Uma de minhas diversões preferidas nos últimos meses é ir assistir aos filmes que a rede Cinemark está exibindo em suas salas dentro do projeto Clássicos Cinemark. A oitava temporada acaba de começar, e o filme escolhido para abrí-la foi O Silêncio dos Inocentes (1991).
Eu tinha visto o filme no cinema na época da exibição original, e depois revisto em VHS (sim, isso existiu!) e na TV. Mas rever a obra na telona sempre é uma experiência envolvente, ainda mais quando é um filme tão denso como este.
A trama já é mais do que conhecida: a estudante do FBI Clarice Starling (Jodie Foster) é convocada para “entrevistar” o Dr. Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) – Hannibal, o Canibal, um perigoso maníaco, ex-psiquiatra, que está preso há anos por ter assassinado e comido (literalmente) alguns de seus pacientes.
Mas a entrevista é uma tática do chefe de Starling, Crawford (Scott Glenn) – o objetivo é fazer com que Lecter forneça informações que possam levar à captura de Buffalo Bill, um serial killer que anda raptando garotas gordinhas, matando-as e arrancando suas peles.
Começa o famoso duelo psicológico entre Clarice e Hannibal, abrindo espaço para que os dois atores brilhem – ambos ganharam o Oscar na premiação de 1992. Curioso perceber que, na década de 70, Jodie e Hopkins já atuavam em muitos filmes – ele, um jovem ator vindo do teatro; ela, uma pré-adolescente que estrelava filmes da Disney e obras como Taxi Driver (1975), de Martin Scorsese. Ninguém imaginava que essa improvável dupla um dia contracenaria a bordo de personagens tão emblemáticos.
Ao longo do filme, descobrimos que Buffalo Bill é um transexual, e sua loucura é tentar usar as peles de suas vítimas para que ele próprio se transforme numa mulher – entra aí a simbologia dos insetos que se transformam em borboletas, um dos ícones do filme.
A questão da transexualidade do criminoso gerou muitos protestos contra o filme e seu diretor, Jonathan Demme, na época do lançamento. Militantes LGBT repudiaram o filme, alegando que ele reforçava estereótipos negativos contra gays / LGBT, ao retratar tais personagens como criminosos, assassinos, marginais, doentes, perturbados. Na verdade a origem da história nem era “culpa” do cineasta, pois o filme se baseava no livro de Thomas Harris.
O assunto acabaria sendo analisado no documentário O Outro Lado de Hollywood (The Celuloid Closet, 1995), e Jonathan Demme realizou uma espécie de “compensação”, ao dirigir, em 1994, Filadélfia – o filme onde Tom Hanks vive um advogado gay e soropositivo que luta por seus direitos.
De qualquer forma, talvez Demme tivesse sim defendido questões gays com O Silêncio dos Inocentes: revendo o filme hoje, dá para perceber uma sutil ligação entre Clarice Starling e sua colega de FBI, Ardelia (Kasi Lemmons). As plateias de 1991 podem não ter notado, mas hoje, com os códigos gays plenamente assimilados e fixados através de filmes e séries de TV, é quase explícito que Clarice e Ardelia têm uma ligação forte – um romance, provavelmente.
Vários detalhes na atuação de Kasi Lemmons indicam isso, e a própria Clarice mostra-se assexuada, rejeita todas as paqueras dos homens ao longo do filme – e durante todo o longa vemos como a personagem luta para se impôr num mundo masculino e machista. Sem falar no óbvio: a escolha de Jodie Foster para o papel (o diretor havia pensado anteriormente em Michelle Pfeiffer) teria a ver com a homossexualidade (hoje assumida) da atriz? Na época, ainda vigorava certo padrão em Hollywood: para encarnar personagens gays e lésbicas em filmes, raramente eram escalados atores heterossexuais.
O Silêncio dos Inocentes sofreu certo desgaste nos últimos anos – mas o motivo é que Hollywood e as séries policiais de TV se inspiraram inúmeras vezes no filme, reproduzindo seus climas, estrutura e tipos de personagens. Por isso, revisto agora, o longa perde um pouco de sua força.
Mesmo porque existiu a continuação (fraca) Hannibal, de 2001, com Hopkins retomando seu personagem, e Julianne Moore como Clarice Starling. Isso sem falar da série Hannibal, da NBC, que estreou em 2013 e acaba de ser encerrada – o Dr. Hannibal Lecter é, óbvio, um dos protagonistas da série.
Ainda assim, algumas sequências do filme permanecem antológicas: a melhor delas é a mirabolante fuga de Lecter do segundo presídio onde se encontra, um trecho que ainda mantém seu impacto. Ou ainda o embate entre Lecter e Clarice nesse mesmo presídio, quando ele faz com que ela se recorde das ovelhas de sua juventude; e por fim a sequência final, com o telefonema de Lecter a Clarice e o desfecho do psiquiatra. Como podemos ver, todas as grandes cenas do filme envolvem Lecter, o grande personagem do filme.
O Silêncio dos Inocentes ganhou em 1992 os 5 principais Oscars: Filme, Direção, Ator, Atriz e Roteiro (adaptado do romance de Thomas Harris). Foi o terceiro filme na história do cinema a realizar esse feito – os outros foram Aconteceu Naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975). O filme permanece como um clássico moderno do cinema, uma obra que continua intrigando, assombrando e impressionando plateias…