No clássico “Cem Anos de Solidão”, escrito pelo colombiano Gabriel Garcia Márquez, há um personagem chamado Francisco El Hombre. Na história, El Hombre é um músico viajante que reúne pessoas nas praças de cada nova cidade para cantar sobre o que aprendeu ao longo do caminho. Inspirados na obra de Márquez, a banda Francisco, el Hombre formada em Campinas por Mateo Piracés-Ugarte (voz e violão), Sebastianismos (voz e bateria), Ju Strassacapa (voz e percussão) e Andrei Kozyreff (guitarra) e Helena Papini, a nova baixista, não tem apenas o nome inspirado na obra clássica. Sempre buscando estar em contato com as pessoas e lugares, a Francisco, el Hombre gosta de gente, multidão, dança, energia, show, contato direto com o público, de movimentar as pessoas e fazer com que elas cantem e dancem as músicas de olhos fechados sem nem lembrar que estão em um teatro, festival ou casa de show.
Mas em 2020 as coisas mudaram, a banda que tem como inspiração um músico viajante que anda em constante contato com as pessoas e por lugares diferentes, se viu sem essa possibilidade. Mas Mateo, voz e violão do grupo, afirma que deu sim para viajar, de uma maneira diferente, mas que gerou bons resultados.
Imersos em Piracicaba nas chamadas “Casas Francisco” que acontecem no estúdio Lab Sounds, a banda se isolou para criar. Buscar algo nunca feito antes, o mais Francisco, el Hombre possível. Em um dos momentos mais introspectivos que vivemos, não foi diferente para Francisco, el Hombre que olhou para trás e percebeu que queria produzir algo inédito e que representasse o grupo. Depois do álbum “Soltasbruxa” (2016), RASGACABEZA (2019) e o lançamento de 7 singles no ano de 2020, a el Hombre busca algo que coloque em evidência todos os elementos que a banda tem. O resultado estará pronto no segundo semestre de 2021 e inaugura uma nova fase do grupo.
Conversei um pouco com o Mateo sobre como foi esse período de isolamento para banda, a produção do novo álbum e o que esperar do novo trabalho. Leia a entrevista completa abaixo:
Daniela de Jesus: Qual foi o primeiro contato que você teve com a música?
Mateo: Quando eu tinha uns 3 anos de idade, eu cresci mudando de país porque meus pais procuravam emprego. Eu nasci no México, fui para os Estados Unidos, depois vim para o Brasil, então fui pipocando no país. Eu sempre começava as coisas do zero, o único idioma que dava para continuar aprendendo sem começar do zero era a música. Então meus pais sempre estimularam bastante eu e meu irmão neste sentido, para gente entender a música como expressão. A música era aquela partitura, aquelas notas, era sempre a mesma coisa. Eu e meu irmão abraçamos a música como nosso principal idioma. Isso foi evoluindo, cada um para um lado.
D: O que você aprendeu se mudando várias vezes?
M: Eu não fui deliberadamente aprendendo algo, porque paramos de nos mudar quando eu tinha 10 anos. Eu fui absorvendo todas essas coisas de não criar muitas raízes, que eu tiro muito dessa conclusão. Hoje é uma coisa que a gente faz na Francisco, el Hombre, as culturas que aprendemos a dividir, subdividir e separar, elas se mesclam. Eu aprendi tudo muito misturado, na hora que fazemos a música na banda ela sai como uma coisa própria não dá para definir em um gênero. Acaba sendo uma bem natural, isso foi uma coisa que aprendemos nessa mistura que tudo se conversa que tudo é possível de comunicar. Ao mesmo tempo, o fato de não se sentir de algum país específico me fez sentir de todos igual. Me abriu a possibilidade de me sentir de outros lugares e de aprender com os outros lugares como se fosse nosso. Isso é uma eterna relação boa e má, por não me sentir de lugar nenhum, que às vezes é sem chão porque a raiz é gostosa. Mas, por outro, sentir que eu posso ser de qualquer lugar, o que é maravilhoso. Se torna uma sina e uma sorte.
D: A banda surgiu a partir de uma lenda Colombiana em que o músico viajante passava de vilarejo em vilarejo. Isso conversa muito com vocês, eu queria saber como foi para banda, que carrega estar com as pessoas na identidade, passar esse tempo em isolamento.
M: Interessante você perguntar isso porque eu acabei de ter uma sacada de como foi 2020 para Francisco, el Hombre. Nós paramos nossa agenda pela primeira vez desde o começo da banda, já chegamos a fazer 60 shows em um mês. Quando tinha disco era um trabalho intenso. Nós não parávamos nunca, então foi a primeira vez que teve um espaço, tempo e ócio criativo. Obviamente a pandemia em todos os sentidos é horrível, mas isso nos possibilitou abrir um novo leque de inspiração. Como não poderíamos ir aos lugares, começamos a estudar os lugares. Começamos a criar muitas músicas, foram 7 lançamentos em 2020 e cada um estudando um aspecto e ritmo diferente. Estudando desde o electropunk até bachata. Fizemos um monte de música que não é um gênero específico, são apenas aprendizados. Também nos dedicamos a criar muitas músicas no projeto “Casa Francisco”, em imersões, todo mundo se testava e se isolava para compor juntos. Nisso fizemos 43 músicas, além das outras 7 que estávamos lançando, porque tínhamos esse ócio criativo de não necessariamente viajar até o lugar, mas estudar sobre e criar em casa e depois criar coletivamente. Fizemos 2 imersões e escolhemos as que farão parte desse primeiro disco. Ainda não posso falar com quantas faixas, mas foi uma grande quantidade de músicas que eu tô até pensando como vamos fazer para lançar (risos).
D: Como foi selecionar as músicas entre as 43?
M: Fizemos tudo em um processo tão saudável e gostoso que foi muito fácil decidir entre duas opções que gostamos. Primeiro vetamos algumas que por algum motivo alguém não gostava, disso sobrou as 43 músicas. Das 43, votamos e peneiramos, escolhemos as que a maioria tinha certeza, e algumas as certezas foram criadas no processo de votação.
D: Então pode ser parte 1 e 2?
M: Provavelmente…
D: Como funciona para vocês a mudança de conceito para criar um novo disco?
M: Foi uma coisa que pensamos muito e realmente nos dedicamos a isso. No “Soltaasbruxas” tem uma certa união no mundo cult e orgânico. O “RASGACABEZA” é oposto ao primeiro com uma unidade eletrônica, uma coisa bem intensa, pontuda e obtusa. Ano passado com os singles cada um foi para um lado. Mas depois disso tudo, procuramos nossa unidade para fazer o disco mais Francisco, el Hombre de todos, o disco que mais nos representa. Na hora que fomos gravar, tentamos pegar todas as músicas e gravar elas com o que tocamos, não trazer coisas de fora. Mais do que isso, tentar criar um espaço para que todos os elementos apareçam. Como gravamos tudo no mesmo lugar e no mesmo momento isso já vem como uma unidade, no começo ouvíamos e pensei ‘Nossa tudo diferente’, depois de duas semanas já estávamos ‘Caraca! Tudo parte do mesmo disco e da mesma linguagem’.
D: E ainda teve a entrada da Helena Papini, conta um pouco como aconteceu.
M: Engraçado porque a gente conta pra Lena e ela não acredita, mas conseguimos comprovar para ela. Quando o Gomes anunciou a saída ele mandou uma mensagem super emotiva e maravilhosa. Eu acordei às 7h e meu irmão mais ou menos no mesmo horário, eu li a mensagem e caiu a lágrima, mas ao mesmo tempo feliz por ele estar tomando uma decisão ultra madura. Imediatamente eu falei para o Sebastián: “Cara, Helena Papini”. Ele “Helena Papini”, deu 15 minutos o Andrei mandou mensagem, “Gente, Helena Papini”. Mais tarde a Ju acordou e abriu um grupo, detalhe que ela nunca abre grupo, só entre nós 4 e sugeriu ser a Helena Papini. Quando eu fui falar com ela eu falei que estávamos vendo outras possibilidades, que nada (risos), se ela falasse que não dava não tínhamos a menor ideia de como ia ser. Ela curtiu muito por já ser amiga nossa e curtir a banda, demorou um tempo para engatar por conta da pandemia, mas quando começou a engatar foi natural. Vamos fazer mais uma sessão para finalizar tudo, mas a Lena entrou como um elemento que parece que já fazia parte da banda
D: Quais são as principais referências visuais do grupo e como funciona o processo de criação?
M: Nós estamos nesse processo e queremos encontrar uma coisa que represente a gente como banda e como indivíduo. Ainda não chegamos a um ponto nisso, vamos partir do processo de criação da nossa roupa e o objetivo é encontrar roupas que mais definem o grupo e cada um. Eu amo usar regatas que eu mesmo corto, então seria legal encontrar uma cor, tecido que agrade a todos.
D: Isso é interessante porque o jeito que nos expressamos acaba influenciando em como as pessoas vão receber a mensagem
M: Exatamente, a maneira como as pessoas veem a música é importante. O motivo de fazer o disco é porque você quer narrar uma história, contar um conceito, para que as pessoas vejam uma coletividade de ideias. Esteticamente é preciso fazer isso para que as pessoas vejam essa unidade. Estamos nessa vontade, eu particularmente sou um zero à esquerda em estética mas eu gosto de experimentar.
D: Vocês lançaram “Vou Pra Cima” com o Sidney Magal em 2020, podemos esperar mais participações no novo álbum?
M: Vou revelar uns spoilers, mas não vou falar nenhum nome porque nenhum ainda está confirmado. Mas estamos querendo fazer participações em todas as músicas, então estamos sonhando qual música combina com qual banda e artista. Chegamos a conclusão que o maior contra ataque que podemos fazer com a ressaca que a pandemia vai deixar no cenário musical é criar um unidade, tentar recriar a cena que vivíamos e que hoje está operando com dificuldade. Isso é uma cena em âmbito nacional, porque os bares estão fechando, os selos estão com dificuldade. Então queremos criar parcerias.
D: Como você definiria o novo álbum?
M: Rock tropical! Porque é inegavelmente um rock porque tem uma irreverência, tem distorção, tem uma raiva transformada em dádiva e alegria compartilhada em forma de explosão. Isso é rock, né? Esta postura, isso é rock. Por mais que em alguns lugares tenha virado uma coisa ultra-conservadora, mas queremos redefinir o rock que não é conservador. Mas por outro lado, é um rock tropical porque é quente, é malemolência, é dançante, é feito para ser cantado em coro, o que se faz neste continente, esse dança e gingado. Então classificamos como rock tropical. Até porque vimos outras bandas fazendo coisas maravilhosas que também entendemos como rock tropical. ÀTTØØXXÁ, BaianaSystem, Afrocidade e Letrux é um rock tropical. Porque é tão abrangente o que é tropical e o que é o rock que cabe tudo dentro disso, e queremos trabalhar em prol da cena.
D: Como você acha que a música pode fazer com que a pessoa se conecte com o que está acontecendo no mundo e Brasil?
M: Eu acho que é papel do artista criar reflexões. Eu não acho que inventamos reflexões, não acho que o artista pega e inventa uma coisa que ninguém tava pensando. Eu acho que o papel é justamente pegar coisas que são importantes de serem levantadas e realizá-las. Quando escrevemos “Bolsonada” vimos que tinha um discurso de ódio que tinha de ser combatido porque não podemos cair nisso. Isso vai vir, vai avassalar e vai destruir, precisávamos falar sobre isso. Esse é o papel da arte, ressaltar discussões sociais. Não precisa ser só no âmbito político, tem a ver com saúde pública, como você se trata e trata as pessoas do seu lado. Tem um momento que precisamos saber como canalizar nossa raiva para fazer alguma coisa com essa situação que o país está passando. A música é um instrumento de comunicação e de mensagem, é responsabilidade da classe artística usar o microfone não só ao seu favor, mas a favor da sociedade em geral. Com certeza o próximo disco tem várias questões que são políticas com um cunho social, são coisas que eu gostaria de falar para as minhas amigas e amigos para nos cuidarmos mais.