Não se engane ao ouvir os primeiros segundos de Selvagem? (1986), o terceiro disco dos Paralamas do Sucesso: os teclados a la anos 80 que iniciam Alagados dão a impressão de que estamos prestes a ouvir mais um disco aos moldes da década. Engano puro: as músicas de um dos álbuns mais discutidos do rock brasileiro misturavam samba, reggae, ska e, claro, rock.

Quando a banda começou a pensar no seu terceiro disco, tudo que lhes vinha a cabeça era não repetir o sucesso de seu antecessor, o ‘quase coletânea’ O Passo do Lui (que tinha Óculos, Meu Erro, Romance Ideal, Me Liga e Mensagem de Amor, entre outros hits). “A temática adolescente foi explorada ao extremo”, dizia Herbert Vianna a Nelson Motta, na época do lançamento do disco.

Os ensaios para a gravação começaram sem que nenhum dos três tivesse idéia do que iam tocar. Chegaram a fazer um cover de We Are The World, de Michael Jackson, de sacanagem. “A gente vai ganhar dinheiro com isso”, brincavam entre eles. Mas, aos poucos, os discos de Sly & Robbie, Bob Marley, Linton Kwesi Johnson, Black Uhuru e UB40 começaram a fazer sentido para aqueles três moleques brancos de classe média. “O futuro da música é negro”, disse Vianna.

Pense no contexto: o rock nacional estava estourado. Blitz, RPM, Ultraje a Rigor, Kid Abelha, Titãs, todas estas bandas dominavam o rádio brasileiro. Os temas eram mais ou menos iguais, daí a conclusão de Herbert de que aquilo estava um pouco saturado e que, se os Paralamas queriam sobreviver e escapar daquele mais do mesmo, era a hora de ousar.

Selvagem? chegou ao rádio e tomou todo mundo de assalto. O jornalista Jamari França, crítico especialista em rock feito em terras tupiniquins, relembra o choque. “Os telefones não paravam de tocar com gente elogiando e malhando: em um extremo, elogiavam a ousadia, a nova sonoridas, as letras, na outra ponta achavam uma traição porque aquilo não era rock”, conta ele.

De fato, as músicas do terceiro disco dos Paralamas não podiam lá ser chamadas de rock. As canções eram calcadas, principalmente, na bateria de João Barone e no compasso preciso e seco de Bi Ribeiro no baixo. Diferentemente dos discos anteriores, os Paralamas agora falavam de desigualdade, política, filosofia e dúvidas existenciais. Ninguém entendeu nada.

Alagados foi a música de trabalho escolhida pela EMI para lançar o disco. Aos poucos, ela – um futuro clássico – e Melô do Marinheiro tomaram conta do rádio. Herbert relembra o risco. “Estamos estimulados pela experiência de abrir uma porta e dar de cara com uma sala maior com que a que estamos”, dizia ele, à época. Não faltaram críticas: Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, ridicularizava a banda ao chamá-la de “rock de bermudas”. Tomaram pau de todo lado.

Mas todo mundo percebeu que Selvagem? era um disco revolucionário para a música brasileira. A mistura de reggae com samba em A Novidade (que tinha de letra de Gil, mais uma quebra de preconceito, já que na época a MPB não estava com nada) apontava novos rumos para o rock feito no país. “Rock não é tocar igual aos Rolling Stones o resto da vida, é?”, perguntava Herbert em entrevista concedida em 86.

Padrões quebrados em parcerias, temas e musicalidade

A quebra de padrões começava pela capa: o irmão de Bi, Pedro, com pouco mais de 10 anos de idade, todo mal-trapilho, sem camisa com um pau de madeira na mão. Daí o título Selvagem?. Todas as 11 canções do álbum iam na contramão do que se fazia no Brasil e no mundo (U2, Smiths, Cure, Jesus and The Mary Chain, “toda a bobagem dark”, como classificavam eles).

O estímulo para a gravação do disco veio da bem sucedida turnê de O Passo do Lui, em que a banda rodou país afora e ficou entusiasmada de ver a riqueza musical do páis. Some-se a isso uma excursão com Jimmy Cliff, as pesquisa de música jamaicana de Bi Ribeiro e a inquietação dos três de sempre tentarem – mesmo que, às vezes, falhando nisso – de não se repetirem de maneira alguma.

O grande mérito de Selvagem? foi abrir a mente musical, por assim dizer, dos músicos da época. O culto às bandas inglesas e tudo o que vinha de fora não fazia sentido em um país tropical e era isso que os Paralamas tentavam mostrar. Jamaica, África, Bahia, tudo isso era tão próximo e tão condizente com a situação do Brasil que negar esta influência era como negar suas origens.

Na época dos ensaios de Selvagem?, Herbert Vianna apostou que se o disco vendesse mais de 300 mil cópias ele correria pelado pelo estúdio Nas Nuvens, local da gravação. Dizem que o guitarrista, cantor e compositor dos Paralamas pagou a promessa; afinal, o disco foi um sucesso e chegou às 700 mil cópias, um número grandioso para a época.

Recentemente, o nosso disco da semana foi eleito pela Rolling Stone o 39º mais influente da música brasileira. As bandas que viriam a nascer nos anos 90 – como Skank, Nação Zumbi e Rappa – sempre colocaram o terceiro álbum dos Paralamas como uma de suas grandes influências. Pela primeira vez, o rock brasileiro não tinha vergonha de dizer de onde veio.

Discos que influenciaram os Paralamas para a gravação de Selvagem?, por Herbert Vianna:

Survival, de Bob Marley
Labour of Love, do UB40
Special, de Jimmy Cliff
Anthem, do Black Uhuru
Bass Culture, de Linton Kwesi Johnson
King Yellowman, de Yellowman
African Beat, de King Sunny Adé
The Rhythmatist, de Stewart Copeland
Uhuru in Dub, de Prince Jammy
Baggaridim, do UB40

Selvagem?, Paralamas do Sucesso
1986
Produção: Liminha
Participação de Gilberto Gil, nos vocais em Alagados
Faixas: 1. Alagados / 2. Teerã / 3. A Novidade / 4. Melô do Marinheiro / 5. Marujo Dub / 6. Selvagem / 7. A Dama e o Vagabundo / 8. There’s a Party / 9. O homem / 10. Você / 11. Teerã Dub


int(1)

Disco Clássico - Paralamas do Sucesso - Selvagem?

Sair da versão mobile