À época da nossa conversa, faltavam apenas duas semanas para que Lincoln pudesse se declarar oficialmente formado, sem qualquer hesitação. “Se for para sonhar pequeno, eu nem durmo”, brincou, enquanto contava, sereno e lúcido, os percalços entre o regime semiaberto da penitenciária São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina, e o Vade Mecum do curso de Direito na Universidade Vale do Itajaí.
Seis anos se passaram desde que Lincoln Gonçalves Dias ingressara na faculdade. Antes da matricula oficial, porém, foram 3 anos e 8 meses em regime fechado, sem qualquer alternativa ou brecha para se dedicar aos estudos. Em 2005, ele foi condenado pelo crime de latrocínio, cuja pena, no Brasil, varia entre 20 e 30 anos de reclusão. “Fui condenado por um crime que não aconteceu. Decidi estudar para poder me defender e entender o que estavam fazendo comigo”, lembra ele.
Onze anos depois, Lincoln fez questão de convidar a juíza responsável pela progressão de sua pena para a banca avaliadora do TCC. Denise Helena Schild de Oliveira, titular da Comarca da 3ª Vara Criminal da comarca da capital, acompanhou de perto a trajetória do recém-formado e confiou no bom comportamento apresentado pelo rapaz durante a reclusão. “Nem sempre se tem ideia do quanto é gratificante fazer justiça, abrindo caminhos e oportunizando a ressocialização de quem esteve à margem da sociedade”, afirmou Denise durante a apresentação oficial do formando.
Do cárcere à sala de aula
A luta começou alguns anos antes, porém. Segundo Lincoln, um jeito de reduzir sua pena era por meio do trabalho, com um dia de “bônus” a cada três de serviço. “Fazia monofones numa empresa de telefonia, como esse pelo qual estamos conversando”, me explicou. Ao todo, foram seis meses de desconto no saldo final da condenação, vantagem que o aproximou de um futuro praticamente extinto dentro das celas brasileiras. O caso de Lincoln ainda é uma feliz exceção entre a população carcerária no Brasil, que conta com 622 mil pessoas privadas de liberdade, de acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
“Lá, qualquer um pode se transformar em um monstro. Eles te tratam na base do chute, da paulada. Desrespeitam seus direitos e acabam com a sua dignidade. Se você está doente e quer remédio, por exemplo, eles te batem com um pedaço de pau com o nome da medicação. Enquanto a sociedade não entender que o sistema carcerário não funciona, ele continuará sendo uma uma fábrica de monstros. O que tive foi a oportunidade de não me transformar em mais um problema”, diz.
Em sua família, os estudos sempre foram encarados como um dever absoluto. “Minha mãe me pentelhava muito para que eu começasse uma faculdade”, lembra ele. O apoio e vigilância maternos continuaram os mesmos depois da prisão, acompanhados pela torcida oficial dos irmãos e tias. Foram eles que cuidaram da matrícula na universidade e outras burocracias quando o pedido de progressão para o semiaberto foi aprovado pela Justiça.
A partir de então, Lincoln foi colocado em uma cela com outros detentos que estudavam e trabalhavam. Para ele, aquela separação não era justa ou vantajosa. “Tem gente ali que está no crime desde os 13 anos. Eles não tiveram a oportunidade de conhecer um mundo diferente, como eu tive. Morando na mesma cela que esses detentos, eu poderia passar um pouco da minha experiência, mostrando que as oportunidades existem, sim. Essa interação poderia inspirar e mudar a mentalidade deles”, lamenta o advogado.
Na penitenciária, a rotina de estudos começava cedo, às 5h da manhã, quando Lincoln se preparava para pegar o primeiro ônibus para a faculdade. As aulas duravam das 8h às 11h30, horário limite para que ele retornasse ao complexo. No “tempo livre”, por assim dizer, o rapaz se debruçava sobre os livros indicados pelos professores do curso, pesquisando e concluindo trabalhos à mão, sem acesso à internet, celular ou computador. Para Lincoln, essa foi a parte mais complicada da graduação, sem dúvida alguma.
“Era difícil fazer alguma rasura no meio de um trabalho e ser obrigado a reescrever tudo. Os professores tiveram toda a paciência do mundo e a faculdade não me deu privilégios por conta da minha condição. Mesmo assim, eles sabiam que eu estava indo além. Alguns alunos tinham preconceito, sim, por serem de famílias ricas e se sentirem superiores aos outros. Hoje isso não rola mais. Essa discriminação nunca me derrubou, para falar a verdade”, admite ele.
“A mudança está no sim”
Hoje, em regime aberto, Lincoln trabalha como estagiário em um escritório e tem planos de fazer o mestrado na área de execução penal. Apesar da oportunidade, ele reconhece que o Estado ainda falha, e muito, na missão de ressocializar ex-detentos, perpetuando condições que geram mais revolta e violência por quem vivencia o abandono por trás das grades.
Na tentativa de transformar esse cenário caótico e cíclico, o advogado optou por abordar a violação de direitos humanos no sistema carcerário brasileiro em seu TCC, apontando as devidas penalizações no descumprimento de tratados internacionais. Com a orientação do professor e coordenador do curso de Direito Rodrigo Mioto dos Santos, o trabalho recebeu um merecido 10 da banca final.
“Para mim, tudo valeu a pena. Alcancei meu objetivo, mas sei que isso não vai fazer grande diferença se outras pessoas não tiverem a mesma oportunidade. Convidei minha juíza como uma espécie de agradecimento por ela ter enxergado o que nenhum outro juiz conseguiu. Mostrar para o Brasil que o caminho é esse, a oportunidade, o ‘sim’. Eu não posso ser exceção. Meu caso deveria ser obrigação, não algo extraordinário”, conclui.