Desde a “primavera feminista” em 2015, intensificou-se a discussão dentro do movimento e em redes sociais sobre a presença de homens nas manifestações e no protagonismo de marchas importantes, dividindo o tema entre quem queira discutir a posição que os caras devem ocupar dentro da luta e quem ache que o sexo masculino não deva ter espaço dentro desse campo.
O tema voltou a ser pauta em diversos sites e blogs colaborativos após o dia 21 de outubro desse ano, quando um rapaz carregando um cartaz pró-feminismo em uma manifestação contra a violência sexual sofrida por Lucía Pérez, argentina de 16 anos morta após ser drogada e estuprada em Mar del Plata no dia 8 do mesmo mês, foi acusado pela ex-mulher de tê-la agredido diversas vezes.
“Sou a mãe da filha que nasceu da relação com este indivíduo, que diz defender nossos direitos, que por anos destruiu a vida da minha filha e a minha, pelo que levo cicatrizes no meu corpo e nas minhas lembranças”, diz ela, que acusou o cara de não pagar pensão e maltratar a filha.
No cartaz, o manifestante carregava os dizeres: “Estou seminu, rodeado pelo sexo oposto… E me sinto protegido, não intimidado. Quero os mesmos direitos para elas”.
Para colaborar com a discussão, o Virgula conversou com Carol Patrocínio, jornalista e blogueira feminista, criadora da comunidade Comum.vc, feito somente por e para mulheres. Sobre o tema, Carol defende a presença do homem no feminismo: “não dá pra mudar só 50% do mundo”, justifica, mas pondera: “existe hoje um imenso número de homens que descobriu que o feminismo é a melhor maneira de atrair mulher”. Leia a entrevista abaixo.
Homens pró-feminismo: bom ou ruim?
Acho que nós temos três pontos para se pensar nessa história. O primeiro é: existe hoje um imenso número de homens que descobriu que o feminismo é a melhor maneira de atrair mulher. Então, o cara vai lá e põe no perfil do Tinder dele que ele é feminista. Aí, lá no primeiro encontro, ele fala que lê Djamila Ribeiro. Isso já aconteceu, inclusive. Quem é esse cara? É o cara que entendeu que, quando você fala que é feminista, é mais fácil de se relacionar com mulheres, mas nem por isso ele é feminista de verdade, e uma vez que ele usa o feminismo a gente já sabe que ele não é feminista de verdade, não existe nenhum resquício de feminista nesse cara, ele está usando aquilo como mais uma maneira de dominação.
O segundo ponto é: devem os homens participar do feminismo? Eu acredito que sim. Porque a gente não pode mudar só 50% do mundo. A gente muda metade e tem outra metade ali seguindo outras propostas, e aí não faz sentido porque a mudança não acontece de verdade. Porém, a participação desse homem tem que ser ele se colocar no lugar da mulher. E que lugar é esse? O da invisibilidade. A mulher na sociedade, em relação ao poder, a tomar decisões, ela é invisível. Mulheres praticamente não existem. Então, a primeira coisa que o homem precisa fazer, se ele quer realmente entender, ajudar e se colocar nessas situações, é se colocar nesse papel. Que é o papel de ouvir, de não ficar batendo boca, porque a gente vê muito isso. A mulher fala e o homem diz ‘não, você não devia fazer assim’. O feminismo diz: os homens têm poder que as mulheres não têm. Os homens têm privilégios, que são privações para as mulheres. Quando você entende isso, você se coloca no lugar de abrir mão dessas coisas. Tem coisas que mesmo o homem mais bem intencionado não consegue abrir mão. Assim como pessoas brancas não conseguem abrir mão de alguns privilégios em relação aos negros. E não tem como, porque é um privilégio que vem de fora para dentro. Então eu, enquanto mulher branca, nunca vou sentir racismo, porque sou branca. Então não tem como controlar o mundo fora disso. Porém, há maneiras que eu consigo discutir racismo com outras mulheres brancas, mas nunca com mulheres negras. Porque mulheres negras sabem o que estão dizendo. E esse é o papel do homem. Se colocar no papel de ouvinte e no papel de ser o megafone para o que as mulheres estão falando. A gente fala, fala, fala, e metade da população acha que é ‘mimimi’. Quando o homem fala, uns 30% dessas pessoas prestam atenção. Então é um trabalho incrível, desde que não seja sobre você. Aí você pode se chamar do que quiser, pra mim pelo menos não importa. Quer se chamar de feminista, de feministo, de pró-feminismo, olha… tanto faz. Desde que seu trabalho seja 100%, porque é isso que importa, né? É abrir portas, transformar relações e tudo mais.
E aí tem o terceiro ponto nessa história toda que é: quando uma mulher diz uma coisa, essa coisa recebe ‘x’ de atenção. Quando o homem diz a mesma coisa, ela recebe ‘x’ vezes mil de atenção. Mas ah, só homem dá essa atenção ou mulheres também? E são só mulheres que não têm conhecimento sobre o tema ou mulheres feministas também dão? E aí a gente entra em uma outra discussão que é: independente de quão desconstruídas nós achamos que estamos, nós temos, ainda, dentro de nós, uma valorização muito grande da opinião masculina. E não é uma valorização no sentido romântico, mas sim de querer estar próxima do “vencedor”. Quando o “vencedor” conta a mesma história que eu, a minha história tem mais valor. Aí a gente comete esse erro de colocar o homem no pedestal, sendo que a gente poderia, por exemplo, compartilhar a foto de uma mulher na manifestação, poderia compartilhar o texto de uma mulher. Mas, muitas vezes, preferimos compartilhar o texto do homem e criticar esse texto, em vez da gente começar uma transformação real e dar voz pra quem a gente quer que tenha voz. Se estamos amplificando uma mensagem, por que não gastamos nosso tempo amplificando uma mensagem positiva em vez de amplificar o que a gente não gosta? Isso não é um problema de caráter, nada do tipo. É só mais uma coisa para ficarmos atentas e lembrarmos que a desconstrução é todo dia, a cada minuto, e se baixarmos a guarda, nós agimos como nossa mãe agiria, nossa avó, o cidadão médio, não pessoas politizadas.
“Se não dermos o empurrão, os caras não vão”
As coisas funcionam da maneira que elas funcionam, sabe? Parece meio sem sentido dizer isso, mas não tem como a gente virar para os homens e dizer: ‘nós queremos sua participação. Porém, não queremos vocês nas ruas, não queremos vocês falando nas redes sociais, queremos que você façam essa transformação entre os amigos de vocês e nos lugares que ninguém vê’. Tudo isso é tão difícil, porque vivemos em um momento social em que contabilizamos nossa felicidade por likes. Nós queremos ser vistos, queremos ser aplaudidos, queremos que as pessoas vejam que o caminho que escolhemos está certo. Tudo isso fala da sociedade que estamos inseridos, da maneira que lidamos com as coisas. E nós temos que olhar isso de uma maneira inteligente e usar para a transformação. Já que nós não vamos conseguir fazer os caras abrirem mão de serem aplaudidos porque são feministas ou pró-feministas, nós temos que pensar como vamos fazer pra esse cara falar a coisa certa, da maneira certa. Como podemos colaborar para isso, sabe? Não é obrigação do feminismo discutir masculinidade, nem nada. Mas a minha sensação, depois de tantos anos produzindo conteúdo relacionado ao feminismo ou empoderamento feminino é de que, se não dermos o empurrão, os caras não vão. E esse empurrão pode ser dado de mil maneiras, uma delas é guiando os caras, que muita gente é contra. Porém, nada disso faz com que todos os ambientes tenham que ser mistos. Há ambientes que precisam ser totalmente femininos, mas não é o caso, por exemplo, de manifestações públicas, porque nós precisamos de número, precisamos virar notícia. Se nós queremos que as pessoas falem sobre a bandeira que estamos levantando, precisamos chamar atenção. Porém, há certas discussões em certos ambientes que têm que ser 100% femininos. Ao mesmo tempo em que estou aqui falando pra você que os homens têm que estar nessa discussão, sou integrante da Comum, que é uma comunidade exclusiva de mulheres. Ali não tem homem em nenhum momento. E tá tudo bem, isso não faz com que eu seja totalmente contra ter homens no feminismo. Para algumas pessoas, pode parecer que não faz sentido. Pra mim, faz total sentido que existam momentos para cada coisa. Há momentos que o homem pode participar, há momentos que não.
Dá pra identificar quem tá se aproveitando de quem quer ajudar?
Olha, eu acho que não dá pra identificar com 100% de certeza. E eu te digo isso pela minha experiência em outros movimentos sociais, e também até pela religião. Eu fui criada em uma família religiosa. Muitos dos líderes religiosos são incríveis fora de casa. Dentro de casa, são pessoas opressoras, violentas de alguma de maneira. Em outros movimentos que já participei é a mesma coisa. Tem muita gente buscando algo de verdade, e muita gente que está ali porque é importante estar ali por algum motivo. Seja encontrar um relacionamento afetivo, seja por currículo, seja por redes sociais. Não tem como termos certeza e, ao mesmo tempo, eu não acho que o desenvolvimento das pautas femininas ou feministas sejam barrados apenas pelo homem, acho que eles são barrados por estruturas. E aí é bem complicado quando a gente começa a personificar as coisas, porque a gente sabe também que tinham muitas mulheres por [Donald] Trump, assim como sabemos que tinham imigrantes por Trump por mais que isso não faça o mínimo sentido na nossa cabeça. Mas isso tem uma explicação: a gente enxerga no outro o outro, a gente não vê como um espelho. Então, muitas dessas pessoas se enxergavam no Trump, não nos imigrantes. Mesma coisa com as mulheres. E é a mesma coisa, de uma forma bem banal, quando uma mulher chama a outra de vadia. Ela acha que a outra é vadia, não ela. Só que, a partir do momento que ela descumprir uma norma social, ela passa a ser vadia tanto quanto a outra. Só que chegar nesse entendimento da coisa demora. E dói. Porque você não quer ser só mais uma mulher, só mais um imigrante. Você se espelha em quem tá no alto. Tem muito a ver com marketing, muito a ver com a sociedade capitalista que a gente vive. As pessoas contam tanto a mesma mentira pra você que ela passa a ser verdade. Então, ao mesmo tempo que temos homens impedindo essa caminhada, também temos mulheres, temos pessoas negras impedindo a caminhada do movimento negro, como é o Fernando Holiday, porque dói menos quando você está do lado de quem te oprime, porque você se sente protegido. É claro que, na hora que essas pessoas precisarem te derrubar, elas não vão pensar duas vezes. Mas, ainda assim, você se sente bem por algum tempo. Então não tem como termos certeza de quem está do nosso lado ou não, o que temos que fazer é utilizar as pessoas e o que elas podem oferecer. E confiar.
É possível criar um conceito unificado entre as mulheres sobre isso?
Acho que é impossível esperarmos que uma classe inteira tenha uma mesma relação com as coisas. Assim como as periferias não têm uma só voz, o feminismo também nunca vai ter. Eu acredito que o desafio na verdade é respeitar a opinião do outro, as crenças, os caminhos. Porque há diversos caminhos para se levar ao mesmo lugar. Nós estamos almejando a mesma coisa, e os caminhos variam entre uma mulher e outra. Porém, o importante é continuarmos entendendo qual é o lugar em que queremos chegar. Porque, muitas vezes, nós nos perdemos nesse caminho. Aquele lugar parece tão longe, tão distante, tão absurdo pensar que isso um dia vai dar certo, que nós vamos desistindo. E no meio do caminho encontramos o ‘ah, já que vai demorar tanto pra chegar onde queremos, vamos só retaliar os caras? Vamos só retaliar as minas brancas? Ficar aqui arrumando picuinha?’ Porque nós vemos hoje, mesmo na militância, muita gente que está feliz só arrumando treta, e aí não saímos do lugar. Mas isso dá audiência e aí a gente volta praquele papo de que medimos nossa felicidade por likes. O que eu acho é que nunca chegaremos a um consenso, mesmo porque as mulheres têm experiências variadas com homens. Há mulheres traumatizadas, que foram agredidas pelo pai, pelos irmãos, namorados, até não conseguir mais se relacionar com nenhum homem. Acho que o maior desafio é conseguirmos ter uma inserção verdadeira na política e nas tomadas de decisões políticas, para que consigamos mexer nas estruturas das coisas. Tudo que vem do entorno disso, ou todas as questões que precisam ser discutidas secundariamente, elas são exatamente isso, secundárias. O objetivo de todas nós, independente de vertentes, da maneira que nos relacionamos com homens, ou qualquer que seja a coisa é: precisamos nos inserir na política e, sem isso, não faz sentido discutir se vai ter homem ou não vai ter homem porque se torna uma discussão muito rasa.