Quem tem medo de Rita Lee e seus 1001 disfarces? A grande roqueira e uma das mais importantes artistas do Brasil usou da teatralidade inata para dirigir um elenco de personagens deliciosamente fantasiosos, formulados pela autodramaturgia de uma cabeça intergaláticamente visionária. Nessa reportagem especialinteiramente dedicada ao legado estético da cantora, que perpassa sonoridades e formas, vasculhamos a riqueza visual desses 50 anos de carreira da artista que conseguiu, como nenhuma outra, dar vazão a miscelânea de fragmentos do inconsciente coletivo e encarnar todas as mulheres do mundo.

Pois Rita Lee Jones (67), que não é nem um pouco chegada a badalações ou entrevistas, quebrou o silêncio e falou com exclusividade para o Virgula Lifestyle. Contou quais eram as inspirações centrais para criar seus figurinos, os quais ela chama carinhosamente de fantasias. E qual seria a peça que a cantora elege como a xodó dentre todas as que usou na carreira? Hummm… Tem Leila Diniz na jogada! Acho que você devia dar logo o play no vídeo abaixo pra saber:

O estilo Rita Lee

Rita, a contraventora

Ela veio pra confundir. Nunca precisou levantar bandeira, porque era o próprio estandarte da mudança. “Sempre foi sinônimo de contravenção, rebeldia, vanguarda. Seus figurinos também eram uma forma de se expressar” afirma a atriz Mel Lisboa que interpreta a cantora no musical “Rita Lee Mora ao Lado”.  A opinião é compartilhada pela escritora Fernanda Young que relembra o icônico macacão de estrelas como um das peças mais marcantes usadas pela artista em 1978. “Ela teve a sagacidade de corromper tudo e ridicularizar as obviedades. Rita jamais seria indecente, pois a sua iconoclastia não cede ao ridículo”, elucubra Fernanda.

No final dos anos 60, Rita surpreende o Brasil ao aparecer vestida de noiva numa clássica apresentação dos Mutantes. O uso da peça escandalizou até a mãe da cantora, Dona Romilda, que assistia a filha pela TV e era quem costurava os seus figurinos. O cantor e apresentador Ronnie Von, um dos responsáveis por lançar a banda, relembra o momento e exalta a beleza da então moça loirinha do rosto salpicado de sardas made in da Vila Mariana:

“Ver a Ritinha de noiva no palco era perfeito e incrível. Eu pensava: `Ela é uma defensora da mesma tribo que eu`. A conheço desde os seus 16/17 anos e foi uma das meninas mais bonitas que vi na vida! E ela nunca usou a beleza como arma ou ferramenta para se dar bem na vida. Essa contramão, em termos de looks e moda considerados ‘estranhos’, era para mostrar o outro lado dela. E, mesmo assim, ela não conseguia dissimular sua beleza física. Essa moça, naquela época, era o sonho dos sonhos… Mas eu era casado e não peguei. Ficamos muito amigos!”, diverte-se Ronnie.

E sabia que Rita Lee também teve seus dias de modelo? Ela participou de eventos de moda patrocinados pela Rhodia, uma espécie de avó da São Paulo Fashion Week, que rolavam na Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit). Rita se apresentou com espetáculos que misturavam música e desfiles. O primeiro deles, em 1970, foi o Nhô Look, musical que contava a história de uma caipirinha. Depois, veio o Build Up, no mesmo ano, com a trajetória de uma menina que se tornava uma modelo de sucesso. “I wanna be a star”, já previa ela nos versos de “Sucesso, aqui vou eu”.

Rita, a visionária

Com Rita não tem tédio. Ela sempre foi um parque de diversões de carne e osso movida pela vontade de experimentar e se metamorfosear ad infinitum. Em 1974, aconteceu uma de suas mais significativas mudanças visuais: a roqueira deixa para trás as madeixas angelicais e, com aplicações de henna, torna-se ruiva. Mal sabia que os cabelos cor de fogo virariam uma de suas marcas registradas. Nessa época, com o visual inspirado nos super-heróis, Rita ousou e muito ao sobrepor tangas por cima das calças que combinava com botas de plataforma altíssima.

Para o jornalista e estudioso do legado cultural da cantora, Guilherme Samora,  Miss Lee cunhou um espaço único na música. “Entre todos os compositores brasileiros, Rita, para mim, está no topo. Soma-se a isso a voz única e, como se não bastasse, um grande diferencial: a imagem. Desde que surgiu, na década de 60, ela representou um sopro de novidade e, aos olhos dos mais conservadores, um choque. Sempre usou figurinos e abusou da imagem para transmitir o que queria com muito bom humor. Tanto que chegou a se ‘fantasiar’ com o corpo e a roupa cobertos por talco na época dos festivais e da TV em branco e preto. O resultado? Ela parecia um borrão na tela”.

O humor, aliás, sempre foi um dos pilares da carreira de Rita, que veio pra essa galáxia dotada de uma capacidade esplêndida de fazer deboche das boboquices humanas. Em 1976, a cantora foi presa por posse de drogas em plena ditadura militar. Segundo ela, as provas foram plantadas por policiais, já que estava grávida e, portanto, não consumindo tóxicos. Pois assim que foi solta, Rita fez um show em São Paulo e não deixou barato: vestiu-se como presidiária e cantou para um público de 18 mil pessoas. Ao fim, fez questão de desfilar na frente de policiais com o traje, já que estava em prisão domiciliar e era vigiada a cada apresentação.

Rita brinca com personagens e se vestiu de gatinha, miss, vampira, noiva, Nossa Senhora Aparecida e Peter Pan sem culpa nenhuma. E sempre foi pioneira: no comecinho dos anos 80, quando toda a execução de uma turnê era bem mais difícil, ela percorreu o Brasil em um show com palco giratório, cujo cenário e cujo figurino iam mudando de acordo com a música. Tudo isso ajudou a compor a figura visionária da maior pop/rockstar brasileira e a mulher que mais vendeu discos no país”, explica Guilherme Samora.

Rita Lee: Retrospectiva

Flerte fatal com a moda

Para o estilista Dudu Bertholini, a cantora teve a audácia de mostrar que a moda e a roupa podem ser um veículo de expressão, liberdade e identidade numa época nebulosa do país. “Rita faz parte de um time de pessoas que abriu muitos caminhos para cultura brasileira e para uma expressão individual, para sermos quem a gente tinha vontade de ser. Ela foi um dos ícones visuais que marcaram a transição do país conservador”.

Pois Rita Lee não enchia somente os olhos dos tupiniquins. Seu sucesso e estilo visual conquistaram os dois hemisférios do globo. Ela encantou a estilista Barbara Hulanicki, da badalada marca londrina Biba. A designer, que criou modelitos para Brigitte Bardot e, também, tinha como clientes ninguém menos que David Bowie, Mick Jagger e Marianne Faithful, fez o figurino da emblemática turnê “Babilônia” (1978).  Ou alguém conseguiu esquecer do macacão branco com cristais e da farta capa de tule pink que Rita usou para dar vida a participante de concursos de beleza que ironizava o glamour na canção“Miss Brasil 2000″? Certamente, não.

Segundo Rita Cadillac, cada aparição que a roqueira iria fazer no Programa do Chacrinha era ansiosamente aguardada por todos. “Sempre rolava aquela curiosidade de como ela iria aparecer. Todo mundo queria saber! Afinal, ela é diferente de tudo. Nunca teve medo de ousar e a ousadia sempre combinou com ela”, relembra a eterna chacrete.

Trabalhada na inventividade, na turnê “87/88″, Rita sobrevoou o palco tocando uma flauta e vestida com uma ampla saia de tule e sutiã em formato de cone. Isso, bem antes da turnê “Blond Ambition” (1990), quando Madonna popularizou o acessório. No festival “Hollywood Rock” de 1995, a roqueira rezou uma ‘Ave Maria’ vestida de Nossa Senhora Aparecida. Nem precisa dizer que o fato chocou muita gente, precisa?

Mas um dos figurinos preferidos de Rita também era a própria pele. Em 1982, em uma das capas mais icônicas do pop/rock brasileiro, Rita mais uma vez dispensa a roupa e aparece junto do marido e parceiro musical, Roberto de Carvalho, envoltos num mar de celofane. Em 2011, aos 63 anos, a roqueira deu uma entrevista a apresentadora Hebe Camargo usando somente biquíni e chapéu. Em 2015, a grande mudança: Rita declara que cansou de ser ruiva e assume os frios brancos. Mas a franja? Essa continua firme e forte!

Túnel do tempo dos principais figurinos da maior roqueira do Brasil

No início do Mutantes, Rita apareceu na TV em 1967 com um coração pintado do lado esquerdo do rosto. Desenho que foi reproduzido loucamente pelos fãs da época que iam torcer pelo grupo nos famosos festivais de música brasileira do período.
Créditos: Reprodução

Síntese de todas as antíteses

Uma das precursoras do conceito de “mulher real”, ideia que hoje em dia é fortemente adotada pela publicidade, Rita Lee é um exemplo que sempre tentou quebrar os exemplos. É o que aponta a doutora em sociologia da imagem da Universidade de São Paulo (USP), Isabelle Anchieta. “Ela trilhou um caminho autônomo pra dizer que cada mulher é única e não precisa imitar ninguém. Rita rompeu com o padrão de repetição visual e de comportamento que acontecia, por exemplo, com as musas do starsystem de Hollywood nos anos 50. Mostrou que podemos nos assumir como somos na tentativa encontrar uma trajetória própria e não um modelo ideal”.

É inegável também o poder de representatividade do desejo feminino, liberação sexual e de gênero que a cantora galgou ao longo da carreira ao implodir uma série de estereótipos chatos e limitadores, já que até os anos 60 as formas visuais da mulher eram determinadas por rígidas regras sociais.

“Aí a Rita me aparece com uma imagem andrógina e libertadora, que não pretendia demarcar o lugar de mulher ou de homem, mas lançar luz para a individuação de uma personalidade que tenta marcar o seu lugar no mundo. Ela sempre fez uma leitura particular desse universo em constante transformação a partir da estética, do seu modo de viver e das letras das músicas e é justamente isso que a torna tão interessante e a faz ocupar um lugar particular na cultura brasileira”, enfatiza a pesquisadora.

E no machista mundo do rock, Rita soube apresentar e legitimar as próprias verdades nas canções e nos visuais. “Ela é uma hippie-punk no Brasil que teve a maestria de dar um fuck off pra sociedade e, mesmo assim, fez sucesso”, destaca o cantor Supla. “O que ela canta faz muito sentido para as pessoas e esse é o maior barato! Espero que ela volte daqui a pouco pros palcos!”. A gente também espera o mesmo, Supla!

Famosos falam sobre o estilo Rita Lee

“Nós tinhamos uma visão muito parecida, eu e Rita. A mesma paixão pelos Beatles... Era tudo muito diferente: a gente gostava de roupas militares, algo meio de fantasia... Estávamos na mesma sintonia. E, por isso mesmo, eu achava o guarda-roupa dela adorável. Ver a Ritinha de noiva no palco, por exemplo, era perfeito e incrível. Eu pensava assim: "Ela é uma defensora da mesma tribo que eu". Eu conheço Ritinha desde que ela tinha 16 para 17 anos e foi uma das meninas mais bonitas que vi na vida! Deslumbrantemente bonita. E ela nunca usou a beleza como arma ou como ferramente para melhor se dar na vida. Essa contramão, em termos de looks e moda considerados "estranhos", era para mostrar o outro lado dela. E mesmo assim, ela não conseguia dissimular sua beleza física. Essa moça, naquela época, era o sonho dos sonhos... Mas eu era casado e não peguei. Ficamos muito amigos! Foi uma época rica de nossas vidas: como meu pai era diplomata e viajava, ele trazia os discos dos Beatles meses antes de sair daqui. Numa dessas ocasiões, chamei Ritinha para ouvir o Revolver (1966) - mono e da gravadora Parlophone - e, na minha opinião, o melhor disco dos Beatles. Nessa época, quando comecei a carreira, Os Mutantes foi o grupo do qual mais gostei. Os diretores da Record (onde Ronnie tinha o programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von, na década de 60), diziam que eu era louco de colocar aquela banda que era o contrário de tudo que se fazia. Eu fiz questão. E imagina a cena: a Rita tocando, numa (guitarra) Telecaster azul calcinha a Marcha Turca de Mozart no meu programa, ao lado dos meninos (Arnaldo e Sérgio). Tenho um orgulho enorme de tudo o que fizemos juntos”.
Créditos: Divulgação/Reprodução

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