Há 10 anos, uma brincadeira de mau gosto resultou na morte do calouro Edison Tsung-Chi Hsueh, aprovado no curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP). No auge dos exageros cometidos na noite de 22 de fevereiro de 1999, o rapaz foi obrigado a entrar numa piscina e, sem saber nadar, morreu afogado.

A festa virou caso de polícia e foi parar na Justiça. Mas nada aconteceu. Pelo contrário, com o arquivamento do processo em 2006, Hsueh Feng Ming, pai de Edison, entrou numa depressão que agravou profundamente sua saúde. Até que, ano passado, ele  faleceu.

“BRINCADEIRINHAS…”

Após a aula inaugural no teatro da faculdade, Edison e os demais alunos foram avisados de que não precisariam participar do trote caso não desejassem. Mesmo assim, quase todos aderiram ao ritual. Sem os pertences e com os pulsos amarrados, tiveram o corpo pintado e receberam banho de ovos, farinha e corante. Em seguida, seguiram até o busto de Arnaldo Vieira de Carvalho, primeiro diretor e patrono da faculdade, onde cantaram hinos, fizeram reverências e beijaram o chão.

Durante o trajeto, algumas brincadeiras questionáveis foram feitas. Uma delas simulava uma partida de boliche. Um calouro, geralmente mais obeso, era obrigado a rolar em direção aos colegas e derrubá-los. Outros tiveram de fingir praticar sexo com uma árvore.

Depois das chacotas, os estudantes caminharam até a Associação Atlética Oswaldo Cruz onde acontecia uma festa.Doses de pinga foram oferecidas aos calouros – muitas vezes com insistência. Enfileirados na beira da piscina, entoaram alguns hinos até que, após gritos de ordem, caíram na água. Alguns foram empurrados pelos veteranos. E Edison era um dos que estava entre os mais de cem alunos que entraram na água. E o único que não saiu. O corpo do rapaz foi encontrado apenas na manhã seguinte.

PROCESSO

Mais de 170 testemunhas foram ouvidas no inquérito policial instaurado para apurar as razões da morte de Edison. Diante das informações obtidas, o Ministério Público denunciou quatro estudantes veteranos da própria Medicina por homicídio qualificado.

Em 2006, o caso foi arquivado pelo Superior Tribunal de Justiça, que entendeu que não havia elementos suficientes para sustentar a acusação de homicídio qualificado imputada pelo MP. O engavetamento do processo também atendeu a um pedido de habeas corpus feito por três dos quatro acusados.

Na época, o relator do processo, ministro Paulo Gallotti, justificou que não era possível relacionar os acusados com a morte da vítima e qualificou a morte do estudante como vítima de uma “brincadeira de mau gosto”.

“Ainda que fossem veementes todos os depoimentos (e não o são) em afirmar que houve excessos, violência, agressões e abusos no ‘trote’, tais elementos de prova não se mostram suficientes para sustentar a acusação de homicídio qualificado imputada aos réus, por não existir, como acentuado, o menor indício de que o óbito da vítima tenha resultado dessas práticas“, alegou.

Um dos fatos mais questionáveis do julgamento está ligado ao ministro Márcio Thomaz Bastos. Advogado de defesa de um dos réus (o estudante Luís Eduardo Passarelli Tirico), Bastos precisou deixar o processo justamente para assumir uma vaga no ministério da Justiça. Vinte e quatro horas após tomar posse como ministro, Bastos pediu a sustação do processo.

Na época, o ministro justificou que não havia relação entre sua nomeação e o pedido de sustação. Entretanto, a promotora responsável pelo caso considerou “uma coincidência muito estranha o fato de a ação ser interrompida um dia depois da nomeação de Márcio Thomaz Bastos, sabendo-se que ele defendia um dos acusados”.

VETERANOS

Os réus eram Frederico Carlos Jaña Neto, Ari de Azevedo Marques Neto, Guilherme Novita Garcia e Luís Eduardo Passarelli Tirico.

Frederico Carlos Jaña Neto, conhecido na época como Ceará, era apontado como um dos veteranos mais agressivos nas recepções de alunos. Estudante do 6º ano, ele chegou a ameaçar um calouro dizendo que estaria ‘marcado’ caso ele se recusasse a se arrastar pelo chão do ginásio. Em um vídeo gravado numa festa, Frederico chegou a dizer que tinha “matado o japonês”, em alusão a Edison. A declaração rendeu cinco dias de cadeia, mas o veterano foi solto sob a alegação de que as declarações foram feitas em tom de brincadeira. Hoje, aos 34 anos, Frederico está casado e é médico especializado em ortopedia/traumatologia. Atende na Clínica de Fraturas de Ortopedia da Mooca, na zona leste de São Paulo.

Guilherme Novita Garcia, conhecido como Campanha, admitiu ter feito brincadeiras para assustar os calouros e disse ainda ter jogado uma estudante na piscina naquele dia. Em depoimento na sindicância interna da faculdade, Guilherme provocou tumulto ao acusar membros da comissão de distorcer suas palavras e se recursou a assinar o termo final. Atualmente com 35 anos, Garcia é médico especialista em ginecologia/obstetrícia.

Luís Eduardo Passarelli Tirico era titular do time de basquete da faculdade e considerado “mauricinho” por seus companheiros. Nos depoimentos, afirmou que não estava na área da piscina no momento em que todos pularam. Está com 30 anos e, assim como o amigo Frederico, é especializado em ortopedia.

Ary de Azevedo Marques Neto, então aluno do 3º ano da faculdade, era o presidente da Associação Atlética. De temperamento calmo, praticante de surfe e handebol, era uma das lideranças do trote. Ary teria puxado os gritos de guerra da faculdade que levaram os alunos a pularem na piscina. Aos 31 anos, é cirurgião plástico.

FAMÍLIA

Perdemos a esperança. Não existe Justiça no Brasil”, disse a mãe de Edison, a imigrante chinesa Yen Yin Hwa, de 64 anos. Yen conta que o sentimento de “impunidade” abreviou não só a sua esperança, mas também a vida de seu marido, o engenheiro civil Hsueh Feng Ming, que morreu no em 2008, aos 65 anos. “Ele começou a piorar do coração em 2004. Teve que colocar marcapasso. Foi por causa do desgosto em razão da falta de uma solução para o caso“.

A mãe de Edison mora com os outros dois filhos em Santo Amaro, zona sul de São Paulo, na mesma casa da época da tragédia. Ela conta que guarda mágoas da direção da universidade, a qual considera não ter ajudado a família e também da investigação do caso feita pela polícia. Diz que uma das três fitas de vídeo filmadas durante o trote não foi apresentada. Ela deixa sua casa diariamente cedo pela manhã e regressa apenas à noite. Trabalha em um bazar, o que, segundo ela, ajuda a não ficar “doente” remoendo o passado.

PRÊMIO EDISON TSUNG-CHI HSUEH

Desde 2005, em homenagem ao calouro da USP, a Câmara Municipal de São Paulo concede o Prêmio de Cidadania Universitária Edison Tsung Chi Hsueh para as entidades estudantis que incentivam a cidadania e a solidariedade durante o trote.

Nada além do mínimo necessário diante da impunidade que marcou este caso.

(com informações da Época e da Folha de S. Paulo)


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