Um taxista que, para ganhar uma grana extra (esta é a desculpa), faz programa com outros homens. Um ser que detesta a ex-mulher, despreza o filho por acreditar que seja gay e é escroto em sua plenitude. Este é o personagem central da peça Desamor, escrita por Walcyr Carrasco e interpretada de forma visceral por Dionisio Neto, que reestreia no dia 16 de agosto, sexta-feira, às 20h, no Estúdio Terra Forte, em São Paulo.

E é exatamente desamor e repulsa que os espectadores sentem nos primeiros minutos da peça por este personagem tão complexo. Em 40 minutos, Walcyr constrói um taxista machista e o desmonta também (da mesma forma que fez com Félix, o vilão da novela das 21h interpretado por Mateus Solano, nas cenas que ele é forçado a sair do armário). “Os dois têm sim uma grande rejeição aos seus próprios desejos”, disse o autor de Amor à Vida ao Virgula Famosos.

Na entrevista abaixo, Walcyr conta sobre como pensou a peça, sua parceira com o ator e diretor Dionisio Neto (esta é a segunda peça que o dramaturgo escreve e Dionisio protagoniza e encena, a primeira foi Seios, em 2009) e comenta comparações entre Desamor e os personagens de Amor à Vida.

Virgula Famosos – Como surgiu a ideia da peça Desamor?

Walcyr Carrasco – Certa vez, eu peguei um táxi com um taxista que me contou que tinha sido michê. E realmente a história dele me impressionou. Daí surgiu Desamor.

Ao ver a peça, podemos dizer que o homem citado pelo taxista, como a pessoa que fez um gesto que o modificou, seria você?

Não, eu não sou o personagem de quem ele fala, porque não tive nenhum gesto de generosidade para com ele. Na verdade quando ele falou dele, de sua vida, fiquei até chocado pela crueza de sua falta de sentimentos.

Como nasceu a parceria com Dionisio Neto?

Surgiu meio por acaso, mas acho o Dionisio um grande ator, dos melhores de sua geração. Eu escrevo para ele com felicidade, acho que ele ficará na historia do teatro.

Como a questão da homofobia perpassa em seu texto. Aliás, em sua obra, pensando em Seios (que tem a transfobia, irmã da homofobia), em Desamor e mesmo em Amor à Vida?

Eu acho que vivemos numa época difícil, onde ao mesmo tempo que há uma grande abertura, até uma exigência de falta de preconceito, há também uma radicalização de setores conservadores da sociedade. Então, eu procuro discutir aquilo que é diferente, que não é aceito. Acho que minha função como autor é também abrir a discussão sobre temas polêmicos. Seja no teatro, na novela ou na literatura infantil. Sou autor do livro Meus Dois Pais, lançado pela Editora Ática, que é o primeiro a olhar a questão da aceitação sob o ponto de vista de um menino cujo pai é gay. O livro tem sido adotado por escolas de todo país, inclusive.

Apesar de ser uma peça curta, o taxista é um personagem muito complexo e suas nuances são todas apresentadas. Como pensou a construção deste personagem?

Eu escrevo por intuição, quase como um desabafo. A peça aconteceu assim. Sentei, escrevi e depois levei um susto ao constatar a força do personagem.

Parece-me que o tema da sexualidade e precisamente da homossexualidade é a capa para que, de fundo, você possa dissertar sobre  a incompreensão. Como o tema incompreensão te afeta, isto é, o que tem neste tema que faz com que você com frequência olhe para ele?

Acho que o tema da incompreensão afeta todo mundo, hoje em dia. Vejo as pessoas ainda presas a projetos de vida que não são delas, mas de pais, parentes, do meio ambiente em que vivem.

Em minha opinião. o taxista homofóbico e César, o pai homofóbico de Félix (interpretado por Antonio Fagundes) têm semelhanças, além da questão da rejeição aos gays. Você concorda?

Não, não concordo, porque há uma diferença fundamental. O taxista vive de sexo com homens, pratica sexo com homens, e vê no sexo uma relação comercial. Mas não ama as mulheres. Ele é homofóbico em relação a seus clientes, que não beija na boca, mas é principalmente homofóbico em relação a ele mesmo, cuja vida sexual foi pautada pela relação com homens. Ele sente o desejo, mas rejeita o próprio desejo, acredita que é apenas uma relação física, sem afetividade. Ou seja, mascara seu desejo numa relação comercial. Assim, ele representa o homossexual e, falando francamente, uma grande parcela de gays que em maior ou menor intensidade, rejeitam a si mesmos. O personagem da novela, César, não tem nada de homossexual, pelo contrário, relaciona-se com várias mulheres e gosta disso. Ele é homofóbico em relação ao filho e ao resto da sociedade. Ele representa, na verdade, uma grande parcela da sociedade em que vivemos.

O taxista da peça Desamor pode ser comparado com Félix. Você recentemente, em uma coluna na Época, disse que amava o Félix, era seu filho. E no final da peça, você também faz uma redenção ao taxista que é apresentado como um ser abjeto no início, pois deve amá-lo também. No que, além deles terem a sua paternidade, eles tem algo que os une?

Os dois têm sim uma grande rejeição aos seus próprios desejos. Eu acho que essa é uma grande questão das terapias hoje em dia, no trabalho com os gays: a internalização da repressão que leva as pessoas a rejeitarem seus próprios desejos e a uma dificuldade na entrega, no amor.

O amor no sentido amplo da palavra é a cura contra a homofobia? 

A aceitação do amor, sim, mas eu gostaria de colocar nessa resposta a questão do amor próprio. Muitos gays esperam a aceitação, e sentem que dependem disso para serem felizes. mas isso é uma tremenda falta de amor próprio. Se a pessoa que é gay tiver uma grande capacidade de amar a si mesma, conseguirá estabelecer relações de amor profundas com outras pessoas. E saberá dizer para quem a rejeitar que, se não a aceita como ela é, ela não  fará falta em sua vida.


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Peça de Walcyr Carrasco sobre taxista michê reestreia e ele o compara com Félix: ‘Eles rejeitam seus próprios desejos’

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