O antropólogo Michel Alcoforado é um niteroiense apaixonado por sua cidade, mas como quase todo conterrâneo, é também um ser em constante mobilidade. “Quem nasce em Niterói está sempre acostumado a ir e vir. A gente cresce com a ideia de que é preciso sair da cidade para estudar e trabalhar”, diz ele, que já mudou diversas vezes. Fez mestrado em Antropologia Social na Universidade de Brasília e morou alguns anos no Canadá, onde se especializou em Consumo na University of British Columbia e trabalhou como consultor para pesquisa de mercado e tendências. E hoje vive entre Niterói e São Paulo, onde está a maioria de seus clientes. Michel é um cidadão do mundo, mas é da sua terra natal que ele entende mais do que de qualquer outra paragem. Como diretor da Consumoteca, instituição que investiga o comportamento do consumidor brasileiro, e especialista no assunto, o antropólogo decreta: “Niterói não existe em si, ela só existe em relação com o Rio. Sentimos inveja e repulsa ao mesmo tempo”.

Quem é o niteroiense? Que características ele tem, aos 440 anos de história?
Bom, Niterói foi capital do Estado e sempre foi ponto de parada de quem vinha do interior de mudança, mas não tinha coragem de morar no Rio de Janeiro, uma cidade mais cara e agitada. Isso foi fundamental para a nossa história. Muitos ficavam em Niterói, colonos de outras paragens, gente do interior, e isso influenciou nossa formação. Morar em Niterói não significa, nem significava,  renunciar à grande cidade, e sim viver a margem dela. E é exatamente o fato de estar tão próxima do Rio, mas tão “longe” ao mesmo tempo, que faz de Niterói uma cidade antropológica por si só: a gente, o niteroiense, se constrói no ir e vir. Estamos sempre acostumados com a ideia de que é preciso ir para outro lugar trabalhar, estudar etc. Em geral, o niteroiense passa a sair rotineiramente da cidade quando entra para a faculdade ou arranja um emprego. Ao mesmo tempo, quem nasce lá não quer sair, porque é uma espécie de Disney, tem um dos maiores IDHs do país, não tem analfabetismo, a qualidade de vida é altíssima. Então, o ir e vir, principalmente para o Rio , faz parte da sociabilidade do niteoirense. E esse movimento é fundamental na nossa formação.

O niteroiense se sente um pouco carioca também?
A gente evoca a identidade de niteroioense quando nos favorece, e quando queremos, podemos também evocar a identidade de carioca. Quando estou em São Paulo, sou carioca, digo que sou carioca e todos me vêem como carioca, a gente fala chiando, vive o carioca way of life, é malandro etc. É mais vantajoso ser do Rio em algumas situções. Mas quando as pessoas criticam o Rio, digo que sou de Niterói, e que em Niterói é diferente, a violência é menor, as praias são mais vazias etc. E nós entendemos muito do Rio, porque vivemos a cidade. Vivemos simultaneamente duas vidas: uma do lado de cá da ponte e outra do lado de lá. Por outro lado, o carioca não conhece nada de Niterói. Então a gente marca bem está diferença dizendo que só o niteroiense conhece os segredos da sua cidade. A gente sabe o melhor horário para ir na praia de Itacoatiara, como a praia se divide, onde estão os sarados, as meninas bonitas. E a gente sabe também como funciona a praia de Ipanema. Transitamos muito mais que o carioca. Niterói tem 500 mil habitantes, e quando você atravessa a ponte, está numa megalópole com 8 milhões de pessoas. Essa possibilidade de viver os dois lados é a essência do niteroiense.

E como isso se reflete na personalidade de quem nasce em Niterói?
Para começar, todo mundo tem uma percepção de que os niteroienses se adaptam mais facilmente que os cariocas fora da terra natal. Porque nós já nascemos com a ideia de que existe sempre a possibilidade de viver em outra cidade, coisa que o carioca não tem, porque ele não imagina sair do Rio, ele cresce com a ideia de que mora na cidade mais maravilhosa do mundo e que não há lugar que se compare a ela. Aliás, São Paulo e Rio têm isso em comum: criam personagens (os paulistanos e os cariocas) com estilos de vida muito atrelados ao espaço da cidade, que não conseguem encontrar outra forma de viver que não seja naquele lugar. Para eles, mudar significa se reinventar; o paulistano quer restaurante aberto na hora que bem entender, quer fazer academia na hora que bem entender, quer um ar cosmopolita que não encontra em outra cidade do país etc. Mas o niteroiense não tem isso, ele se adapta facilmente em qualquer lugar.

Niteroiense sofre bullying de carioca…
Pois é! Dizem que a melhor coisa de Niterói é a vista para o Rio, e que a cidade é tão boa que até a estátua do Araribóia está de costas para ela, e de frente para o Rio. Mas a gente sempre rebate com uma série de argumentos. Está na moda ultimamente a gente se vangloriar do nosso conjunto de obras do Niemeyer. E dos preços, que são mais baratos que do outro lado da ponte. Outro dia, eu estava procurando apartamento para alugar e me perguntaram se eu ia mudar para o Rio. Respondi que não vou jamais, se com o mesmo preço que posso morar num bairro nobre em Niterói, com alta qualidade de vida, no Rio tenho que me contentar com algo mais simples, menor e mal localizado. Mas a verdade é que Niterói não existe em si, ela só existe em relação com o Rio. Sentimos inveja e repulsa ao mesmo tempo. Porque no mundo as coisas só fazem sentido diante do oposto: branco e preto, vida e morte etc. Ter um oposto é sempre fundamental, e Niterói tem dois, Rio e São Gonçalo, uma coisa maravilhosa, não é?


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Entre lifestyle do Rio de Janeiro e de São Gonçalo, Niterói forja sua identidade, diz antropólogo

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