Reginaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como Ferréz, é ícone da Literatura Marginal e completa 15 anos de atividade literária e resistência. Aos 36 anos, o escritor acaba de lançar o sexto romance de sua carreira; Deus Foi Almoçar (Planeta).
Ferréz ainda mantém as raízes no Capão Redondo, periferia de São Paulo, cenário dos seus primeiros romances e bairro onde mora. A região vive uma efervescência cultural por conta dos saraus literários que ele próprio ajudou a criar.
No entanto, o novo livro reflete um pouco de outros aspectos de sua vida nos últimos oito anos, período em que o escritor casou e foi pai de Dana, hoje com 5 anos. O romance conta a história de um homem comum chamado Calixto. Nem rico e nem pobre. Abandonado gradativamente pela família, ele não consegue se envolver com as pessoas e tampouco sabe reagir aos seus problemas. Com esse personagem vitimado, Ferréz afirma que pretende mostrar um trabalho livre de estereótipos.
Ainda assim, quem espera que o escritor multimídia esteja distante da militância e do tema que o consagrou nos livros Capão Pecado e Manual Prático do Ódio se engana. Em um bate-papo exclusivo com o Virgula, Ferréz fala sobre os inúmeros projetos que tem desenvolvido: uma nova HQ, o lançamento de um CD de poesias recitadas, um novo livro infantil chamado O Pote Mágico, roteiro para o cinema, além da organização de ações educativas para crianças do Capão Redondo junto da ONG Interferência.
Deus Foi Almoçar fala de conflitos psicológicos e não trata de assuntos específicos da periferia. O Ferréz mudou ou a periferia mudou?
Os dois. Eu sempre fui contra a mesmice. Ser um cara igual a todo mundo me incomoda. Fiz muitos trabalhos falando da periferia e a minha visão do que era a realidade daqui. Deus foi Almoçar é um livro de libertação do meu jeito de escrever. Algumas pessoas me cobravam, pois não enxergavam a influência explícita do Hermann Hesse, Flaubert e outros caras que eu costumo citar, por exemplo. Só que a literatura boa, aquela que você pega influências e devolve de uma forma nova e inspirada, demora anos. Esse trampo eu tenho orgulho de dizer que só escrevi inspirado.
Quais foram suas influências na produção de Deus Foi Almoçar?
Quando eu terminei de escrever o Manual Prático do Ódio me veio a ideia de fazer um romance com apenas um personagem. Era um desafio. No Deus Foi Almoçar, embora existam outros personagens, eu consegui desenvolver a parte psicológica do Calixto. No livro, você encontra referências de Hemingway, Lourenço Mutarelli, Machado de Assis, Lima Barreto. É um livro de desafio. Eu gosto de séries como Lost e Arquivo X, que me influenciaram também. Eu quis, propositalmente, que o livro remetesse a outras mídias. É da hora você saber que o cara parou a leitura do livro para pesquisar e descobriu que o nome da rua do livro tem o nome do livro do Hermann Hesse. E a inspiração chegava em vários momentos. No bar do Nildo, andando nas ruas, tá ligado?
Por esse motivo o romance demorou um pouco mais que os anteriores para ser produzido?
Sim. Demorou para terminar porque em nenhum momento eu parei pra escrever sem inspiração. Vinha o bagulho e eu colocava as ideias do Calixto. Eu mostrei um trecho para o Paulo Lins, e ele me disse: “Nossa mano, mas tá difícil isso viu… Você vai levar bordoada lá na quebrada…” (risos). Eu quis fazer um livro que ficasse com a pessoa quando ela terminasse de ler, assim como os livros do John Fante estão na minha cabeça. Um livro do John Fante nunca sai de você. Quando eu contei a história do Deus Foi Almoçar pra algumas pessoas à minha volta, depois de um tempo elas me diziam: “Mano, eu vi um cara ontem mexendo na chave com a mão no bolso e lembrei do Calixto.” É justamente isso que eu espero.
Você já teve medo de ser conhecido como o autor de um único tema?
Não. Deus Foi Almoçar tem protesto, por exemplo, só que em forma diferenciada. É outra fita, porque eu queria me libertar no romance. O assunto é pesado. Eu moro no lugar, participo das atividades do lugar, escrevo rap. No livro eu quis mostrar outro tipo de conflito. As pessoas não podem achar que um cara da periferia só vai cantar um samba, pintar um quadro, fazer um filme porque tem o tema da periferia presente e se apropria do lado social. Independente da minha militância, eu tenho um lado artístico que posso desenvolver com criatividade e competência. O livro Deus Foi Almoçar é isso. Não tem a favela, nem cara que mata. Tem um autor da quebrada fazendo literatura.
Depois de ter ficado famoso, você coleciona mais amigos ou inimigos por fazer literatura na periferia?
Um pouco dos dois, mas eu foco nos admiradores que fazem o corre junto. Recentemente, estava em uma produtora, um local mais elitizado, e uns caras falaram: “Quem é esse Alessandro Buzo que você tanto fala?”. Em seguida, outro respondeu: “É aquele cara que vive de boné, que fala de pontos culturais de várias favelas.” Olha a visão do cara: “pontos culturais de várias favelas”. O Buzo fazendo esse trabalho mostra que tem cultura na favela, só isso já eterniza o trabalho dele. Ele não está ali para mostrar a biqueira (gíria para ponto de tráfico), cara morto, pelo contrario. É assim: “Estamos aqui na Brasilândia para mostrar o trabalho da Periferia Ativa”. O que ele faz é um grande trabalho. Quantos jornalistas falam que não tem pauta na periferia? Você acha que não tem jornalista apostando que ele vai ficar sem pauta? Por outro lado, tem gente que o questiona por estar na Globo, e eu defendo. Você já parou para pensar na história desse cara? Eu vi esse cara num cômodo em cima de um córrego no Itaim Paulista. Me fale de alguém que saiu do Itaim Paulista e está apresentando um quadro em um programa jornalístico na Globo, isso sem um curso de jornalismo! Ele teve que escrever e distribuir seus livros até pouco tempo, ele estava na Cultura. Ninguém dava nada para ele e agora ele faz palestras em faculdades de jornalismo.
Além disso, você não faz apenas literatura. Tem o rap, o cinema, os quadrinhos…
Isso é típico de caras da periferia. O meu parceiro desenhista Alexandre de Maio tinha uma revista chamada Rap Brasil em uma editora pequena. Eu ficava vendo o trampo dele e pensava como o cara é um herói. Faz a revista, a diagramação, a arte, tudo. Fiquei admirado. O cara da periferia edita vídeo, desenha, faz diagramação, fotografa, filma e nenhuma dessas qualidades deixa o cara bem de vida (risos). Se o cara de elite faz uma dessas coisas ele vive bem. Eu escrevia piada no site Humor Tadela… pensa esse cara aqui escrevendo 30 piadas por dia para um site… (muitos risos).
Junto dos desenhos do Alexandre de Maio você escreveu a história em quadrinhos Os Inimigos Não Mandam Flores. Atualmente você está trabalhando com algum projeto de HQ?
Eu respeito muito história em quadrinhos. Acho que é um trampo muito difícil de fazer. Eu me meti a fazer Os Inimigos Não Mandam Flores, que vendeu 3 mil exemplares. Foi bem para os padrões de mercado. Era uma trilogia, mas a editora não publicou as outras partes. Eu e o Alexandre de Maio juntamos a história em um livro só. O livro chama Desterro. Talvez a gente publique ainda esse ano. Estamos avaliando propostas.
Existe pretensão de fazer algo para o cinema, depois dos roteiros feitos para Cidade dos Homens?
Eu estou escrevendo um roteiro de filme com meu amigo Marc Bechar. Tenho a impressão que vai surpreender muita gente. Não posso falar muito desse trabalho agora.
E o rap?
Eu havia dito que largaria o rap ano passado e já estou com quatro músicas feitas com quatro grupos diferentes pra gravar e mais seis músicas pra finalizar as bases… E o rap é o meu contato com os moleques. Fico lá (estúdio 1dasul) tomando café, trocando ideias… Saio de lá feliz pra caralho. A literatura é um lance muito solitário. Além disso, eu criei o projeto Ensaiaço, uma espécie de sarau do rap onde os coletivos ligados ao movimento ensaiam juntos uma vez por mês. Sou o dono da gravadora 1dasul que lança vários grupos de hip hop. Vou lançar um novo CD de poesia riscada com a participação do Zeca Baleiro e do Egypcio do Tijuana, em breve. A verdadeira literatura marginal é o rap.
Como você concilia tantas atividades?
Eu achei uma linha de produção depois de muitos anos entre crônica, contos e rap. O PalavrArmas é um trabalho recente que peguei um conto depois transformei em crônica e depois em uma letra de rap. O Arnaldo Antunes faz algo parecido quando transforma a letra em um livro e depois reorganiza em arte visual. Eu sempre viajei nisso.
O que faz a ONG Interferência?
A ONG Interferência faz atividades de leitura e educação com as crianças no Jardim Comercial. Há mais ou menos umas 120 crianças. O Interferência começou quando eu ganhei o primeiro dinheiro que entrou na loja 1dasul. Eu comprei ovos de páscoa e fiz uma festa. Virou uma tradição. Em cada ano a gente fazia essa festa em uma casa diferente. Depois de um tempo, eu e outro rapaz decidimos comprar uma casa na viela e fazer um trabalho mais abrangente de leitura e educação para crianças. As pessoas do bairro me conhecem pelo Capão Pecado e pela loja 1dasul. Não entenderam o que era o projeto no começo. Coloquei alguns livros e gibis do meu acervo pessoal e dei sequência no projeto. Na primeira semana achei que eu iria morrer. Um pai apareceu na porta da casa perguntando da filha, bravo, dizendo que iria me pegar. Ele não conhecia as atividades que a gente estava fazendo, mesmo com a filha frequentando a casa há um tempo. Quando ele entrou na casa e viu as crianças sentadas, lendo e fazendo as atividades, ele ficou sem graça e me disse: “Poxa cara, desculpa. Eu não sabia que era isso…” No começo eu dava aulas todos os sábados. Depois de um tempo contratamos uma pedagoga.
Qual é o papel da Literatura Marginal na nova cena cultural da periferia?
Não digo que a Literatura Marginal é a responsável pelo sucesso, mas sem dúvida foi uma excelente vitrine. As Edições Toró e o Allan da Rosa, por exemplo, acho da hora. Eles tinham uma caminhada anterior, mas a Literatura Marginal deu um espaço pra eles. O próprio Sergio Vaz e a Cooperifa, o Cascão da Trilha. O Garret, por exemplo, participou da revista da Literatura Marginal, enfrentou um período em depressão e atualmente está morando na Europa. A Dona Laura, com os seus 73 anos escreveu o primeiro livro.
O que mudou na cena cultural da periferia?
Uns quinze anos atrás, você chegava nas sedinhas (centros comunitários), nos comícios, nos shows de rap pra falar de poesia e pedia espaço pra falar de poesia. Eu pedia pro Thaíde e ele me falava: “Vai lá. Você tem uns 5 minutinhos.” Enquanto eles montavam o equipamento eu ficava lá: “O pensamento que pensa o pensamento…”, e a galera gritava: “Que porra é essa? Cadê o Thaíde? (risos) Não tinha um cenário de literatura, não tinha nem internet.
O que te incentivou a se tornar um escritor?
Meu pai falava: “Filho, estuda. É a única coisa que não vão roubar de você. O resto tudo rouba.” Ele tinha só a 3ª serie. Mesmo assim, ele comprava literatura de cordel. Eu tenho essa imagem bonita na cabeça. Ele pegava o cordel pra ler e ficava: “Jo jojoão aca ca ba o mundo…” Eu aprendi a ler e comecei a me interessar por quadrinhos. Eu pedia pra ler pro meu pai e ficava nós dois ali, bebendo café. Na 1ª série, eu já estava lendo melhor do que ele. Meu pai ficou com vergonha disso e voltou a estudar. No mesmo colégio que eu estava. Ele ficou até a 5ª série. Mesmo cansado do trabalho, ele pegava a pastinha e toda noite ia pra lá estudar. Ele aprendeu a ler melhor. Uma coisa estimulou a outra. Pequenos atos que fazem toda diferença. Daí fui atrás dos gibis, da música punk, Titãs, Arnaldo Antunes, dos sebos.
Tem mais leitores na periferia hoje?
Sim. Vou lançar meu livro na sexta (6 de julho) aqui na quebrada. Estou conversando com jornalistas daqui. Os meus livros chegaram primeiro na minha loja. Existe um orgulho de dizer de onde é, assumir o cabelo crespo, de ser livre de ser do jeito que se é. A cultura é que traz isso.
Ferréz lança o livro Deus Foi Almoçar
Créditos: Phill Costa e Marcus Kawada Agência Periferia Revista