Uma das artes mais antigas da humanidade, o teatro vive em constante renovação, se reinventando a todo momento – e por isso mesmo sobrevive, como forma de diversão, entretenimento, reflexão e espelho da sociedade. Diversos grupos e companhias teatrais investem em novos formatos e concepções, e um deles é o Teatro Kunyn, companhia que se prepara para estrear sua segunda montagem.
Com o título Orgia ou De Como Os Corpos Podem Substituir as Ideias, a peça segue o caminho iniciado pelo grupo em sua montagem anterior, Dizer e Não Pedir Segredo – que buscava fazer um tratado sobre a homossexualidade masculina no Brasil sob perspectiva histórico-social. A peça era apresentada dentro de apartamentos particulares na cidade de São Paulo, com o público acomodado por ali mesmo, e partia do livro Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan – obra que é a bíblia sobre a história LGBT no Brasil.
Desta vez, na nova montagem, o grupo se baseia em outro livro: Orgia: Os Diários de Tulio Carella, Recife 1960. Trata-se do diário particular do escritor argentino Tulio Carella (1912-1979), que em 1960 desembarcou no Recife, contratado como professor de direção e cenografia da Universidade Federal de Pernambuco.
No livro, sob o pseudônimo de Lúcio Ginarte, Tulio descreve em detalhes seu mergulho no “submundo” gay da Recife da época. Os encontros e desencontros furtivos nos mictórios, parques, praças e ruas da cidade, e dentro de seu quarto de hotel, nos quais o escritor se entrega às aventuras sexuais com os rústicos homens da capital pernambucana – figuras pitorescas e controvertidas, cujas sexualidades permanecem um enigma para o escritor, que faz sexo com eles sem conseguir desvendar o íntimo de cada um. Personagens como King Kong, um dos amantes de Tulio, compõem esse elenco de “cafuçus” (numa época em que esse termo nem existia!).
Tulio acabou expulso do Brasil pelo governo, que desconfiava de suas atividades e achava que ele era comunista. Ao descobrirem que seus escritos tratavam de sexo gay e não de política subversiva, deu na mesma: comunista ou “pederasta”, não importava – Tulio foi sequestrado pelo governo, mantido em cativeiro e depois deportado. O escritor morreu em 1979, em Buenos Aires, em decorrência de problemas coronários, aos 66 anos.
Mas sua obra sobreviveu: já em 1968, em plena ditadura militar brasileira, o diário do escritor foi publicado (apenas no Brasil) em formato de livro, com o título de Orgia. Esquecido e ainda inédito na Argentina, Orgia foi reeditado no Brasil em 2011 pela editora Opera Prima – e virou cult entre o público LGBT moderno.
E assim, o Teatro Kunyn decidiu se debruçar sobre a jornada de Tulio no Recife. Para alcançar o efeito do livro, que descreve o espaço público do Recife, o grupo decidiu realizar a peça no Parque Trianon, no coração da Avenida Paulista. Nada mais adequado: o público seguirá os atores se embrenhando pelo parque, acompanhando os contatos do escritor com os homens que vão e vem. E mais: o público estará com equipamentos auditivos, ouvindo por ali o áudio do espetáculo – aproximando-se assim da narrativa do livro, em primeira pessoa.
O elenco é formado pelos integrantes da companhia, Ronaldo Serruya, Paulo Arcuri e Luiz Gustavo Jahjah, que se dividem no papel de Tulio. Para encarnar os homens anônimos com quem o escritor se relaciona (ou não), haverá a presença de 10 atores, escolhidos por meio de uma oficina. A direção é de Luiz Fernando Marques, do Grupo XIX de Teatro.
O Virgula acompanhou um ensaio da montagem no Parque e o resultado é bem estimulante. Os atores se confundem com os passantes e frequentadores comuns do Trianon, criando uma experiência sensorial e visual marcante. As ações do elenco estão sujeitas ao ambiente do Parque e às interferências de quem passa e vê a coisa rolando – gerando quase que um “happening” teatral, tendência que explodiu nos anos 60. Para conferir, a montagem estreia em 19 de junho, às 16hs, no Parque Trianon.