As caravelas portuguesas realmente erraram o caminho das Índias? A abolição da escravatura foi simplesmente um ato de bondade da Princesa Isabel? Dom Pedro I foi mesmo um libertador do Brasil?
A história é contada ao longo dos anos a partir de interesses, expectativas e pontos de vista diversos. “Porém, é importante considerar que a história se forma por um conhecimento vivo, em construção, e que se modifica a partir de novas compreensões, documentos, interpretações e fatos que antes eram desconhecidos”, aponta o especialista em Educação Internacional e professor de História do Colégio Positivo – Água Verde, em Curitiba (PR), Enzo Kalinke.
O professor acredita que alguns fatos são apresentados como coincidências históricas bastante curiosas, como a versão de que as caravelas portuguesas tinham as Índias como destino e encontraram o Brasil por engano.
“Seria muita sorte dos portugueses, afinal, exatamente as três caravelas mais importantes de toda a caravana – as quais continham representantes dos reis, patrocinadores das navegações, padres e navegadores experientes – se perderem, enquanto as que continham os viajantes menos importantes na hierarquia seguiram o rumo previsto”, ressalta o historiador, lembrando que o Tratado de Tordesilhas havia sido assinado em 1494, seis anos antes do suposto descobrimento. “Isso nos leva a questionar se teria sido a viagem de Cabral uma descoberta ou uma tomada de posse”, completa.
Mais de 300 anos depois, já na Proclamação da Independência, a obra de Pedro Américo fez acreditar que Dom Pedro I, em um ato de bravura, levantou sua espada e bradou “Independência ou morte!”, às margens do Rio Ipiranga, sendo reconhecido como um herói libertador da história do Brasil.
Contudo, Kalinke não acredita que a coragem do Rei Soldado tenha sido inspirada em ideais liberais para fazer do Brasil um país independente. “A história nos faz levar em conta que Dom Pedro I era apenas mais um português que decidiu a independência, sem participação das camadas mais pobres da população, em um processo formado e apoiado pelas elites, apenas dando continuidade ao controle de Portugal em terras tupiniquins. Não existiu a menor participação da população na Proclamação da Independência”, destaca o professor.
Avançando mais de 60 anos, a abolição da escravatura no Brasil é vista como um ato heroico e bondoso de Princesa Isabel, que usou seu poder para sancionar a Lei Áurea. Kalinke defende que o ato de Isabel foi muito mais influenciado por outras questões do que, de fato, sua bondade.
“Certamente, temos relatos que a mostram mais engajada em causas sociais, quando comparada com outros que ocuparam seu cargo. No entanto, tal bondade não seria suficiente para uma decisão de tal calibre”, justifica o professor, destacando que a princesa era, acima de tudo, uma política, que estava enfrentando três fatores de extrema importância.
“Naquele momento, Isabel sofria pressão por conta de uma série de revoltas dos escravizados, os quais buscavam lutar pela liberdade com as armas que tinham; a pressão externa, realizada por outras nações, as quais já haviam declarado o fim da escravidão, e as ideias iluministas presentes nas sociedades europeias, que chegaram ao Brasil com a Maçonaria, um grupo com grande influência política na época”, detalha.
Já no século XX, o líder da Revolução de 1930, que acabou com a República Velha, Getúlio Vargas, é frequentemente lembrado como “pai dos pobres”. O professor reconhece que Vargas merece a alcunha por algumas de suas realizações, como a criação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a qual garantiu direitos que, hoje, são considerados básicos aos trabalhadores.
Contudo, o ex-presidente estava longe de ser simplesmente um benfeitor. “Poucos sabem que nosso então presidente era chamado também de ‘mãe dos ricos’ e tornou-se um ditador civil, aplicando medidas como a censura aos meios de comunicação, além de especulações de envolvimento em atos violentos contra a oposição”, relembra Kalinke, dando ênfase ao Estado Novo, regime político instaurado por Vargas por meio de um golpe de estado, que tinha como características a centralização do poder e o autoritarismo.
O especialista explica que é normal escolher a versão das história que fortaleça o sentimento nacionalista, deixando a narrativa mais bonita do que realmente é. Como a figura de Tiradentes, por exemplo, que foi uma pessoa “montada” pelo governo brasileiro para a imagem do herói nacional.
“Ao serem confrontadas, algumas dessas versões parecem cercadas por fatos pouco explicados ou coincidências que nos levam a questionamentos. Mas, os fatos que discutimos não visam diminuir ou menosprezar nossa história. Pelo contrário, objetivam mostrar que talvez ela seja ainda mais que aquela que nos foi contada por muito tempo”, finaliza Kalinke.