Como seria a voz de Charles Bukowski (1920-1994) se ele cantasse? Talvez soasse como Otto, uma voz visceral. Eventualmente, incompleta, errada, desafinada. Ainda assim, verdadeira, artística, humana. O mais importante, uma voz contemporânea, que fala por e para muitos que vivem à margem.
No domingo (28), dia em que completou 47 anos, Otto encerrou a série de três shows no Sesc Pinheiros, quando apresentou seu novo show, Recupera, pela primeira vez em São Paulo. No palco gigantesco do Teatro Paulo Autran, ele enlouqueceu, deitou e rolou, literalmente, revisitando o repertório de seus cinco discos: Samba Pra Burro (1998), Condom Black (2001), Sem Gravidade (2004), Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009) e The Moon 1111 (2013).
Como reflexo do seu líder, a Jambro Band, vence mais pelo coração que pela técnica. Faz sua cama na África, com as percussões de Marcos Axé e Malê e se apóia no suingue de Carranca (bateria), Rian (baixo), Guri (guitarra), Junior Boca (guitarra) e Bactéria (teclado).
O cenário, feito em lambe-lambe, reforça a ideia de que o pernambucano é cria do pós-punk. “Chega uma hora que é preciso podar, parar de só jogar cimento”, afirmou Otto, olhando para suas músicas em retrospectiva. Juntas, canções como O Que Dirá o Mundo, Distraída pra Morte, Tento Entender, Lágrimas Negras, Quem Sabe Deus, Indaguei a Mente e Janaína, revelam força.
Nascido no mesmo dia que Raul Seixas, que teria feito 70 anos no domingo, o pernambucano usa as mesmas botas do mago. Bendito, Galego e sua loucura fértil, a sensação oceânica da sua música, você é prova de que ainda há espaço para a rebeldia no mundo.
O cineasta, poeta, escritor e psicólogo chileno Alejandro Jodorowsky, outro xamã, já nos alertou: “Pássaros criados na gaiola acreditam que voar é uma doença”. A arte é o antídoto, Otto liberta. Isso é rock and roll, isso é muito natural.