“É difícil gostar de filmes pornôs que podem até excitar, mas transformam a mulher em simples objeto de satisfação do homem. Tudo acaba ficando brega, feio e nojento”.
Essa fala comum a muitas mulheres foi a inspiração da cineasta sueca Erika Lust para começar a produzir um novo tipo de filme adulto feito pelo olhar feminino. Erika é formada em Ciências Políticas pela Universidade de Lund, Suécia, onde estudou a fundo direitos humanos e feminismo.
Sua primeira experiência como cineasta pornô foi o filme The Good Girl (2004). Uma década e muitos prêmios depois, Erika segue com o site XConfessions, cujo objetivo é ouvir fetiches e fantasias sexuais de pessoas comuns e a partir dessas falas criar pequenos filmes eróticos.
Abaixo, você vê uma galeria de fotos (MUITAS!), vídeo e confere o papo com o Virgula. Erika fala sobre a relação entre cultura do estupro e pornografia, tabus sexuais, condições de trabalho no mundo pornô, fantasias e a importância da educação sexual no Brasil e no mundo.Erika Lust
Como você seleciona os relatos para serem transformados em filmes?
Erika Lust: Todos os dias chegam várias histórias no XConfessions, o meu projeto de contribuição coletiva de filmes eróticos. Lá, pessoas do mundo todo podem enviar suas histórias anonimamente (homens também escrevem, viu?) e eu escolho as mais criativas pra transformar em filme. Estreamos dois curtas novos por mês e normalmente escolhemos histórias que ainda não tenham sido feitas, com detalhes novos, tramas curiosas.
Quais foram as histórias mais interessantes?
El: Há histórias para todos os gostos. Já filmamos um documental erótico sobre um casal de acrobatas que exploram sua intimidade em público, outro sobre um namorado que fazia um sexo oral tão bom que sua namorada quis compartilhar com as amigas e acabou criando uma espécie de Airbnb do cunnilingus. Para quem gosta de aventuras, há um filme sobre “amizade com benefícios” em um barco. O mais recente é sobre o misterioso universo da ejaculação feminina.
As histórias que chegam até você para serem transformadas em vídeo ainda estão no formato pornô tradicional?
El: Dificilmente aparecem histórias que sejam machistas ou enraizadas na pornografia comum. As pessoas são super criativas e divertidas, viu? Quem faz parte do projeto pode ler todas as histórias que eu recebo. A gente publica novas histórias todos os dias.
Erika, o que as mulheres no mundo todo costumam dizer sobre os seus filmes?
El: Tenho uma relação bem próxima e aberta com o público por meio de emails e redes sociais.Um dos meus feedbacks favoritos foi quando uma mulher me disse que ter visto o curta “Manual del Placer” a inspirou a revolucionar sua própria vida sexual. Ela queria viver algo parecido com o que estava vendo ali. Comemorei muito. Pensei: “Estou fazendo algo certo”!
Também recebo alguns comentários críticos, é claro. Por exemplo, sobre os filmes que eu seleciono para o meu site de vídeos online, o Lust Cinema. Às vezes alguém identifica uma cena que tem algum traço negativo que eu não tinha me dado conta. Então eu vou lá, assisto de novo, pondero e tomo decisões. O feedback é especialmente importante pra mim porque eu me proponho a fazer filmes com os quais as pessoas se sintam identificadas, então eu preciso e quero escutá-las.
O Brasil este debatendo a chamada cultura do estupro depois do caso chocante de uma menina de 16 anos que foi violentada por muitos homens e as imagens foram divulgadas na internet. Você acompanhou?
El: Sim. Quando eu soube desse caso no Brasil, fiquei chocada. Como mulher, como mãe (tenho duas filhas pequenas) e, é claro, como diretora de filme erótico. Pra mim, a cultura do estupro é alimentada pelo patriarcado de várias formas, não só na pornografia. Quem não se lembra do anúncio publicitário que parecia uma gangbang…
A pornografia tradicional é criticada em muitos países por contribuir com esse tipo de mentalidade violenta. As novas produções de pornô podem combater a cultura do estupro?
El: A primeira coisa a esclarecer, na minha opinião, é que estupro não é sexo. Violação não é sexo. Abuso não é sexo. É preciso falar sobre essa cultura do estupro, debater suas razões, entender de onde ela vem e o que podemos fazer para combatê-la. Embora eu nunca tenha tido a intenção específica de guerrear com a violência, sempre acreditei no erotismo como um discurso. E hoje eu vejo, sim, o cinema adulto ético como uma ferramenta de mudança. O erotismo não é intrinsecamente machista. O machismo é ele ser feito sempre pelo mesmo grupo de homens heterossexuais de meia idade representando a mesma situação de novo e de novo.
Quais eram os seus objetivos quando você começou a produzir filmes adultos?
El: Eu comecei a fazer filmes eróticos porque eu queria fazer parte desse estímulo sexual e ninguém estava fazendo nada que me respeitasse e que me fizesse me sentir bem. Eu não aceitei que aqueles filmes fossem os únicos existentes porque isso significaria que eu jamais seria levada em consideração. O pornô tradicional não ensina às mulheres a comunicarem e nem mostra o que elas querem. Apenas as transforma em objetos de prazer masculino.Isso tudo só transmite uma sensação completamente irreal do que é o sexo. O cinema adulto independente nos oferece muito mais, nos transmite uma mensagem diferente e isso é positivo.
Depois do seu pioneirismo, surgiram outros (as) cineastas feministas. Quais produções você poderia indicar?
El: Os filmes da Tristan Taormino, da Ovidie, da Jackie St. James, da Jennifer Lyon-Bell, da Morgana Muses, da Vex Ashley. Esses trabalhos reivindicam outra maneira de entender a pornografia. Normalmente, pensamos em pornografia e já imaginamos alguma cena horrível de algum site igual o RedTube, mas a verdade é que o gênero passou por muitas transformações.
O que você ouve dos homens sobre os seus filmes?
El: Quem acha que homens não assistem ou não gostam dos meus filmes está super enganado. Na verdade, eles adoram! Eles também apreciam ver histórias interessantes, fotografia cuidada e personagens realistas.
Fantasias eróticas no pornô feminista de Erika Lust
No Brasil, recentemente em uma entrevista na TV, um ator que já fez filmes pornô (Alexandre Frota) admitiu ter estuprado uma pessoa. Pouco depois, ele foi recebido pelo Ministro da Educação para dar “conselhos”. O encontro foi muito criticado. Você vem da Suécia com tradição de educação sexual nas escolas e com um trabalho de filmes adultos feministas. Se você pudesse se encontrar com o Ministro da Educação, o que você poderia sugerir sobre educação sexual nas escolas brasileiras?
El: Olha, eu não sei o que diria sobre esse caso específico porque não conheço o ator. Mas posso afirmar que educação sexual é essencial e acho que a sociedade não está dando a importância devida a isso. Estamos fingindo não ver que a pornografia online é a educação sexual das gerações mais jovens. É preciso criar uma consciência crítica para que eles saibam diferenciar primeiro o que é pornô e o que é vida real. Assim, eles serão críticos em suas escolhas de consumo. É como escolher uma refeição saudável ao invés de fast food. Muitas vezes a pornografia chega antes de qualquer aula sobre o assunto. Isso quando existe uma aula de educação sexual. Além disso, aquela explicação biológica sobre a reprodução humana não dá conta da complexidade do tema.
Falar sobre sexo ainda é tabu?
El: Eu tenho duas filhas. Considero que elas serão muito privilegiadas por não viverem com medo dos tabus sobre sexo. Talvez a parte mais difícil seja que os pais e professores precisam superar os seus próprios medos em relação ao sexo. Depois que o assunto deixar de ser tabu, eles podem falar ainda melhor com seus filhos e alunos.
Algumas atrizes da indústria de filmes adultos tradicional vêm denunciando casos de abusos de atores em cena e preocupação com a falta de segurança que elas são submetidas em algumas produtoras. Você poderia contar quais são os cuidados que você toma com os atores da sua produtora?
El: A gente pede exames médicos, por exemplo. São inegociáveis e têm que ser apresentados nos dias anteriores à filmagem. Os performers que trabalham comigo também sabem que a qualquer momento podem pedir o uso de preservativo. Um dos meus maiores cuidados é conversar com eles o máximo possível. Explicar a história, as minhas ideias, com quem eles vão trabalhar. Sempre pergunto se eles têm sugestões de com quem gostariam de fazer as cenas e muitas vezes essas sugestões são aceitas, o que é super positivo porque o quanto mais confortáveis eles estiverem, mais natural vai ser o resultado!
Eu também costumo “não dirigir” as cenas de sexo. A gente conversa um pouco sobre o que eu imagino que ficaria bom, peço uma ou outra coisa específica que serão importantes para a história, mas eles sabem que podem improvisar e tomar decisões se acharem que será melhor. Esse é um dos detalhes que mais costuma surpreender as pessoas, porque toda a pornografia tradicional é ultra dirigida. Como no pornô tradicional eles querem planos quase ginecológicos, as posições têm que ser bem marcadas e no final fica aquela coisa mecânica. É diferente nos meus filmes. Nem sempre mostro a penetração e várias vezes a famosa cumshot (ejaculação no rosto) também não dá as caras.
Além disso, tem o fato de rodarmos as cenas de sexo durante cerca de 30 ou 40 min no máximo. Durante o resto do dia filmamos as outras cenas da história. O pagamento é igual para homens e mulheres, não faço distinção de gênero. O set sempre tem comidinhas, água, snacks pra todo mundo (acreditem, isso não é tão comum!). Na hora do sexo fica só a equipe necessária no set: figurinista, maquiadora, operadora de câmera, de som, assistente de direção, direção de arte, fotógrafa e eu. E sim, são todas mulheres. E todas têm orgulho do seu trabalho e nossos nomes estão todos nos créditos e na ficha técnica. Nesse post eu descrevo como é meu set.
O que os seus filmes podem mostrar para mulheres que têm problemas com a própria sexualidade?
El: Eu gosto de pensar que meus filmes de alguma forma naturalizam o desejo sexual da mulher, o que é muito necessário. Desfazer essa ideia de que uma mulher que gosta de sexo, ou que gosta de ver sexo, é suja ou errada. Elas vêm os filmes e se reconhecem porque a história é realista, pode ter acontecido com elas em algum momento.
A fotografia é bonita e cuidada, a estética é inteligente, e os atores são pessoas que elas poderia perfeitamente encontrar na rua e se sentirem atraídas. E nos meus filmes as mulheres têm iniciativa, elas tomam decisões realistas e por elas mesmas, não estão ali só pra servir o homem. Essas coisas aproximam o sexo de um sentimento positivo, inspiram, transmitem segurança.
Não são filmes-tutoriais desses que dizem “olha o que é um blowjob bem feito”, ou “faça assim se quiser seduzir alguém”. Eu trabalho pra não dar essa sensação de estar ensinando uma fórmula, porque o sexo não têm uma fórmula. Tem comunicação, desejo e respeito.
O que pode diferenciar o fetiche do sadomasoquismo da violência? Quais cuidados vocês tomam com as cenas com esse tema?
El: Muita gente vê violência no fetiche porque eles infelizmente costumam ser representados com violência. A maioria do pornô mainstream mostra o ato sexual como algo violento, como algo que o homem faz à mulher, ou na mulher, ao invés de fazer com a mulher. O primeiro passo seria desconstruir essa imagem, entender que o sexo é algo a ser feito entre duas pessoas que têm a mesma importância naquele momento e a mesma vontade e direito de prazer. E depois, é preciso desvincular os estereótipos da vida sexual.
Falar sobre o sadomasoquismo sem cair nos seus estereótipos. Muita gente tem uma ideia equivocada do que é e como funciona, e o mundo está cheio de histórias como “50 Tons de Cinza” para nos confundir ainda mais. O sadomasoquismo é uma prática fundamentada na confiança entre os participantes onde nada é feito a não ser que tenha sido expressamente pedido por quem será dominado. Na verdade, o dominado é quem tem o controle da situação.
Num dos meus filmes sobre o tema, “An Appointment With My Master”, eu fiz questão de incluir uma cena em que os personagens estão conversando aberta e claramente sobre o que a garota que será dominada quer e não quer, do que ela gosta e do que ela não gosta. Essa comunicação, tão importante no sadomasoquismo, quase nunca está presente nas representações mais sensacionalistas. Quem quiser filmar sexo e representar algum fetiche tem que entender esse fetiche e respeitar seus praticantes.
Veja no vídeo abaixo os bastidores de alguns filmes de Erika Lust