Você já deve ter visto estampada nas redes sociais a obsessão dos fãs de Lady Gaga pela cantora. Mas talvez ainda não conheça Keila Gaga. Por que ela é diferente dos outros? A coisa aqui é muito mais do que montação, baby! Aposto que nenhum dos little monsters divide o tempo admirando a popstar e tendo que acordar às 5h30 pra dirigir um trator na roça ou colher pimentão e abobrinha. A história de Keila Fernandes, 28 anos, é de superação de preconceitos e discriminação sobre a condição feminina, que assombrou por quatro gerações a família dela, a mesma das moças que formaram a Comunidade de Noiva do Cordeiro, distrito a 100 quilômetros de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Aliás, superação é regra na comunidade de 300 habitantes comandada por mulheres. Elas venceram a segregação da família causada por divergências ideológicas com a igreja católica no século passado e reescreveram as possibilidades da vida ao transformarem exclusão em sucesso. Caçula de 15 filhos, Keila, que estudou até a 5ª série, descobriu na figura de Lady Gaga a chance dela e das outras mulheres de Noiva do Cordeiro se expressarem com liberdade.
“Isso parecia estar no meu destino. Descobri a Lady Gaga pelo YouTube em 2011, ano que a internet chegou na comunidade. Uma das coisas que me identifiquei diretamente com ela desde o início foi o discurso que ela prega sobre liberdade, das pessoas aceitarem umas as outras exatamente como são sem preconceito. Isso combinou com a historia da minha vida e da minha comunidade, porque já sofremos muito por sermos julgados por gente que se quer nos conhecia. As pessoas não são só aparência. São coração também”, explica Keila.
Quem vê Keila e as outras moças de Noiva do Cordeiro com a enxada nas mãos sob um forte sol não é capaz de imaginar a transformação que ocorre quando elas sobem no palco como dançarinas superpoderosas da nossa Lady Gaga cover. “Não sou a líder de nada. Nós pensamos em tudo junto. Nos reunimos pra trocar idéia do que vamos fazer e pra ver os vídeos e aprender as coreografias. A gente ensaia muito as danças, até no meio da lavoura a gente já treinou”, diverte-se.
Reconhecimento
Keila e sua trupe começaram fazendo shows para a própria comunidade.”O pessoal aqui dá muita força para o nosso projeto. Eles amam o nosso trabalho e fazem até vaquinha pra ajudar a gente a fazer novos figurinos pros shows”. O reconhecimento além das cercanias de Noiva do Cordeiro veio no ano passado com uma equipe de jornalistas ingleses que visitou o distrito e revelou Keila Gaga para o mundo. Daí, ela apareceu em vários programas de TV brasileiros, inclusive no Adotada, da MTV, começou a fazer shows pelo país e foi uma das atrações da última edição do São Paulo Fashion Week.
Keila diz ainda que sua principal motivação é a mãe, dona Delina, de 72 anos. “Ela é uma mulher incrível, que faz o bem sem querer nada em troca. Já sofreu muito na vida, com pobreza e preconceito e, mesmo assim, nunca deixou de acreditar no ser humano. Então, o meu maior prazer é ver os olhinhos dela brilhando quando estou no palco”, emociona-se.
Apesar do sucesso e do reconhecimento terem chegado, Keila revela que não sairia de Noiva do Cordeiro por nada. “Aqui é meu lugar, minha família e minha vida estão aqui. Estou gostando de viajar, mas não troco o sossego que tenho aqui por nada. Acho que nem saberia me virar sozinha em outro lugar”.
Noiva do Cordeiro
No fim do século 19, Maria Senhorinha de Lima, natural de Roças Novas, povoado de Belo Vale, se casou com o francês Arthur Pierre. Três meses depois, infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Augusto Fernandes de Araújo, onde hoje está a comunidade de Noiva do Cordeiro. A atitude foi condenada e os dois, rotulados de “pecadores”, tiveram amaldiçoada sua descendência por gerações. Nos anos seguintes, em toda a redondeza, a atitude corajosa de Senhorinha ganhou mais olhares de reprovação. Mas o casal tocou a vida, construiu casa e criou 12 filhos.
A situação se complicou novamente em meados do século passado, quando Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de dona Delina, fundou a seita protestante Noiva do Cordeiro e converteu toda a família, agravando as relações com parentes vizinhos e católicos. Novo período de polêmica e perseguições. Em 1990, um rompimento completo abalou a comunidade, permanecendo no local, que tem 46 moradias e onde todos são parentes, apenas os que defendiam uma sociedade temente a Deus, mas sem qualquer religião.