“O dólar está pouco a pouco substituindo o líder supremo como o novo deus dos norte-coreanos”, assegura em entrevista à Agência Efe Jang Jin-sung, que foi poeta do regime e cuja autobiografia acaba de ser publicada em inglês.
Jang, que desde seu exílio em Seul decifra alguns dos segredos do poder no país mais hermético do mundo, sustenta que o atual dirigente Kim Jong-un “terá armas nucleares, mas é incapaz de controlar o preço de um ovo no mercado negro”, e que precisamente será a economia submersa que acabará com a ditadura.
Em 1999, aos 28 anos, Jang emocionou o então líder, Kim Jong-il, com uma poesia de elogio, o que lhe garantiu um trabalho como poeta do regime e o transformou em um dos “admitidos” do “querido líder”, a mais alta honra e o mais elevado privilégio a que aspiraria qualquer norte-coreano.
No entanto, as contradições do regime e a informação do exterior à qual tinha acesso para compor suas poesias mudaram sua visão até levá-lo a desertar em 2004.
O regime impõe “uma ditadura psicológica muito maior que a física” e por isso o povo não se rebela, explica o homem miúdo com aspecto de intelectual que fica vermelho quando escuta “best seller” em referência a seu novo livro, intitulado “Querido líder”.
“Desde que você nasce, só aprende uma verdade: que o líder é incrível, extraordinário, amável, é algo tão espiritual que questionar isso parece moralmente incorreto. Está em teu sangue, é como uma religião na qual o líder é Deus”, comenta.
O escritor sustenta, no entanto, que “o dólar está pouco a pouco substituindo ao líder supremo como o novo deus dos norte-coreanos” devido à proliferação sem fim dos mercados clandestinos no país.
Estes substituíram na prática o sistema de distribuição socialista do Estado, que em teoria garante as provisões básicas ao povo, mas permanece colapsado desde a “árdua marcha” dos anos 90 quando morreram de fome cerca de 2 milhões de norte-coreanos.
“Antes, apesar da fome, os cidadãos consideravam imoral recorrer ao mercado negro, mas hoje estão tão desesperados que ninguém se propõe não fazer isso”, relata Jang, que há anos investiga o que acontece em seu país e publica exclusivas em seu site “News Focus International”.
O mercado negro, que leva da China à Coreia do Norte não apenas comida e produtos básicos, mas também livros, séries, documentários e filmes em CD, USB e DVD, representa segundo o entrevistado uma “grande ameaça à sobrevivência” do anacrônico regime da dinastia Kim.
“O maior medo do governo é que entrem informações do exterior, porque dá evidências concretas ao povo que o líder não é perfeito. Só os fatos documentados podem desmontar a mentira” do aparelho de propaganda do sistema, expõe.
Sobre Kim Jong-un, que chegou ao poder após a morte de seu pai em dezembro de 2011, o escritor acredita que a imagem divina do líder construída pelo aparelho de propaganda não repercutiu tanto entre os norte-coreanos devido a sua juventude e inexperiência.
“Ao contrário de seus antecessores, definidos como pais protetores que esperam seus súditos de braços abertos, a propaganda sobre Kim Jong-un teve que adaptar a ideia de Deus para mostrar um dirigente que se aproxima da cidade”, analisa.
Jang Jin-sung sempre caminha acompanhado de guarda-costas por ser um dos desertores norte-coreanos mais importantes na Coreia do Sul, onde, após dez anos de exílio, continua lembrando a cada dia seus pais com remorsos por ter foragido sem poder se despedir deles.
O outrora privilegiado nas elites de Pyongyang cruzou no inverno de 2004 a fronteira com a China em um périplo de 35 dias no qual a fome e o frio quase acabam com sua vida, “embora o pior fosse o medo de ser aprisionados por agentes e enviados outra vez ao Norte” onde seria torturado e executado por traição, assegura.
“Enquanto não pisei o chão de Seul, não senti que finalmente estava a salvo e que não iam me matar”, lembra o refugiado que em seus dez anos de exílio na Coreia do Sul forneceu aos serviços de inteligência e ao público em geral importantes dados sobre o funcionamento do obscuro Estado.
Após escutar seus elogios à liberdade e a prosperidade próprias da Coreia do Sul, foi impossível não perguntar: “Sr. Jang, há algo melhor no Norte que no Sul?”.
“Sim, a cerveja”, afirma. “A cerveja norte-coreana é muito melhor”.