Filha de uma mãe esquizofrênica e um pseudo-roqueiro fracassado, Chan Marshall sempre quis escapar. Exposta todos os dias aos males do alcoolismo e do abuso de drogas, a mais nova das filhas de Myra Lee e Charlie Marshall nunca alimentou a ilusão paz e amor da geração Woodstock – a única coisa que desejava era escapar do turbilhão de autodestruição personificado por sua conturbada história familiar.

Para fugir de seus próprios demônios, Chan Marshall queria virar dona de casa, com marido, filhos e uma fazendinha no interior. Obviamente, deu tudo errado – e ao mesmo tempo, como presenciou o pequeno público do Bourbon Street na noite de hoje (26), deu tudo certo. Muito certo. Porque alguém que possui uma voz tão hipnotizante, uma presença de palco tão ambígua e uma personalidade tão mesmerizante precisa exteriorizar e canalizar essa energia – oferecendo ao público uma oportunidade única de ver uma artista como Cat Power no ápice de seu processo criativo.

Seguindo o setlist já apresentado no show de Porto Alegre (o primeiro da turnê brasileira, que passou também pelo Rio de Janeiro e pelo interior de SP), Chan Marshall começou sua apresentação com Don`t Explain, lindo cover de Billie Holiday presente em seu álbum mais recente, Jukebox, de 2008.

A escolha foi arriscada – a canção, naturalmente intensa, é daquelas que expõe no ato a fragilidade do intérprete e a sinceridade de quem se arrisca. E Chan não estava aquecida, mostrando logo de cara o principal desequilíbrio de suas performances: ao mesmo tempo em que seus sussurros e hesitações são charmosos e pitorescos, essa timidez patológica se reflete de maneira negativa em sua voz. O espectador espera para que Chan solte a garganta e mostre o potencial de sua voz absurda, mas acaba frustrado. Em Don’t Explain, Cat Power estava travada, desconfortável, tímida e pequena diante dos flashes dos fotógrafos.

Dreams

Mas a garota sabe, ah, e como sabe, virar a mesa. Logo na segunda música, Dreams, a Cat Power tímida e que deixa o público querendo mais de sua voz potente desaparece. Em seu lugar, sobe ao palco a mulher confiante de quase 40 anos, que sabe muito bem o que está fazendo e que preenche a concha acústica do Bourbon com sua voz cheia de malícia, sedução e autocontrole. Um camaleão por necessidade ou manipulação? Difícil saber. Mas é fato que Chan Marshall pode começar um show de maneira morna, mas nunca deixa seu público até que ele consiga enxergar a magia em sua voz ronronante.

E, a cada música, Chan Marshall foi se entregando de maneira mais profunda a seu público fiel – a sequência que trouxe Woman Left Lonely, Silver Stallion e I Lost Someone foi irretocável, terminando no crescendo da música Lord Help The Poor and Needy, de Jukebox. Quem teve a sorte de estar perto do palco presenciou uma cena única – Chan Marshall completamente exposta, sem guitarra e olhando nos olhos do público, em frente a um cenário que, com as janelas envidraçadas ao fundo, lembrava uma igreja antiga de uma cidade pequena dos EUA. Por um momento, Chan reinou em uma atmosfera blues, trazendo para a música o toque dramático que o show precisava para engatar de vez. O indie virando blues.

Ela transformou o passado, mas ele reaparece

Os fãs mais antigos da cantora sempre reclamam da ausência (que existe há anos) das músicas antigas no repertório de seus shows. Nada dos hinos da melancolia e do desespero presentes em Dear Sir, Myra Lee, What Would The Community Thinks, Moonpix e You Are Free (exceto I Don’t Blame You) – Chan toca apenas cancões de The Cover Records, The Greatest, Jukebox e o EP Dark End of The Street. É claro que fazem falta pérolas como Cross Bones Style, Names, American Flag, Moonshiner, Rockets, Mr. Gallo, Nude as The News e Great Expectations, mas algumas renúncias vêm para o bem: Chan abandonou o desespero e preferiu a celebração do presente. Melhor assim.

Mas exatamente quando pensamos que as trevas do passado de Chan Marshall/Cat Power, essa artista camaleão que luta contra seus demônios ao mesmo tempo em que os celebra, estavam para trás, elas ressurgem. Porque a música da cantora não existe sem a dor – que aparece com força na interpretação intensa de Metal Heart. Para celebrar a superação (afinal, a cantora precisou ser internada em uma clínica de reabilitação após o lançamento de The Greatest), Cat Power resgata a dolorida Metal Heart e a transforma em um hino de alegria. Mas a dor está lá, com força, em cada entonação de sua voz. Ela grita. O público canta, comemora, mas sabe que, no fundo, o demônio esta lá.

Sem grandes mudanças

Em questão de repertório, a cantora não fez nenhuma modificação drástica em relação às suas apresentações anteriores no Brasil (em 2007 no Tim Festival e em 2009 no Via Funchal). A única diferença substancial é que este ano Cat Power chega ao Brasil com uma banda reduzida e uma turnê propositalmente mais intimista.

Embora o show de 2009 tenha sido mais coeso e mais rico em termos de performance vocal, uma coisa é certa – a vantagem de ver Cat Power em uma casa pequena como o Bourbon Street é que o público pôde ver de perto uma performance que oscila entre a beleza perfeita e a picaretagem, a inspiração e a burocracia, a tentativa e o erro. Chan Marshall vai ser sempre assim. E vai inspirar amor e devoção da mesma forma. Afinal, quem foi que disse que o talento é imaculado?


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Sem surpresas, Cat Power oscila entre beleza e timidez em show inspirado

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