Através da música conseguimos nos conectar com outras realidades, com outra cultura, costumes e comportamentos. A música nos possibilita descobrir novos ritmos, instrumentos e línguas. Mas, uma coisa que a música também proporciona, é nos conhecer, olhar para dentro e entender sobre identidade e personalidade. E foi assim com Edivan Fulni-ô, indígena da etnia Fulni-ô por nascença e Pataxó por vivência.
Fruto da mistura de uma pernambucana de etnia Fulni-ô com um soteropolitano, Edivan é um indígena preto. Característica que fez questão de afirmar em vários momentos, ao contrário de anos anteriores em que passou negando e escondendo a sua identidade.
A Reserva Pataxós Hã hã hãe, localizada no município de Pau Brasil, no sul da Bahia, é a responsável pelas primeiras lembranças musicais de Edivan, por conta dos rituais dos povos originários. A segunda vem de dentro de casa, sua mãe, que lhe ensinou a tocar os primeiros acordes no violão. E foi na adolescência que decidiu dar os primeiros passos na carreira artística.
“Eu sou realmente indígena, eu tenho uma história e eu respeito a minha história. Eu sou indígena e sou preto. A música me ajudou bastante a me assumir indígena e preto”, declara Edivan.
Ao entrar na faculdade fundou a banda “Coisa de índio”, fez shows em diversas cidades e após um intercâmbio universitário para Portugal, decidiu seguir carreira solo. Em 2020 se mudou para São Paulo com objetivo de lançar o EP “Segura minha mão”. Até que chegou a pandemia e o artista se viu em uma cidade completamente diferente.
Na chamada, falo com um Edivan animado por estar instalado na metrópole. Mas, ao mesmo tempo, apreensivo e aliviado. Apreensivo por tantas mudanças que ocorreram no último ano, e aliviado pela possibilidade de retornar à aldeia em breve. “São Paulo tem mexido muito comigo, eu estou bem ansioso para ir para aldeia no final de agosto”, confessa o artista.
Além da adaptação com o novo lugar, outra situação aflige não só Edivan, mas como todos os povos originários. A luta pela demarcação das terras, que vem sendo enfrentada pela PL 490 em debate no plenário da Câmara dos deputados. O projeto de lei cria um marco temporal para terras de demarcação de terras ocupadas até o dia 5 de outubro de 1988, momento em que a Constituição foi promulgada. Pedidos de demarcação após essa data serão negados, além disso fica vetada ampliação de reservas existentes.
“Estou preocupado com as questões indígenas que estão acontecendo. O marco temporal em Brasília junto com a PL 490, que é projeto de lei para tirar os direitos de demarcação das terras de todos indígenas”, explica.
A música é utilizada pelo artista como uma forma de chamar atenção para a causa indigiena, propagando a cultura dos povos originários. Além de ser uma paixão desde sua infância. Edivan acredita que, através das canções, é possível se comunicar com mais pessoas.
“Os livros são poderosos, mas nós não somos bons leitores. Os filmes são poderosos, mas nem todos têm acesso à Netflix. Nossa troca cultural, nossa voz orgânica, não chega onde tem que chegar. Então temos que utilizar os mecanismos que a vida deu, como a arte. Para poder expandir essa mensagem, expandir o grito de resistência.”, reflete.
E como forma de se comunicar com mais pessoas, o artista prepara o lançamento de seu primeiro EP “Segura Minha Mão” para o mês de setembro. Com o primeiro single, “Nostalgia de Futuro”, já disponível, o artista antecede o EP que chegará pelo Selo Ambulante.
Em entrevista, Edivan Fulni-ô contou sobre o EP “Segura Minha Mão”, sobre a sua relação com a música, a mudança para São Paulo e a importância da arte em sua vida. Abaixo, confira tudo na íntegra.
Como a música surgiu na sua vida?
Edivan Fulni-ô: A música está na minha vida desde os primórdios indígenas, os rituais indígenas sempre são cobertos de cantos, musicalidade, instrumental e vocal, principalmente na Fulni-ô, que tem um canto muito bonito. Na adolescência comecei a perceber essa música mais mercadológica, como o forró, arrocha e rock. Conforme eu ia saindo da aldeia e tendo contato com a internet, eu ia descobrindo novas bandas fora da Bahia e nordeste. Por exemplo, eu conheci o rock quando vi um comercial da Legião Urbana na Globo e na internet da escola indígena eu baixei o CD completo. Foi assim que fui tendo acesso.
Como foi pra você misturar a música mais tradicional indígena com essa que chamamos de “mercadológica”?
Edivan Fulni-ô: Em casa sempre teve um violão, minha mãe toca e foi ela quem me ensinou a tocar. Nisso, eu comecei pegar as revistas dela e foi assim que aprendi violão, com minha mãe e as revistas. Quando eu entrei na universidade montei uma banda chamada “Coisa de Índio”. Tocamos em vários lugares do Brasil, geralmente em universidades, e nessa época começamos a compor cada um trazendo seus relatos. Fazíamos essa união entre a música indígena, que é a temática, junto com a estética mais comercial, como podemos dizer.
Qual faculdade você fez e onde?
Edivan Fulni-ô: Eu fazia engenharia agronômica lá na Bahia, só que eu fugi da universidade [risos]. Eu literalmente fugi, porque vim pra São Paulo na primeira semana que começou a quarentena no Brasil.
Em um vídeo do “Serei Sarau” de 2019 você falou que a música ajudou você a saber mais sobre a sua identidade indígena, que antes era uma questão. Como foi esse processo de se entender indígena?
Edivan Fulni-ô: Eu sempre cresci na aldeia e quando estava chegando na adolescência comecei a questionar alguns acontecimentos comigo, por ter uma pele preta e um cabelo fora do padrão do estereótipo indígena. Fiquei tentando buscar e entender o que significava isso. Foi na universidade que eu conheci outras pessoas com a realidade próxima à minha. Comecei a entender sobre alguns acontecimentos políticos do movimento indígena, entender nossa identidade e nossa própria história enquanto indígenas. Foi a partir daí que comecei a fortalecer minha identidade e me afirmar. Eu sou realmente indígena, eu tenho uma história e eu respeito a minha história. Eu sou indígena e sou preto. A música me ajudou bastante a me assumir indígena e preto, a lutar contra o racismo e defender a identidade. Não faria sentido nenhum eu ser indígena e não poder mostrar minha identidade nos lugares, só para não encarar a realidade.
Sim, é até um processo, né? Porque no Brasil temos uma população muito miscigenada.
Edivan Fulni-ô: É um projeto colonial que ainda está em vigor. No passado eles julgavam os indígenas pelo seu fenótipo. Julgando quem era indígena, mulato ou caboclo pelo cabelo, cor da pele e pelo modo de falar. Tentavam nos deslegitimar para tirar o nosso direito ao território. Porque é nosso lugar sagrado, onde alimentamos a nossa espiritualidade e identidade, está tudo ali. Tudo que tem significado para gente está ali, naquele pedaço de território. Então mais um motivo para defender nossa identidade, porque a minha identidade é o que garante o meu território.
Exatamente isso, é uma coisa que acaba desenvolvendo muito a pessoa. Eu também queria aproveitando esse gancho sobre estereótipo, em “Eu Não Sou Índio Para Gringo Ver” você fala sobre os estereótipos que cercam a população indígena. Com isso, eu quero saber quais são as dificuldades de ser um artista indígena?
Edivan Fulni-ô: Cara, eu acho que tem duas camadas básicas para entender o artista indígena e suas dificuldades. Eu acho que cada indígena tem uma realidade, que faz com que as dificuldades sejam diferentes. Eu trabalho isso da quebra do estereótipo, mas tem outros parentes da música que não precisam trabalhar para defender seu estereótipo, só o cabelo liso deles é suficiente para serem respeitados enquanto indígenas. Eu, enquanto indígena e preto, tento entender o que eu tenho que fazer para conseguir o mesmo respeito. Talvez não respeito, mas visibilidade, e respeito também. Porque eu sou tão indígena quanto qualquer outro, eu tenho que lutar pelo movimento indígena geral, pela demarcação das terras e também tenho que lutar para ser respeitado enquanto indígena. Tanto na sociedade não indígena e, algumas vezes, na sociedade indígenas. Entre os parentes indígenas ainda existem alguns que reproduzem esse pensamento colonial. É um ato de resistência chegar e se assumir indígena preto, além de ter muita paciência para contar toda a minha trajetória para poder ser aceito. Não que eu busque ser aceito, mas o meu trabalho é por isso, por visibilidade. Eu quero poder me assumir enquanto indígena preto em qualquer lugar que eu for, porque é isso que eu sou.
Como você acha que a sua música pode ajudar as pessoas a entenderem mais sobre a causa indígena?
Edivan Fulni-ô: Eu acredito muito que a arte seja uma das ferramentas mais poderosas para gente fazer revolução. Ela engloba todas as partes, poder trazer a nossa realidade de vida dessa forma artística faz com que chegue nas pessoas e talvez toque quem escuta. Ou ajude a pessoa a ter curiosidade e buscar saber sobre seu próprio país. Os livros são poderosos, mas nós não somos bons leitores. Os filmes são poderosos, mas nem todos têm acesso à Netflix. Nossa troca cultural, nossa voz orgânica, não chega onde tem que chegar. Então temos que utilizar os mecanismos que a vida deu, como a arte. Para poder expandir essa mensagem, expandir o grito de resistência.
Em “Nostalgia de Futuro” você fala sobre expectativas e saudade de momentos que ainda não aconteceram. Qual a sua maior nostalgia de futuro no momento?
Edivan Fulni-ô: “Nostalgia de Futuro” fala sobre essa busca pelo meu eu ancestral. Eu não vou voltar ao passado, mas eu posso encontrar esses meus ancestrais no meu futuro. Essa busca constante é como os encontros e reencontros da vida, vamos conhecendo pessoas, entendendo a história delas e vendo que nós viemos do mesmo lugar ancestral. O reencontro é um pouco dessa nostalgia de futuro. Eu falo também sobre esperança, apesar de tudo, manter essa esperança de que no futuro coisas boas vão acontecer. Se conseguirmos sentir isso, pelo menos pelo menos agora, já vai ser revolucionário.
Qual é a sua maior esperança agora? Um momento que você espera bastante.
Edivan Fulni-ô: O momento que eu espero… cara, eu espero tanta coisa que não sei. Eu estou em uma época de muita ansiedade. Morar em São Paulo tem me trazido muita ansiedade, junto com a visibilidade com a mídia nos últimos tempos. Depois que eu participei do “Falas da Terra”, na TV Globo, muita gente começou a me seguir. Isso começou a mexer com a minha mente, para entender a diferença entre visibilidade e exposição. São Paulo tem mexido muito comigo, eu estou bem ansioso para ir para aldeia no final de agosto. Também estou preocupado com as questões indígenas que estão acontecendo. O marco temporal em Brasília junto com a PL 490, que é projeto de lei para tirar os direitos de demarcação das terras de todos indígenas. Meu coração está dividido nessas duas vertentes principais: correr pra minha aldeia no final de agosto e me articular com os coletivos na luta contra essas leis.
Você mudou para São Paulo em 2020, e como você está lidando? Porque acontece muita coisa na cidade ao mesmo tempo, então como está sendo essa mudança para você?
Edivan Fulni-ô: Estou bem confuso. Eu estou lidando como uma forma de aprendizado, estou aprendendo muita coisa de produção musical, coisas sobre a vida, sobre o movimento indígena em São Paulo, conhecendo parentes indígenas daqui. Tudo acontece ao mesmo tempo, como você falou, e isso nos deixa acelerado. Mesmo encontrando parentes indígenas eu sinto falta da minha aldeia, a cultura, o clima da caatinga. Então estou celebrando esse processo psicológico de entender esse mundo louco.
Sobre o EP “Segura Minha Mão”, o lançamento teve que ser adiado. Quando ele estará disponível e como foi produzir o trabalho?
Edivan Fulni-ô: Várias coisas aconteceram na vida de algumas pessoas que fazem parte do processo da produção do EP, por isso acabamos adiando. Mas tem previsão para ser lançado em setembro. É um processo muito louco gravar um CD, é bem mais difícil do que eu pensava. As relações humanas sempre são complicadas, acho que a produção do CD em si não é tão difícil. Uma música é feita de maneira rápida, porque a mensagem está aqui no coração, com o espaço para gravar as coisas acontecem. Mas, lidar com as relações humanas, faz o processo ser demorado. Mas eu estou bem contente com o resultado, levando em consideração o contexto da pandemia e as dificuldades, né? De estar em quarentena, sair do nordeste e chegar em São Paulo já gravando um EP. Eu acho que é um resultado positivo.