear, também. Esse verão ouvi bastante o disco do Sugar Man, aquele do documentário, que fez com que a música aparecesse para muita gente de novo. Connan Mockasin, que é uma banda muito legal, eu tenho curtido.
E brasileiro?
Ah, adoro o trabalho que meus amigos estão fazendo, Curumin, Tulipa (Ruiz), Criolo, Emicida, Karina Buhr… Estou esquecendo de muita gente, mas esses são os primeiros que me veem. De outro lugar, que não seja São Paulo, ali em Salvador estou esperando o disco do Russo Passapusso, do Baiana System, acho muito legal a Marietta Vital, que é filha do Guilherme Arantes. Adorei esse último disco do Caetano (Veloso), achei muito massa.
Aí, de Recife, que é um lugar que eu vou bastante, tem um compositor muito legal chamado Juliano Holanda, que acabou de lançar um disco legal, tem o Raphael Costa, que é um compositor muito legal, inclusive a música 9 Luas é parceria nossa. Ele vai gravar o disco dele esse ano, que eu vou produzir.
Acho que já está claro para todo mundo, que a gente está vivendo um período fértil culturalmente, não só na música brasileira, mas em várias áreas espalhadas pelo mundo, como aquele momento que já foi vivido nos anos 60, que tinha todo aquele contexto histórico. Acho que a gente vive um momento muito forte como aquele, só que respirando uma necessidade de expressão diferente, parecida com aquela e trazendo muita gente de uma única vez.
Bacana ver tudo isso acontecendo, parece mesmo um começo de uma nova era, de um novo ciclo, longo e tal. Uma coisa, no entanto, que eu sinto vivendo esse tempo é que a gente vive num período de muita dispersão e muita coisa genial, absurda, que pararia o trânsito, que chamaria muita atenção, acaba passado despercebido.
Por isso, eu acho que quando a gente ouve algo, assiste algo ou lê algo que acha muito bom, a gente tem que dizer, tem que indicar. A gente tem uma dispersão sobre tudo que é feito agora e daqui a pouco isso passa. Eu sinto que está rolando isso.
Tem muita coisa boa, muita coisa forte, mas em um período mais disperso, então, vale a pena a gente sempre reforçar, indicar para os amigos, insistir para que se leia o livro inteiro, veja o filme inteiro, ouça o disco inteiro, para trazer um pouquinho essa importância. Porque tem muita coisa boa chegando e acontecendo e de modo geral está ficando um pouco disperso, fica um negócio um pouco embolado.
9 Luas – Marcelo Jeneci
A música Nove Luas, que fecha o disco, começa e com os seguintes versos: “Mais um dia no milênio/ Mais um medo que eu tenho/ E que eu quero apenas dividir”. Eles sintetizam o papel que você pretende desempenhar como músico hoje?
Sim, para mim, fechar o disco com essa frase é explicar, eu sou mais um na multidão. E aqui estão os meus medos, aqui estão as minhas questões, abertas, compartilhadas e que eu quero apenas dividir. A última palavra do disco é dividir.
Acho que isso é como um ponto final depois do disco inteiro e não só do assunto que é tratado naquela questão, que é a espera de ser pai, que eu ainda não sou. É uma necessidade de dividir, seja no pensamento, os achados poéticos, as dores, as alegrias, isso me define. É claramente a função que eu tenho na vida. E quanto mais eu me dedico e invisto nela, mais apropriação eu consigo fazer, o que tem que ser feito.
Essa ficha está caindo de uma maneira mais sólida agora. E é isso que me traz a segurança de subir no palco e levar para o maior número de pessoas possível essas reflexões. Sinto que a minha vida funciona muito através disso, que as pessoas também querem ter, como se eu estivesse também devolvendo algo, não criando algo.
É tudo num espelhamento, como se eu estivesse devolvendo. De algum modo, é uma vida privilegiada, mas também muito cobrada. Tem muita responsabilidade em tentar sintetizar um pensamento positivo, em tocar em um assunto que faz sentido tocar e ver se aquilo causa uma identificação com a letra, com a música.
Eu me sinto patrocinado pelas pessoas que querem ouvir as músicas e querem ouvir as músicas que falam essas coisas ao mesmo tempo com elas. É uma tarefa séria, responsável, ter que dar conta disso. Eu tenho aceitado de uma maneira muito boa e tem ficado claro que para isso que eu nasci.