Black Eyed Peas em São Paulo
A trajetória do Black Eyed Peas é, no mínimo, curiosa. É difícil alguém lembrar do comecinho da carreira da banda, mas houve um tempo em que o grupo liderado por will.i.am não era nem de longe a máquina de fazer hits farofa que é hoje – seu segundo álbum de estúdio (Bridging The Gap, de 2000) trazia um hip hop alternativo, politizado e instrospectivo, impossível hoje de imaginar no repertório do grupo de I Gotta Feeling.
Mas a era pré-Fergie do grupo simplesmente não existe mais – e foi apagada de tal forma que é inimaginável cogitar que a banda embebida em Auto-Tune (software de afinação e modificação de voz), fanfarrona e até meio infantil que se apresentou nesta quinta-feira (4) no Estádio do Morumbi tenha algum dia feito música underground.
A imagem que o Black Eyed Peas exibe hoje – com orgulho e sem medo de empinar o nariz – é a de um grupo que dominou o mainstream de maneira indisputável, disparando hit atrás de hit e conseguindo mimetizar com inteligência as tendências de vários gêneros musicais, diluindo as peculiaridades de cada estilo e juntando tudo no mesmo pacote pop.
Todo o show desta turnê do Black Eyed Peas é estruturado a partir de uma visão muito particular do futuro – um local exagerado, berrante, multicolorido e comandado por figuras virtuais. will.i.am, Fergie, Taboo e apl.de.ap aparecem no telão como personagens de videogame, distantes mas ao mesmo tempo invencíveis. São de carne e osso, mas são inatingíveis – e enquanto os quatro integrantes passeiam pelo palco espalhando sua fantasia futurista, o público é bombardeado por bailarinos com cara de Power Ranger, bonecos metálicos que acompanham as batidas das músicas e cruzamentos bizarros de artistas do Cirque de Soleil com personagens à la Robocop.
O futuro, para o Black Eyed Peas, são essas máquinas bizarras, coloridas e amigáveis. A música segue na mesma linha, completamente modificada pelo uso excessivo do Auto-Tune e de batidas simples e incessantes. É como se will.i.am e Taboo já cantassem com a voz modificada pelo Auto-Tune, de tão robótica e mecânica que é a entonação. Tudo parece levar a uma perfeição sonora – mas o resultado é um mundo de plástico, que não abre espaço para a inovação.
Os hits do grupo são apresentados em uma sequência matadora, pensada com cuidado para não permitir que a plateia fique sequer um minuto parada – pausas para momentos de improviso não são bem vindas aqui. Não que isso seja algo inédito em shows internacionais, já que grande parte dos artistas, como Beyoncé, por exemplo, faz sempre o mesmo show por todas as cidades que passa. Mas o Black Eyed Peas nem mesmo atualiza ou traz alguma novidade a seus antigos hits, reproduzindo todos exatamente da mesma forma que nos álbuns – e uma apresentação de fôlego precisa reservar algum espaço, por menor que seja, para trazer ao público o diferencial que só o ao vivo pode proporcionar.
O show começou com Let’s Get It Started, Rock That Body e Meet Me Halfway, seguidas por My Humps, Imma Be, Missing You, Fergalicious, Pump It, Don’t Lie, Don’t Phunk With My Heart e Big Girls Don’t Cry. Enquanto que will.i.am e Taboo conseguem cantar bem ao vivo e até mesmo reproduzir algo do Auto-Tune, não é esse o caso de Fergie, que sofreu para alcançar algumas notas, desafinou várias vezes e chegou a ficar estridente, como no refrão de Missing You. Mas em questão de repertório o Black Eyed Peas de fato entregou o que prometeu: uma bandeja cheia de hits, som alto, carisma e amor ao Brasil.
BRASILIDADES
Mesmo após o discurso sobre o amor “inabalável” de will.i.am pelo Brasil e seus habitantes, o Black Eyed Peas resolveu demonstrar seu apreço pelo país com homenagens, digamos, mais elementares.
Na hora de cantar Mas Que Nada, de Jorge Ben Jor, o grupo colocou em seu telão uma enorme imagem do Rio de Janeiro e chamou para o palco algumas passistas – até Fergie arriscou uma sambadinha, e se deu bem. will.i.am tentou conquistar ainda mais o público com seu português estranho, falando sem parar as palavras “bunda” e “gostosa”. Ele também arriscou cantarolar a música Chove Chuva, também de Jorge Ben Jor.
O vocalista até fez um posicionamento político, afirmando que o Brasil está em um momento econômico extremamente positivo e que deseja sorte para a nova presidente Dilma Rousseff.
O FUTURO DA MÚSICA
O Black Eyed Peas deixou bem clara a sua posição a respeito do futuro da música pop durante o solo de will.i.am (que teve de Sweet Child O’Mine, do Guns N’ Roses, The Time of My Life, da trilha de Dirty Dancing, Nirvana e Red Hot Chilli Peppers até Thriller, de Michael Jackson). Ao misturar de tudo um pouco, o músico mostrou que acredita que esse mix de influências seja a solução para criar um som global e acessível a todos (era incrível a quantidade de crianças pequenas no show, aliás).
“Hip hop, funk, R&B, rock, pop, dance, tudo está unido, tudo é junto”, afirmou ele em certo momento. De fato, é isso que o Black Eyed Peas tenta fazer – em determinado momento do show, apl.de.ap tenta explorar um pouco a latinidade do som do grupo, enquanto Fergie aproveita as influências do pancadão e will.i.am dispara rimas no melhor estilo rinha de MCs. Ao pegar sons localizados e gêneros musicais específicos, o grupo dilui as particularidades de cada estilo e junta tudo em um amálgama de influências praticamente impossível de decifrar – é tanta coisa que não dá para entender nada em profundidade.
Essa diluição de vários sons e a criação de um pop global não são invenções do Black Eyed Peas, obviamente – mas é possível ver que o ambicioso, inteligente e marqueteiro will.i.am não perdeu tempo na hora de posicionar sua visão musical e caracterizar seu legado. A partir do Black Eyed Peas, o músico coloca para quem quiser saber a sua proposta de futuro: a junção de todos os estilos e a diluição das fronteiras a uma rádio de distância. O império de wil.i.am, pelo jeito, está só começando…
SETLIST
Let’s Get It Started
Rock That Body
Meet Me Halfway
Don’t Phunk With My Heart
Solo de will.i.am
Imma Be
My Humps
Hey Mama
Mas que Nada
Missing You
Solo do apl.de.ap
Solo do Taboo
Solo de Fergie
Pump it
Don’t Lie
Shut up
Where’s the Love
Boom Boom Pow
I Gotta Feeling