Deficientes visuais com seus cães-guias
Créditos: Gabriel Quintão
Quando estão usando coleira e colete, indicativo de que estão trabalhando, os cães-guia que a reportagem do Virgula Inacreditável conheceu são os profissionais mais seriões do mundo: atentos a tudo, orelhas em pé prontas para receber comandos. Quando estão sem o equipamento, no entanto, eles permitem a si mesmos serem animais brincalhões, abanadores de rabo, cheiradores de gente. Os cegos que os acompanham desenvolvem uma relação especial com eles. Afinal, os cães, mais do que serem seus olhos, são companheiros fiéis 24 horas por dia, sete dias por semana.
“Tem gente que acha que é possível um usuário ter um cão-guia apenas como instrumento de mobilidade. Eu não acredito nisso. Você precisa estabelecer uma conexão de alma com o animal para que o trabalho dele seja incrível. A comunicação depende de uma relação afetiva muito forte”, diz a deficiente visual Thays Martinez, com o labrador preto Diesel (o carinha da foto abaixo) deitado aos seus pés, em uma livraria de São Paulo.
Thays é advogada e fundadora do IRIS Cão-Guia, instituto sem fins lucrativos que tem como objetivo a melhoria na qualidade de vida de deficientes visuais por meio do treinamento e da doação de cães-guias. Apesar de o Brasil ter 6,5 milhões de deficientes visuais, segundo o IBGE, há menos de 100 cães treinados em atividade e cerca de 12 mil pessoas na fila para receber um animal. “Quando tive meu primeiro cão-guia, em 2000, havia menos de dez no país inteiro. Eu e alguns amigos fundamos a entidade para que mais pessoas pudessem ter esse acesso”, diz.
Recentemente, o instituto treinou cachorros para o projeto Cão-Guia, realizado pelo Sesi de São Paulo. Entre outubro de 2013 e abril deste ano, a iniciativa doou nove cães a deficientes visuais selecionados, entre eles Daniel Meneses e Anderson de Mata, que tiveram suas vidas mudadas por camaradas peludos de focinho gelado (os depoimentos dos dois estão mais adiante).
Telma Pallares, porta-voz do Cão-Guia Sesi-SP, conta que o treinamento e a manutenção de cães-guia é um processo que requer bastante trabalho. “Primeiro, os filhotes vão para uma família socializadora, vivem a rotina de uma cidade e passam por todo tipo de experiência positiva: conhecem elevadores, transportes públicos, restaurantes, teatros. Depois de 10 meses a um ano, eles voltam ao canil e são treinados efetivamente para serem cães-guias, com o colete e a guia”.
“Há, então, o pareamento dos animais com seus futuros usuários, um processo que envolve, além da equipe técnica de treinamento, um time de psicólogos e assistentes sociais. Cão e usuário têm de ter perfis compatíveis. Depois de os cachorros serem entregues aos deficientes, as duplas passam por um treinamento intensivo, com o acompanhamento de instrutores. O momento em que a pessoa deixa a bengala para passar a usar o cão é muito marcante”, explica Telma.
O Virgula Inacreditável conversou com quatro usuários de cães-guia, que falaram sobre a relação que desenvolveram com seus amigos peludos (quatro fofíssimos labradores pretos, por coincidência).
Thays Martinez e Diesel
Thays, fundadora do instituto IRIS, é uma das poucas pessoas no Brasil a já ter trocado de cão-guia. Antes de receber Diesel, em 2008, ela teve Boris, um labrador amarelo que morreu em 2010, dois anos depois de se aposentar. Thays lutou importantes batalhas ao lado de seu primeiro cão. Depois de Boris ter sido barrado no metrô de São Paulo, em 2000, a advogada iniciou um processo na Justiça que culminou na aprovação de leis estaduais e federais que permitiram o acesso de cães-guias em transportes públicos.
Thays narra sua relação com o cão amarelo no livro Minha Vida com Boris (se você se emocionou com Marley & Eu, prepare os lenços de papel). Lá, ela conta que, depois da morte do labrador, ficou de luto por muitos meses e achou que nunca conseguiria se recuperar da perda. Thays acredita que sua afeição a Boris afetou sua percepção do trabalho de Diesel, com quem já estava há dois anos na época.
“A conexão com o Diesel demorou muito mais para acontecer. Eu sempre o comparava ao Boris e tinha o sentimento de que o estava trocando. Eu cheguei a pensar em devolver o Diesel, pois achava que ele não guiava bem. Olhando para trás, vejo que isso era fruto da minha leitura emocional”, disse Thays, comendo um pão de queijo no café da Livraria Cultura, enquanto pessoas paravam para tirar foto de Diesel.
“O Boris era autoconfiante e sociável. O Diesel é tímido e sensível. Foi entendendo essas peculiaridades e me conectando com meus recursos emocionais que consegui dar o suporte de que Diesel precisava para revelar seu potencial. Foi um dos maiores aprendizados da minha vida, até para me relacionar com pessoas”, afirmou.
“O cão-guia é como uma extensão do seu corpo. É o único tipo de relacionamento em que você convive 24 horas por dia com um outro ser”.
Daniel Meneses e Frontier
Daniel, que trabalha com pesquisa de mercado, recebeu Frontier do projeto Cão-Guia Sesi-SP há apenas cinco meses. Apesar do pouco tempo de convivência, já deu tempo de eles criarem uma amizade forte.
“A relação entre um deficiente visual com seu cão-guia é construída ao longo dos anos; é diferente de um bicho de estimação. No dia a dia, você aprende a entender o sentimento um do outro. Ainda assim, já na terceira semana em que estava com ele, aconteceu algo que mostrou o quanto ele gosta de mim”, diz.
“Eu precisei ir ao cabeleireiro e deixei o Frontier com dois colegas do trabalho. Foi a primeira vez que o deixei com outra pessoa, mesmo que por 20 minutos. Quando voltei, ele ficou extremamente feliz, deu um pulão que chegou a bater com o dente no meu queixo. Ele percebeu o quanto eu gosto dele. Pessoas que têm cão-guia geralmente são um pouco ciumentas em relação ao animal, e essa situação me deu confiança”.
“A relação com o Frontier é de companheirismo, pois ele sempre está ao meu lado. Às vezes, ele é como um filho: Você tem de cuidar, limpar a orelha dele, escovar os dentes, dizer não na hora que ele faz algo que não pode e parabenizar na hora que ele faz algo legal”.
Ersea Alves e Toby
Ersea é a atual vice-presidente do instituto IRIS e trabalha no departamento de marketing e vendas da SPTuris. Quando fomos entrevistá-la no trabalho, Toby, seu cão-guia há cinco anos, levantou-se de sua cama, do lado da mesa dela, e veio nos dar as boas vindas, abanando o rabo, felizão.
“Quando as pessoas veem você com o cachorro, elas se aproximam, pois ficam admiradas com o trabalho dele. Elas conversam e acabam percebendo que você é uma pessoa igual a todo mundo, que ri, que trabalha, que paga as contas. Geralmente, as pessoas não sabem como se aproximar para conversar com um cego. Nesse sentido, o cão-guia traz uma inclusão muito grande”, disse.
Por outro lado, algumas pessoas passam a mão no cachorro ou tentam brincar com o animal enquanto ele está trabalhando, o que pode fazer com que ele perca o foco. “Isso é um problema, mas tem mudado. Cada vez mais, as pessoas estão se conscientizando sobre o trabalho dos cães-guia”, explicou.
“Minha relação com o Toby é muito forte. Ele fica grudado em mim e tem muito ciúme. Quando faço carinho em outros cachorros, ele fica triste, murcha a orelha, vira de costas. Por um tempo, ele não quer papo comigo. O Toby é um cachorro tranquilo e foi muito mimado. A empresa inteira paparica ele, porque todos aguardavam com ansiedade sua chegada”, contou, enquanto Toby voltava para a cama se esconder do frio.
Anderson da Mata e Ion
Assim como Daniel, Anderson recebeu seu animal do projeto Cão-Guia há cinco meses. O rapaz tem uma vida agitada. Além de trabalhar como auxiliar administrativo, ele dá aula de discotecagem para deficientes visuais e, aos fins de semana, participa de eventos como DJ.
“A minha qualidade de vida aumentou muito desde que recebi o Ion. Eu pego metrô e ônibus para ir ao trabalho, e passo quatro horas no trânsito. Com ele, não tenho de aguardar o funcionário do terminal ou da estação para pegar a condução. O Ion decorou todos os trajetos. No começo é difícil, porque você tem de depositar muita confiança no animal, mas ele tem progredido muito”, contou, sentado no sofá de sua casa, com Ion ao lado.
Ele falou sobre o momento em que recebeu seu cão. “Você fica em um quarto, e os adestradores é que levam o cão para lá. Quando conheci o Ion, foi fantástico, nem parece real. O Ion vai fazer três anos, então é bem bagunceiro e molecão. Ele gosta de música e fica de orelha em pé quando ligo o som”, disse.
Para saber mais sobre o trabalho do instituto IRIS Cão-Guia, clique aqui. Informações sobre o projeto Cão-Guia estão neste link aqui.