Foto por Camila Cornelsen

Uma banda do século passado. Foi assim que a Fresno se apresentou em 24 de agosto quando anunciou a nova fase do grupo. Com os seus 21, quase 22 anos, os integrantes tiveram a oportunidade de ver a virada do milênio, interagir com o analógico e o digital e assistir de perto a transformação do consumo de música.

Nesses 21, quase 22 anos, foram 8 álbuns de estúdio lançados pelo grupo, e alguns projetos paralelos, como “Visconde” de Lucas Silveira. Entre um projeto e outro, muitas composições ficaram engavetadas aguardando lançamento. “O Lucas é um cara que faz muita música, sempre que nós encontramos ele tem coisa nova para mostrar, independente de ser em um momento de disco. Muitas vezes aquelas músicas vão ficando para trás”, afirma Thiago Guerra, baterista da Fresno, que faz parte da banda ao lado de Lucas Silveira (vocal e guitarra) e Gustavo Mantovani, o Vavo, também na guitarra. Foi a partir daí que essas músicas engavetadas começaram ganhar um espaço para lançamento. Um INVentário, em que elas são depositadas sem a necessidade de se conectar entre si, mas apenas pela música, pelo sentimento.

O grande lance do INVentário é ser uma avalanche de música. As pessoas não sabem quando vai sair, não vamos fazer todos esperarem anunciando o dia que tem música. É nos mostrar de uma maneira diferente do que vem sendo feito até aqui. Sem explicar muito também”, diz Lucas Silveira.

A ideia é dar espaço para essas composições e não deixar nada guardado. Mas os lançamentos acontecem sem aviso prévio, sem periodicidade e sem o número total divulgado, por mais que a banda tenha afirmado que chegou a catalogar 100 faixas. “O INVentário pode ser uma pasta nossa que podemos ficar lançando música pra sempre. Músicas que não fazem parte de álbuns, e não são exatamente singles. Acho que ele pode ser eterno”, confessa Lucas.

Ao todo já foram lançadas 15 músicas entre canções conhecidas de alguns shows, inéditas e novas versões. Algumas faixas contam com participações de novos nomes da cena musical, como Terno Rei, Jup do Bairro, nILL e Lio (Tuyo). Cada faixa traz uma identidade diferente, até agora, as influências passaram por ritmos como samba, rap e rock progressivo.

Nesta terça-feira (28), o grupo lança a faixa “INV015: DIGA, PARTE 1”, que estava planejada para fazer parte do álbum “Revanche” (2010), mas acabou ficando de fora. Agora, o single ganha uma nova versão com o arranjo de Mateus Asato. Em entrevista, Lucas Silveira, Guerra e Vavo falaram sobre os quase 22 anos de banda, como eles se mantêm atuais ao longo do tempo, sobre encontros proporcionados pela internet e os bastidores de INVentário. Abaixo, confira a entrevista completa.

Bom pessoal queria começar perguntando sobre o tempo de banda. Como vocês se renovam ao longo desses 21 quase 22 anos? Porque no anúncio desta nova fase vocês publicaram um texto reafirmando o fato de ser uma banda do século passado, e às vezes é muito cômodo ficar onde está dando certo e dando resultado. Como é para vocês experimentar coisas novas?

Lucas: Eu acho que vem da gente gostar de fazer música. Isso nos impede de envelhecer daquela maneira pejorativa, que é de parar de se comunicar com as pessoas, parar de entender o mundo. Ao longo de vinte anos, seja na arte, no cinema, na música ou em qualquer coisa, aprendemos muitas coisas. Nossa música é experimental nesse sentido, de conhecer uma coisa nova e querer aplicar isso na música. A nossa identidade é algo que a gente faz. Nossa ideia sempre é desconstruir, até na cabeça do fã, o que que a gente faz, ou uma noção do que que eles podem esperar de um som nosso. Nós precisamos muito dessa liberdade pra conseguir ter essa experimentação, que é o que nos mantém motivado para fazer música.

E como é essa troca com os fãs? Vi que com os lançamentos está rolando uma interação muito boa nas redes.

Lucas: Esse tipo de relação é uma relação na base de confiança. É um negócio que você precisa de muitos anos pra construir com o teu fã. No fundo, existem várias conversas acontecendo, nem que seja essa conversa diária das redes. Aí às vezes, por mais estranho que seja a proposta, ou que tu tá dizendo para esse público, ele entende que aquilo aí veio de dentro de ti assim e vai ouvir.

Guerra: A forma como é feita eu acho que faz com que seja uma relação boa para os dois lados, não é abusiva sabe? Ficamos livres e eles também.

Lucas: Todo artista que teve um mega sucesso vai ter o trampo dele sempre comparado com aquilo. Nós tivemos a fase do grande sucesso, mas não a do mega sucesso comercial, de ir ao Faustão e ao Raul Gil. Quando lançamos o “Redenção” (2008) nos tornamos mais conhecidos, mas já tinha um público do underground. Se tu pegar o Spotify de alguns artistas fica aquela coisa que não mexe, aquelas cinco faixas que são os hits do cara. Se o Lulu Santos lançar uma música nova, ela não consegue ser maior que “Como Uma Onda no Mar”, e isso às vezes começa mexer com a cabeça da pessoa. Nós não tivemos isso, e isso nos deixa muito livres. Cada dia percebemos que tem uma camada de fãs novos que surgem, tem uma porcentagem bem grande de fãs da banda que são pós-gravadora. Pessoas que antes eram muito novas agora estão começando ir atrás de uns rocks. A Fresno é uma banda que tudo que fizemos foi lançado, por ter a cultura de fazer a faixa e tacar na internet. Não tinha estúdio, não tinha dinheiro e não tinha conhecimento. Mesmo quem tinha grana, não conseguia produzir o bagulho, e também não sabia tocar direito. Mas tinha uma sinceridade, tocando um negócio que era muito sincero, sem filtro. Para mim foi a explicação daquele começo, do primeiro embrião da cena ter ficado uma coisa tão grande.

E nesse gancho em que todas as faixas da Fresno foram divulgadas, como surgiu a ideia do INVentário?

Guerra: O Lucas é um cara que faz muita música, sempre que nós encontramos ele tem coisa nova para mostrar, independente de ser em um momento de disco. Muitas vezes aquelas músicas vão ficando para trás. Só que são músicas muito foda, mas coisas que não entrariam em outro álbum. Quando eu vi tive a ideia de começarmos a soltar.

Vavo: Eu lembro um exemplo, de quando a gente foi tocar na Ilha de Comandatuba. O Lucas não estava com a voz 100%, ele pegou o violão para tocar uma música nova, que era um tom abaixo e eu nunca tinha ouvido. Dez anos depois, eram “6:34”. Não entrou em nenhum projeto no meio desse período. O INVentário foi o lugar perfeito para ela.

Lucas: Essa liberdade que estipulamos no INVentário permite não se prender aos formatos. Do tipo: ‘Como nós tocaremos essa música ao vivo?’. ‘Mas essa música não tem a ver com o resto’. Não importa, porque se tu colocar elas juntas como está agora, todas juntas, é uma coisa só. Embora seja muito diferente, é uma viagem. Um filme passando com aquele monte de músicas.

E como que vocês decidiram que as faixas iam sair aos poucos?

Lucas: Foi de birra eu acho. Porque quando o Guerra me ligou falando conseguimos pegar 100 músicas. Eu tenho 3 HD’s aqui, é muita música começada. Mas eu comecei a filtrar porque algumas eram às vezes quatro coisas no piano. Fizemos um pente fino, porque como estava tudo inacabado precisava acabar. Ao mesmo tempo, tinha muitas coisas que estavam sendo feitas agora. Começamos a votar nas ideias, entender o formato delas e chegamos em um número de músicas. Estávamos até falando ontem que o INVentário pode ser uma pasta nossa que podemos ficar lançando música pra sempre. Músicas que não fazem parte de álbuns, e não são exatamente singles. Acho que ele pode ser eterno.

Como aconteceu o processo de escolher as colaborações? Porque vocês estão trabalhando com nomes que foram influenciados pela Fresno, e como rolou esse processo?

Lucas: Nesse último ano a internet facilitou a formação de laços, porque vivemos mais na internet do que na vida. Eu fico no twitter basicamente o dia inteiro, um tempo atrás alguém chamou atenção para Jup do Bairro falando que ela gostava da gente. Nisso fica uma conversa ali. A mesma coisa com com o niLL, apresentaram na Twitch e eu gostei e twittei sobre. Terno Rei a mesma coisa, bandas que fazem um barulho na cena há tempos, mas que às vezes o nosso show não é no mesmo festival. Somos o Ronaldinho Gaúcho da parada.

Vavo: E o feat antes era presencial, o que dificultava e aumentava o custo. Hoje ele é virtual, dá para gravar da sua casa.

Lucas: A própria Jup eu devo ter visto duas vezes na vida. O niLL eu não sei onde mora, mas é um cara que eu troco ideia na internet. Às vezes, quando são artistas que são poucos conhecidos, estar numa música nossa pode ser um puta negócio. E para gente é um puta negócio de estar fazendo um lançamento que pode influenciar outro artista em coisas parecidas, não ficar escravizado pelos formatos. Eu acho que as plataformas, no fundo, são grandes empresas de tecnologia. Não são empresas primordialmente de música. Eram pessoas do Vale do Silício que inventaram negócios digitais. São empresas de tecnologia com o pensamento de que você tem que lançar a música sempre. Não pode ficar parado e tem que ter um estilo muito definido, para o algoritmo entender e colocar numa playlist. Se o INVentário fosse lançado assim, faríamos EP’s ou íamos lançar uma música a cada 20 dias. Mas o grande lance do INVentário é ser uma avalanche de música. As pessoas não sabem quando vai sair, não vamos fazer todos esperarem anunciando o dia que tem música. É nos mostrar de uma maneira diferente do que vem sendo feito até aqui. Sem explicar muito também. É totalmente contra as boas práticas das plataformas, porque essas boas práticas não são boas necessariamente para o artista. E no fundo, somos nós artistas que fazemos as pessoas abrirem esses programas.

E essa é até uma questão, porque o repasse para o artista não é justo como deveria.

Lucas: Como viemos de uma realidade onde a música era gratuita, quando foi do zero para alguma coisa várias pessoas ficaram felizes com isso. Gravar um disco tem um investimento, pode gravar um disco no teu quarto mas sempre tem um grande investimento. Tem até notícias do tipo da Billie Eilish que produziu no quarto. Sim, mas foi mixado pelo melhor mixador do mundo que é o Rob Kinelski, que é um bagulho caro. Tem um investimento muito grande pras coisas acontecerem, se tu pegar somente a conta da música, essa conta meio que não fecha. Tanto que as gravadoras hoje tem participação às vezes no show do artista, na camiseta, não vem mais falar só da música. Mas é uma coisa que a tendência é mudar, não é um formato definitivo.

Vavo: É muita ingenuidade achar que esse vai ser o formato daqui para eternidade.

Lucas: E ao mesmo tempo, a Netflix emprega um trilhão de pessoas produzindo as próprias séries. Mas tu não vê a plataforma de música produzindo as próprias músicas, dando um caminhão de dinheiro para uma banda produzir um disco exclusivo. Falando assim, parece que temos tudo contra, mas no fundo é um negócio que nos fez chegar em muitos lugares e me ajudou a descobrir muitas coisas. Não tem só coisa ruim, mas obviamente dá pra melhorar bastante, se não melhorar vem uma outra coisa e engole também.

Guerra: Uns anjos tronchos do Vale do Silício…

Caetano acertou em cheio. Agora falando sobre a mistura de ritmos experimentados pela Fresno, tanto ao longo dos últimos anos quanto em INVentário. Quero também puxar os vídeo de “Pagode Supremacy” que o Lucas publicou. Tem chances de uma faixa do INVentário com influência do pagode?

Lucas: Eu tenho lugar de fala sobre pagode porque antes eu e meus irmãos tínhamos uma banda.

Vavo: chamada…

Lucas: “Só Dá Nóis”!

Guerra: Caramba, esse nome é bom!

Lucas: É, a gente que não era bom. Mas já tinha um passado na minha família, minha mãe toca pandeiro, e era uma linguagem que unia a nossa casa. Na formação musical, quando vou pensar na melodia, aparecem uns pagodismos. Mas pode se esperar tudo. Quando eu fiz aquele vídeo exaltando um pagodão geral foi comentar. Até o cara tinha produzido a música. Nada impede, nada impede.

Vavo: Por que não um álbum com versões do Fresno em pagode?

Guerra: Aí corre o risco da gente sair dessa nossa área livre para uma área onde estamos presos no pagode (risos).

Lucas: Acho que nada impede, essa porta está aberta, por mais que a gente flerte mais com o samba e a bossa nova. Mas eu me vejo super produzindo alguma coisa no futuro, ou a Fresno participando com alguma banda.


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