Imagine um espetáculo teatral sem diálogos, todo construído na linguagem da performance, e cujo elenco traz mais de 20 atores homens, que passam a maior parte do tempo inteiramente nus. Imaginou?
Então pode abrir os olhos e assistir, ele existe. Anatomia do Fauno é a peça, que estreou na SP Escola de Teatro (na unidade da Rua Marquês de Itu), onde realizou 4 apresentações. A temporada foi interrompida e reestreia agora no sábado (07/11), para ficar em cartaz por mais de um mês, na SP Escola de Teatro (unidade matriz, na Praça Roosevelt).
A montagem há meses já vem causando muito frisson nas redes sociais (Facebook!), onde a página do projeto estampa fotos do processo da peça, escandalizando e/ou fascinando muita gente. Afinal, o erotismo voraz é um dos principais vetores do trabalho, cujo ponto de partida foi o poeta francês “maldito” Arthur Rimbaud (1854-1891) – aquele que aprontava peripécias como urinar em cima da mesa nos saraus de poesia e que já foi interpretado por Leonardo DiCaprio no filme Eclipse de uma Paixão (1995).
Mas além de Rimbaud outros temas brilhantes entraram na pesquisa da peça: a coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), o bizarro grupo catalão La Fura dels Baus, o performer Renato Cohen, a filósofa Judith Butler, pornochanchadas, clipes, Lady Gaga, Bjork, Kazuo Ono…
Mas antes que você, leitor, pense que é uma peça exclusiva para o público gay, atenção: “Acredito que ao mostrarmos como os gays lidam com sua sexualidade podemos iluminar outras formas de erotismo. Nesse sentido não fizemos um trabalho endereçado ao público gay e sim para todos, acho que essa obra fala para heterossexuais, lésbicas, trans…”, diz Marcelo Denny, diretor do espetáculo ao lado de Marcelo D’Avilla. Entrevistamos os dois diretores, siga a conversa:
Como surgiu a ideia do espetáculo?
Denny: Sempre me instigou o universo imagético homoerótico e também eu tinha uma desconfiança e um incômodo sobre como a cena teatral paulista via as questões das políticas do desejo homoerótico. Apesar da quantidade de pessoas gays que fazem teatro em São Paulo, a temática homoerótica sempre cai na chave das montagens com textos com começo meio e fim, histórias impossíveis e dramáticas que ao meu ver sempre encobrem possibilidades e desejos, se enquadrando em características do drama burguês, daí surgiu a vontade de investigar o universo homoerótico por outros meios.
Por que resgatar Rimbaud? Ele é atual nos dias de hoje? Qual a conexão entre ele e o universo gay atual?
D’Avilla: O nosso dramaturgo, Alexandre Rabelo, trouxe as poesias do Rimbaud e facilmente aconteceu um reconhecimento. Era um jovem quando escreveu, há mais de 100 anos, e o jeito com que o homoerotismo se dava ainda se opera aqui.
Denny: As questões de Rimbaud são as mesmas do século 19 e hoje ainda somos oprimidos e temos de criar novas políticas para fruir nossos desejos numa sociedade cada vez mais conservadora e preconceituosa, aliás o meio gay é bastante despolitizado como um todo e daí vem o preconceito e a homofobia típica das heteronormatizações, ainda falta muito para que o universo gay descubra seu poder, pois tudo ainda está ligado à fragilidade do glamour cafona das divas e nada voa para além das regrinhas de comportamento que divertem e ao mesmo tempo oprimem. Ou seja, nem tudo é maravilha, fazer uma auto-crítica era necessário.
Como foi o processo de ensaios? É difícil escalar um elenco para um projeto de tanta exposição?
D’Avilla: Fizemos uma chamada em fevereiro para todos os interessados, com experiência ou não nas artes do corpo, seja performance, teatro ou dança. Mais de noventa pessoas devem ter passado pelo processo, tanto os atores quanto o pessoal da técnica. É muito difícil um elenco tão disposto, mas como estamos sem grana alguma, seriam apenas os loucos e os que sentem seus corpos cortados pelo tema que iriam chegar conosco até o final. Por mexer em muitas feridas internas e dúvidas pessoais, questões do cotidiano de cada um, muitos saíram durante o processo pois não conseguiram cutucar todas as feridas do próprio corpo e não de uma personagem.
Percebo na peça um tom de crítica ao “mundinho” gay masculino, seus aplicativos, vícios…
D’Avilla: Durante os improvisos iniciais, todos vinham deste lugar mais chato, taxativo, gueto, angústias, dor, vícios, apps. E raramente surgiam provocações pessoais que levassem o elenco a sair da caixinha, para além das normatividades. Então pensamos que realmente o material era esse. E se todos ali são gays, vivem na mesma cidade, e querem falar disso, então sim, é nosso mundinho, que sabemos que abarca inclusive os héteros homens ou mulheres, assim como muitas mulheres trans foram ao espetáculo e também se identificaram.
Denny: Caímos, com facilidade, numa armadilha pós moderna cheia de angústias e medos. A cultura digital facilitou o rápido fluxo de troca de corpos, o consumo e descarte cada vez mais rápido que ao mesmo tempo que é louvado desenha um cenário de solidões e angústias cada vez maior, fortalecendo um individualismo cada vez maior.
Quais as dificuldades de se montar uma peça como essa, sem apoio, sem $$$, etc.?
D’Avilla: Todas. Não há dinheiro pro ônibus, não há dinheiro pra uma fita crepe, pra um glitter sequer. Chora-se pra todos os lados e desembolsam-se os cartões de crédito de quem tem, faz-se experimentos com roupas doadas do elenco, come quando dá, bebe quando tem, troca-se muita coisa, une-se a parceiros, faz festas, tenta erguer dinheiro. Corre. Mas faz. Mas é absurdamente cansativo, pois eu e o Denny fazemos tudo, desde limpeza, até borderô, mídias sociais, produção…
Denny: Se fazer teatro com dinheiro já é difícil, sem dinheiro algum é uma tourada sem fim! Quase esquecemos como é fazer um trabalho desse tamanho sem apoio financeiro, os editais e prêmios “viciaram” a cena teatral numa forma de operar. Fizemos festas para levantar o trabalho e com dívidas estreamos, ainda dependemos da bilheteria para pagar essas contas, é bem difícil, mas acredito que esse trabalho é um belo exemplo de como ainda se pode fazer arte sem apoio.
Existe uma cultura gay? O que seria?
D’Avilla: A pergunta que não quer calar é: O que é gay hoje? É ser homem, mulher, lésbica, macho, bicha, marido enrustido, afeminada, branca, cis, caricata, pobre, rica, de direita, de esquerda, de cima, de baixo, ativo, passivo, normativo… o que é ser gay? Tudo o que se veste é gay? Tudo o que se compra é gay? Essa música é gay? Quem lê isso é gay? Quem apanha na rua é gay?
Acreditam que o espetáculo possa contribuir para questões sociais da militância LGBT, ou para ampliar as discussões sobre a visibilidade gay?
D’Avilla: Eu sei o quanto lutamos por visibilidade e entendimento da causa, sei que está complicado com tanta bancada violenta contra os direitos humanos, mas acredito que o espetáculo não traz uma visibilidade para a militância ou para alavancar os nossos direitos. Direitos que são de todos, direitos que são do corpo e para muito além de LGBT ou não. Acredito que o espetáculo é mais uma reflexão sobre o modo com que operamos hoje, gay ou não.
Denny: Sim, acredito, nessas semanas em cartaz já colhemos muitos depoimentos de pessoas que falaram o quanto esse trabalho pode ajudar a entender e perceber nuances das formas como resolvemos nossas solidões, amores e como nos vemos.
Anatomia do Fauno
De 7 de novembro a 20 de dezembro
Sábados 23h / Domingos 20h
SP Escola de Teatro – Praça Roosevelt 210
100 minutos / 18 anos
R$20 e R$40
* Nos dias 21 e 22 de novembro não haverá espetáculo