Em 2004, um grupo de jovens atores da cidade de São Paulo pediu permissão para usar um prédio que um dia foi uma “pharmacia”. Na época em que foi construído o imóvel, farmácia ainda se escrevia com “ph” ou se chamava apenas boticário. O prédio projetado pelo arquiteto francês Paul Pedarrieux foi entregue, no ano de 1917, aos moradores da Vila Maria Zélia, na zona leste de São Paulo, para curar suas doenças.
Ideia do industrial Jorge Street, Maria Zélia, batizada em homenagem à sua primogênita, vítima de tuberculose aos 16 anos, foi a primeira vila operária do Brasil baseada em modelo alemão. Ali só moravam trabalhadores da fábrica de juta. Mas a vila projetada por ele e a mulher, Zélia, foi abandonada aos poucos.
A empresa que mantinha a vila faliu, e os prédios públicos do local (havia também igreja, duas escolas, restaurante, armazém e farmácia) foram entregues ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O que Street nunca imaginou é que aquele prédio se transformasse em um espaço de espetáculos teatrais.
“Eu adorei quando eles [os atores] vieram. Se cai uma tábua ou aparece uma goteira, eles mesmo arrumam. Acabou a deterioração”, diz a dona de casa Rosalva Nascimento, que nasceu na região há 75 anos.
O grupo que começou a curar as feridas da Vila Maria Zélia é o XIX. Em 2004, os atores saíram de Higienópolis e foram para a Maria Zélia encenar Hygiene, um texto que fala sobre o começo da industrialização e a higienização do país no começo do século 20. O “palco” ia da porta da igreja à porta da escola. Hygiene ganhou muitos prêmios mundo afora.
“Mas o maior dos prêmios foi o começo do processo de revitalização da vila”, diz Edelcio Pereira Pinto, conhecido como Dedé, um dos moradores mais antigos e “guardião voluntário” do local. “Legalmente, o prédio não pode ser nosso por questões jurídicas e burocráticas. Mas todos nos apoiam ali”, conta Paulo Celestino, ator da companhia.
Graças ao sucesso da peça, a Vila Maria Zélia foi cenário de filmes, novelas e programas de TV. Em 2005, Ano do Brasil na França, o grupo teatral XIX levou as fotos do espetáculo para a Europa e encantou os franceses.
Segundo Dedé, alguns franceses quiseram ver de perto o trabalho de um de seus arquitetos. Indignados com o abandono da vila, voltaram à Europa, onde juntaram forças e dinheiro. “Eles já arrecadaram 17 milhões de euros para a restauração dos edifícios”, afirma.
As duas escolas da vila – na época, meninos e meninas estudavam em prédios separados – não vão perder suas funções. Apenas os alunos mudarão: “teremos uma escola técnica de restauração para jovens”, diz Dedé. Ainda não foi definido o destino dos demais edifícios.
Emocionado, Dedé agradece até hoje o dia em que os seus “meninos”, como ele chama os atores e produtores do grupo XIX, pisaram ali e deram início à valorização da vila.
A revitalização pela cultura não é privilégio apenas da Maria Zélia. Longe dali, no centro de São Paulo, uma praça de nome imponente e antes habitada apenas por prostitutas, traficantes e moradores de rua ganhou vida nova, graças ao Satyros, grupo de teatro que resolveu se instalar na Praça Roosevelt em 2001, por ser de fácil acesso ao público.
“Tínhamos feito um trabalho semelhante na Europa e sabíamos que o teatro tinha poder para iluminar um local abandonado. Enquanto há escuridão, há violência. O teatro trouxe luz e segurança para a praça”, lembra Ivan Cabral, ator e diretor do Satyros.
Hoje, a Praça Roosevelt é um importante pólo cultural da cidade, com dezenas de espetáculos, todos a preços acessíveis. “Moradores da praça pagam apenas R$ 5 para ver nossas peças”, diz Ivan.
A revitalização não foi apenas na praça. “Conseguir um imóvel nos arredores é praticamente impossível. Um apartamento que valia R$ 20 mil, em 2001, custa hoje R$ 90 mil. Foi um boom imobiliário”, acrescenta o diretor.
Quem já andou na Praça Roosevelt anos atrás não reconhece hoje o lugar, que recebeu bares, restaurantes e outros grupos de teatro. Se a caminhada for em uma noite do mês de outubro, quando ocorre a maratona Satyrianas, com 80 horas de espetáculos ininterruptos, o reconhecimento fica impossível: milhares de pessoas vão assistir a centenas de produções.
“São Paulo é uma cidade que se renova na cultura”, explica Cibele Forjaz, professora de direção e iluminação de teatro na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Cibele também é diretora da Companhia Livre de Teatro e testemunhou a revitalização da Barra Funda, na zona oeste, para onde seu grupo se mudou. “Lembro de uma senhora que nunca saía de casa e passou a vender doces na porta do teatro depois que nos mudamos para o bairro.”
Na opinião de Cibele, os grupos teatrais aumentam a autoestima dos moradores e movimentam a economia local, gerando emprego e renda onde só havia abandono. “Como não temos uma praia, precisamos criar um oásis no meio da asfalto. E fazemos isso pela cultura. Essa é a tendência para a cidade de São Paulo: a cultura trazendo cores ao cinza”.