Ninguém tem tanto tempo livre. Frescura. Médico da cabeça? Precisa se tratar. Tem dinheiro? Tem saco?
A sugestão de pauta parecia o anúncio luminoso de um consultório de milagres, com 93% de eficácia e mais de 5 mil casos atendidos. Curiosa pela promessa de cura de qualquer coisa – de problemas de autoestima a ejaculação precoce – em até 5 sessões de terapia, topei o desafio jornalístico de uma temporada na Rede Clínica da Hipnose, idealizada pelo hipnoterapeuta Alessandro Baitello, na tola esperança de curar minhas próprias loucuras. Solução perfeita para quem, até então, adiava qualquer ida a um terapeuta com as desculpas da primeira linha desse texto.
Doutor e mestre em Hipnose pela Academia Internacional de Hipnose Clínica e Experimental, na Espanha, Alessandro é treinado para localizar a o foco de origem de um trauma, no inconsciente do paciente, e “ressignificá-lo” de outra maneira. Funciona como se ele contasse uma nova história ao cérebro, mais relevante e positiva do que aquela que originou o problema. Parece simples, mas há quem resista à técnica por puro ceticismo ou desconfiança. Poderia ser o meu caso, certo?
Durante esses encontros, com duração de aproximadamente 50 minutos, eu seria colocada em transe profundo para que meus demônios pudessem ser localizados e catequizados, por assim dizer. Será que eu me lembraria de alguma coisa? Começaria a falar em outros idiomas? Andaria semi-acordada pelo consultório como um zumbi inconsciente?
Tentei resumir um pouco dessa viagem que rolou dentro da minha cabeça no relato a seguir:
Questionário: o que eu odeio mais em mim mesma?
Não demorou muito para que o Alessandro me recebesse em sua sala de atendimento. Sonhei com a primeira etapa do tratamento alguns dias antes, como se o cérebro me alertasse para cair fora daquela cilada, aterrorizado pela perda momentânea do controle. No sonho, eu reconhecia o método logo de cara. “Você começou a me hipnotizar, certo?”, perguntava, enquanto derretia na poltrona que, agora, quase me engole no consultório. Acordei antes de saber se havia me liquefeito para sempre ou não.
Como quem lida com dados, prazos e métricas, Alessandro não se prolonga em conversas sobre amenidades, como qualquer terapeuta faria. Choveu hoje, hein? Para ele, aquilo é ciência, simplesmente, não bate-papo de divã.
A primeira sessão do tratamento de R$ 2.000 (os preços podem variar um pouco) consiste em uma “semi-terapia”, com duração de aproximadamente uma hora. Nesse meio tempo, Alessandro surgiu com 45 perguntas que, no começo, me pareceram banais, como aquelas dos testes de personalidade da internet.
Precisei explicar quais traços da minha personalidade e comportamento me traziam orgulho, além daqueles que traziam vergonha e arrependimento. Autoestima, insegurança, agressividade, preocupação em agradar os outros, subordinação… A lista era grande. Disse a ele que me achava bem resolvida, mas que tinha um pouco de dificuldade de dizer, de fato, quem era. “Um pouco perdida, talvez”, afirmei. Para mim, as respostas estavam soando repetitivas e vagas. A cada novo detalhe, notei que Alessandro rabiscava algo no papel.
“Como foi sua infância?”, perguntou ele, sem fazer cerimônia.
Puxei algumas lembranças empoeiradas do fundo da memória. Nunca pensei que vivera uma infância infeliz e clichê, marcada por traumas, dor e abandono, por exemplo. Tudo bem, até. A autoestima, porém, era algo à parte. A infância teve claros – e doloridos – exemplos de abuso emocional, mas até aí, bullying todo mundo sofre, né, Alessandro? Ele me explicou que, em maioria, sim. Algumas pessoas, porém, lidam de um jeito diferente e dão mais importância a esses episódios, ainda que inconscientemente.
Colocar essas coisas para fora é um pouco constrangedor, para falar a verdade. Você sente como se estivesse sendo invadido por um observador curioso, revelando fraquezas e vícios dos quais está longe de celebrar. Saí da consulta um pouco bagunçada com minhas próprias lembranças e história.
Primeira hipnose: caixinha de lenços
Rodrigo chegou no horário combinado, às 14h. Fui levada a uma sala pequena e sentei-me naquela poltrona da outra vez com mais conforto e tranquilidade. O especialista aproveitou a pontualidade do encontro para me explicar brevemente como funciona a hipnose, antes de tudo começar. A palavra-chave da nossa sessão foi “ressignificação”. Rodrigo me explicou que a nossa mente operava em estado de vigília naquele instante, ou seja, estamos alertas e conscientes do mundo que nos cerca o tempo todo, prestando atenção a ruídos e pensamentos constantemente, sem qualquer controle.
Nosso cérebro opera em equilíbrio com duas regiões fundamentais, a racional e a lúdica. É claro que, em alerta, quem controla nossos instintos, emoções e ações com mais facilidade é a razão.
O caminho da hipnose, portanto, é promover um estado intermediário entre a vigília e o transe profundo, quando estamos completamente apagados. Durante o relaxamento, o cérebro “desliga” o lado racional e deixa que o subconsciente seja guiado por, como diz o Rodrigo, “uma criança de quatro anos”. Em resumo, essa parte do cérebro não julga, critica ou questiona o que está acontecendo durante a hipnoterapia, apenas se deixa levar.
É nesse momento que podemos voltar a algum episódio específico e doloroso de nossa vida para trabalhar um novo significado. Parece uma história meio “inception”, como naquele filme com o Leonardo DiCaprio, eu sei. No fim, o objetivo é contar uma nova história ao subconsciente no momento do transe, compatível com a realidade, transformando o trauma em uma lembrança leve e positiva.
É como se alguém ensinasse a nossa mente, sempre tão severa, a olhar para o passado com mais carinho e gentileza. Foi essa impressão que eu tive, pelo menos. Sob uma luz verde um pouco fantasmagórica, Rodrigo me pediu para fechar os olhos e respirar com tranquilidade, sem pressa. Senti como se estivesse me preparando para meditar, prestando atenção a cada movimento do meu corpo. Num primeiro momento, não soube como reprimir os pensamentos negativos, certa de que tudo aquilo não funcionaria.
“Não vai rolar”, eu repetia para mim mesma.
Depois de contar a descida de uma escada de 100 degraus, me vi numa praia, cercada por pessoas que me são queridas. Rodrigo pediu que “caminhasse” sozinha pela orla e acessasse algumas lembranças mais antigas, sobre as quais eu não gostaria de falar. Lembrei de um dia, na casa dos vizinhos da minha avó, em que um grupo de amigos me chamava de gorda e outros apelidos pejorativos. Fingia que não estava escutando, sorrindo e segurando o choro. Mais tarde, eles me empurraram na piscina.
Contei essa história e lembrei-me do constrangimento do dia. Também caí em outra memória desconfortável, da época em que fazia natação, quando tinha por volta de 8 anos. Ficava sozinha na água, no fim da aula, porque não conseguia sair da piscina sem que algum adulto me puxasse do lado de fora. A professora sempre esquecia de mim. Nosso cérebro arquiva situações que, hoje, pareceriam tolas e sem importância. Na época, porém, elas machucaram e moldaram um comportamento, mesmo contra a minha vontade.
Nas duas lembranças, Rodrigo me contou outra história, como se tentasse aliviar a carga negativa armazenada no cérebro por tantos anos. Só percebi o efeito da hipnose, de verdade, quando notei o caminho quente de uma lágrima pelo pescoço. Não apaguei nem esqueci o que conversamos nesses 45 minutos de sessão. Rodrigo me ofereceu uma caixa de lenços e perguntou se eu havia chorado de tristeza ou algo do gênero.
“Não, pelo contrário”, assumi.
Segunda hipnose: o transe profundo
“Atenção, não somos médicos ou psicólogos. Somos profissionais do bem-estar”. Demorei os olhos sobre a frase que piscava na televisão da sala de espera às vésperas da minha segunda sessão de hipnose. Ainda me sentia a mesma, talvez um pouco menos neurótica e insegurança do que antes. Placebo? Afirmar que mudara por completo ali, uma semana depois da primeira consulta, seria charlatanismo demais. O ceticismo garantia que, até então, nada havia mudado.
Dessa vez, eu não precisaria vasculhar o arquivo das memórias negativas, muito menos compartilhá-las em voz alta. Essa parte me deixou bem mais aliviada. Duque, outro hipnoterapeuta da clínica, me explicou que alguns comportamentos, hábitos e pensamentos meus deveriam acabar ou se transformar, de uma vez por todas. “Você precisa dizer basta!”, ele exclamou com um sotaque espanhol arranhado, enquanto me pedia para fixar os olhos no alarme de incêndio da sala.
De olhos fechados, imaginei um curta-metragem sobre o meu futuro. Duque conversava comigo, mas sua voz estava cada vez mais distante. Tinha a impressão de estar afundando na água, me agarrando à sua voz para não perder o caminho de volta ou desperdiçar aquela sessão com pensamentos aleatórios sobre o o jantar, a academia, as pautas da semana… Volta, Giovanna. Duque me tranquilizava repetindo que aquele filme, na verdade, era coisa do passado. A pessoa que eu me enxergava daqui a alguns anos já existia; eu não precisava me sentir ansiosa ou pressionada porque tudo aquilo era real.
Tirei uma fotografia desse filme. Sorria, leve e despreocupada. Sabia que me bastava, sem comparações ou medos irracionais. Tudo isso em preto e branco, não sei explicar. O sotaque espanhol de Duque voltou ao meu radar quando ele começou a contagem de zero a 10, pedindo que eu abrisse meus olhos. Senti dificuldade para acordar. Ele me contou que, dessa vez, estive em um transe leve, inconsciente de nossa conversa. Na minha cabeça, estive em silêncio durante toda a sessão. Duque me falou o contrário.
Como em outras sessões, a despedida foi mecânica e breve. Depois de acender as luzes, nos despedimos com um aperto de mão formal e me surpreendi com uma tarde clara e dura que me deixou atordoada por alguns minutos, como se tivesse acabado de acordar de um cochilo pesado.
Terceira hipnose: caça ao tesouro
Algum tempo se passou desde a sessão em que conversei “apagada” com Duque. Carregava a certeza frustrante de ser a mesma pessoa. Quem me recebeu para a última etapa do tratamento foi Rodrigo, que iria reforçar o aprendizado dos últimos encontros. Novamente, não precisaria abrir nenhuma ferida ou enfrentar sombras sinistras do passado. Dessa vez, Rodrigo me mostrou um acessório que acompanharia meus níveis de estresse e emoção durante a hipnose. O Biofeedback ficaria encarregado de registrar minha atividade cerebral de acordo com os estímulos de Rodrigo no transe, revelando a origem de traumas e problemas emocionais, se eles ainda existissem. Um GPS do inconsciente, mais ou menos.
Rodrigo pediu que eu contasse um pouco sobre os exercícios propostos na sessão anterior. A hipnoterapia, dessa vez, encerraria o ciclo de mudanças desencadeado na primeira hipnose. Sentei-me na enorme cadeira de sempre, com o Biofeedback espetado no dedo anelar, e mergulhei mais uma vez na meditação sugerida pelo terapeuta. Cada parte do meu corpo foi sendo desligada, como se existissem interruptores da cabeça aos pés. Desci muitos degraus, como na primeira hipnose, e caminhei em uma praia ensolarada em busca de um ponto específico na areia. Rodrigo me contou que ali existia um baú que precisava ser descoberto.
Desenterrei o tesouro e encontrei uma série de recordações lá dentro, como um arquivo pessoal há muito esquecido no galpão empoeirado do inconsciente. A ideia era arranjar espaço naquele baú para tudo o que, de alguma maneira, precisava ir embora da minha vida. Parece surreal, mas na hipnose nós realmente conseguimos entrar nesse universo elástico onde as leis da razão parecem estar do avesso. Por isso, fui capaz de trancar na arca sentimentos e lembranças que me traziam dor ou sofrimento – sim, como se fosse fácil desse jeito.
Depois de me livrar de tanto peso, coloquei o baú na água e deixei que a maré fizesse o resto do trabalho. Rodrigo repetia que ali, encarando o baú que quase sumia de vista, eu finalmente conseguia me sentir em paz. Das profundezas do transe, ouvi sua orientação final e encostei a língua no céu da boca. Pareceu estranho na hora, mas não questionei e só segui a viagem. Quando voltei, Rodrigo me explicou que aquilo era uma “ancoragem”. Em momentos de tensão, tristeza ou insegurança, precisava me lembrar de repetir a façanha da língua no céu da boca e conseguiria recuperar a emoção pacífica da hipnose, quando meus traumas naufragaram.
Fui embora relaxada e feliz depois de tantas idas à praia. Curada? Difícil dizer.
Ao fim da jornada de quase três meses, posso afirmar que “cura” transcende a ideia de solução, conserto ou restabelecimento. Me sinto a mesma pessoa de antes, mas sei que a transformação proposta pelas três sessões de hipnose, especificamente no meu caso, não poderia ser calculada tão friamente. O que muda daqui para frente é a consciência, leve e tranquila, de que meus pesadelos também fazem parte de mim. É praticamente impossível apenas extirpá-los, como um tumor invisível, depois de algumas sessões em transe.
Encará-los e entendê-los, agora, é trabalho da terapia, que comecei no último mês. Consegui me livrar das desculpas e da autossabotagem, pelo menos.
5 formas diferentes de meditação
Créditos: Visual Hunt