(Por Thyago Gadelha) Neste final de semana, a 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo promoveu um momento histórico: a exibição em película de 35 mm do clássico “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, que narra a saga da família italiana Corleone em Nova York.

No mesmo período, agendou a projeção do aclamado “Gomorra”, filme de Matteo Garrone, uma visão contemporânea da famosa máfia de Nápoles, conhecida como Camorra. O longa arrebatou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e foi escolhido pelo seu país de origem para disputar uma indicação no Oscar 2009 de melhor filme estrangeiro.

Coincidência ou não, o momento deu a oportunidade aos espectadores de refletirem sobre os dois filmes, que abordam o mesmo tema, o sujo e sangrento mundo da máfia, mas de formas e em tempos totalmente distintos.

O foco

As diferenças entre eles começam pelo tratamento que cada um recebe do diretor. Francis Ford Coppola faz da simpática família Corleone o principal elemento do seu filme. Em vários momentos, chegamos a torcer por eles e nos sensibilizar com suas desventuras.

Já Matteo Garrone mostra a complexa relação dos criminosos ligados à tradicional máfia Camorra com os moradores das províncias de Nápoles e Caserta, sem privilegiar um núcleo ou personagem. A obra se abstém de qualquer maniqueísmo ou julgamento – talvez o grande trunfo do filme e razão do seu enorme sucesso mundo afora.

Realidades distintas

Enquanto “O Poderoso Chefão” tem ares de superprodução – elenco grandioso e personagens com cabelos alinhados em ternos caríssimos –, o filme de Garrone faz um retrato seco, sem glamour, e em tom documental da realidade suja das províncias da região de Campania, dominadas pela Camorra.

O elenco é formado por figuras que vivem aquele dia-a-dia, o que acaba dando uma assustadora realidade às cenas, que em muitos momentos lembra o brasileiro “Cidade de Deus”, tamanha a frieza e crueldade dos atos.

No período em que se passa o filme de Coppola, as principais atividades da máfia estavam ligadas aos jogos e às bebidas. Na realidade atual, retratada em “Gomorra’, Matteo mostra o mundo sujo do tráfico de drogas e armas até o escoamento de lixo industrial.

A ética no crime

Até a ética dentro dos grupos (famílias ou “gangues”) de cada filme é visivelmente díspar. A máfia de Corleone, à moda antiga, tinha seu próprio código de ética (entre família e até mesmo com os inimigos), inspirado na hierarquia da Igreja Católica – que é historicamente ligada às facções – basta lembrar do “Don”, que precede o nome de Vito Corleone. Drogas, por exemplo, eram uma objeção para o chefe.

Em Gomorra, ainda vemos estas “famílias do crime”, mas toda e qualquer moral entre os seus membros foi extinta com o tempo. Essa realidade é bem visível no momento em que percebemos a naturalidade com que eles encaram todo o esquema de assassinatos, afinal os jovens convivem desde cedo com roubos e violência e criam uma verdadeira adoração pelas armas. Eles encaram como um processo natural de passagem para a vida adulta.

Em certo momento cômico do filme, dois rapazes envolvidos na podridão dos crimes se auto-intitulam Corleone e Tony Montana, mafioso clássico de “Scarface”. Essas são suas referências na juventude.

Trilha sonora

A diferença entre os dois reside ainda na ambientação sonora. Enquanto no filme de Garrone a trilha é diegética, ou seja, toca quando o personagem está escutando rádio ou dançando numa festa, no longa de Coppola a trilha é incidental, grandiosa e toca fora do contexto do filme.

Em “Gomorra” pode-se ouvir Massive Attack, Enigma e canções italianas ambientadas dentro da ação. Em “O Poderoso Chefão”, a presença forte é do compositor Nino Rota – quem é que ouve o tema e não se lembra na mesma hora de Don Corleone e companhia?, mas há ainda versões de jazz napolitano misturadas às melodias sicilianas.

Quando ficção vira realidade

Diferentemente de “O Poderoso Chefão”, o filme de Matteo Garrone escalou um elenco de desconhecidos – muitos deles escolhidos entre o povo que convive com a realidade da Camorra.

A opção do cineasta resultou na prisão de três atores, acusados de fazer parte do "esquema". Um deles, Bernardino Terracciano, que interpretou o "tio Bernardino" no filme, foi preso sob suspeita de extorquir dinheiro aos comerciantes em troca de proteção.

Mas a mais séria conseqüência de revelar o cotidiano da Camorra foi a ameaça de morte que sofreu o autor do livro best-seller no qual o filme foi baseado, Roberto Saviano. Integrantes da Máfia querem vê-lo morto até o Natal.

O veredito

Nem é preciso dizer o quanto “O Poderoso Chefão” é grandioso. Inclusive na Mostra foram distribuídas cédulas de votação para o filme. Mas a pergunta é: “como julgar um filme clássico, que ficou em primeiro lugar numa lista de melhores filmes de todos os tempos, eleito pela consagrada revista ‘Empire’?”. Impossível.

De qualquer forma, toda essa pompa não desmerece a película de Garrone, que traça um cruel e convincente retrato da fase atual da máfia italiana. Só perde um pouco por não aprofundar alguns personagens essenciais da trama. Vale a pena por todo o rebuliço que tem causado e para entender um pouco mais desta máfia que influencia em tantos negócios no mundo.

Gomorra

Sábado (25), às 16h, no Espaço Unibanco Pompéia 1

Domingo (26), às 15h40, no Espaço Unibanco Pompéia 1


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Mostra de SP: A máfia italiana em dois tempos