A incerteza entre ter ou não “dado certo” como modelo é o fio condutor de Preciso Rodar O Mundo – Aventuras Surreais de Uma Modelo Real, de Michelli Provensi, 29. A modelo, que saiu de Maravilha, Santa Catarina, aos 16 anos, conta no livro uma versão sem glamour da vida de modelo, que envolve dividir apartamentos minúsculos com pencas de meninas, levar calotes de clientes, rodar o mundo e, com sorte, se divertir um pouco.
“Queria tanto que você tivesse dado certo”, disse uma booker (agente de modelos) a Michelli, em cena narrada logo no início do livro. “No entender dela, ela via as meninas que moraram comigo, como Cintia Dicker e Carol Trentini fazendo coisas importantes lá fora. A vontade dela, vendo meu potencial como modelo, era que eu tivesse dado certo daquela maneira estrelada da coisa. Fiquei pensando: o que é dar certo? Todo mundo precisa ficar famoso para dar certo? Meu mérito de sair de Maravilha e estar aqui 12 anos depois não conta? Foi bom pra eu repensar a coisa e ver a profissão de outra maneira”, divaga num tom #xatiado.
Na obra, a modelo não omite os próprios deslizes, que podem ter comprometido um sucesso ainda maior. Numa mistura de desprendimento e pretensão, coisa supercomum da adolescência, Michelli ia a testes usando chinelos, enquanto as outras meninas iam de salto 15. Além disso, cansou de faltar a castings importantes, entre eles o do estilista Tom Ford. Nada disso a impediu de continuar trabalhando e ser requisitada por clientes. Foi modelo de prova da maison francesa Yves Saint Laurent – trabalho que exige medidas perfeitas, mas pouca criatividade: ficar em pé por horas a fio, servindo, literalmente, de manequim vivo. “Me orgulho de ter feito isso, mas muitas meninas têm vergonha de citar esse trabalho no currículo”, conta.
Mesmo assim, uma ascenção ao primeiro escalão não aconteceu. “Se eu tivesse essa cabeça que tenho hoje quando comecei, ninguém me segurava. Mas não tinha”, lamenta.
E, afinal, o que tem de especial nas poucas Giseles entre milhares de modelos que fazem carão mundo afora? “Estão no lugar certo, na hora certa, esse clichêzão. E garra. Um sangue nos olhos positivo”, explica. Desde que começou a viajar – morou com centenas de modelos, nos Estados Unidos, no Japão, em Londres, em Milão – Michelli escrevia ficção e músicas. Pensava em escrever um livro, de ficção, mas queria contar a própria história antes. Com a ajuda e incentivo de dois amigos, os jornalistas Ronaldo Bressane e Cassiano Elek Machado, chegou lá.
O livro aborda o cotidiano das centenas de modelo do mundo todo – em especial do Brasil e do leste europeu. Conta da rivalidade com as russas, a crueldade de certos clientes e dos problemas do mercado. Um dos que chamam a atenção é que, ao contrário do que se imagina, nem toda modelo fica rica – muitas acabam contraindo dívidas com suas agências. “Já vi meninas voltando para casa de Nova York com dívidas de US$ 30 mil”, revela.
A própria já levou um calote quando a agência brasileira Marylin, da qual era contratada, foi à falência em 2004 e deixou de pagar a ela R$ 20 mil reais. Sem contar que marcas famosas, como Marc Jacobs, muitas vezes pagam as modelos em roupas, não em dinheiro.”Não acho justo. Tem de ter um pouquinho de dinheiro pra pagar despesas de alimentação, transporte”, defende.
Outro tema que ronda o universo da moda, a ditadura da magreza, aparece dezenas de vezes no livro, sempre perto da palavra “dieta”. O caso de uma menina que morre vítima de anorexia é lembrado por Michelli. “Uma vez na vida me peguei com o dedo na garganta para vomitar e chorei muito. Foram uns três anos pra aprender a gostar do jeito que eu sou”, conta. Ela tinha 22 anos. “Não tem porque se mutilar assim”, pondera. E defende que o tema continuará sendo importante enquanto meninas forem vítimas dessa pressão. “Tem sempre novas meninas chegando, o mercado está se renovando toda hora. Essa discussão é atemporal”.
Apesar das agências contarem com nutricionistas, Michelli conta que as modelos são aconselhadas a não fazer exercícios para continuarem magras. Para Michelli, o mercado tem sua parcela de culpa, por contratar meninas muito jovens e muito magras para desfiles de biquíni: “Não tem por quê”.
Já outra questão séria do universo da moda, o assédio e exploração sexual de meninas, ficou de fora do livro. “Acho que tem mais assédio para os meninos. Para eles rola porque tem muitos homossexuais no meio”, conta. “Na moda não tem tanto isso de dormir com alguém para se dar bem”, acredita. Na entrevista, revelou um episódio com o controverso Terry Richardson, fotógrafo que é alvo de diversas acusações de assédio e até de estupro. Ele pedia pra eu dizer “fuck me”. Eu dizia “fuck you”. Ele insistiu, não falei e não peguei o trabalho. Não vou falar isso – não para o Terry Richardson“.
Indagada se acha que as modelos são “o elo mais frágil da cadeia da moda”, Michelli pondera. “Acho que está melhorando. Agora as meninas são instruídas a abrir empresa cedo, ter mais consciência das coisas. Em Nova York tem um sindicato das modelos, eles correm atrás dos direitos, analisam contratos. Aqui não tem isso. Se tivesse, eu ajudaria. Já falaram de levar um projeto pra Brasília”, revela. Mas a relação dela com a moda está se tornando mais rara. “Quero me distanciar”, revela.
Agora, planeja pouco – colher os frutos do livro, dar palestras e escrever seu livro de ficção entre um trabalho de modelo e outro. E brinca: “A moda me deve muito. Já fiz minha contribuição. É uma piada, claro. Tenho um respeito enorme pelos profissionais com quem trabalhei”.
Preciso Rodar o Mundo – Aventuras Surreais de uma Modelo Real
Autor: Michelli Provensi
Editora: Livros de Safra
Selo: Da Boa Prosa
Preço: R$ 39,90