Era 1o novembro de 2015, um domingo qualquer dedicado à cura da ressaca das festas de Halloween. Ninguém esperava que, no fim da noite, mais uma celebridade negra fosse alvo de ataques racistas nas redes sociais. A escolhida da vez era a atriz Taís Araújo, uma das personalidades mais cativantes da televisão.
Os comentários na foto de perfil de Taís questionavam se ela havia entrado para o time da Rede Globo por meio de “cotas” e se não era hora de voltar para a senzala, entre outras coisas muito piores. Em vez de apagar as ofensas e esperar a poeira baixar, a atriz se pronunciou de um jeito lindo, dizendo que não iria se calar. Entenda o caso de racismo contra Taís Araújo.
Nesta terça-feira (17), foi a vez de Ludmilla. A cantora foi chamada de macaca ao vivo durante o o Balanço Geral DF, da Record. O autor da ofensa foi o apresentador Marcão do Povo. Ele desconversou e garantiu que, no interior do Tocantis, onde nasceu, “macaca” é vício de linguagem. (saiba mais sobre o caso aqui)
Lud não deixou barato e prestou queixa contra ele. A Record não se pronunciou.
só da pra sentir nojo, tem que processar mesmo#ProcessaLudmillapic.twitter.com/lt8nolDRj3
— mi (@jlwtcher) 18 de janeiro de 2017
O que Taís Araújo e Ludmilla sofreram naquele domingo é algo corriqueiro na vida de negros e negras no Brasil – um país em que 53% da população se declara parda ou negra, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2014, realizada pelo IBGE.
MULHER E NEGRA: DESAFIO DUPLO
A história se repete, muito mais do que se imagina ou conhece, de fato. Em 2014, a atriz e então Globeleza Nayara Justino recebeu uma série de recados preconceituosos, também em seu Facebook.
“Me chamaram de macaca, neguinha… Foi bem forte, porque rolou um número grande de críticas, então teve bastante impacto em mim. Um dos piores episódios que já vivi”, lembra a atriz, em entrevista ao Virgula. Todos os dias, porém, Nayara enfrenta o preconceito mascarado em olhares sutis e acusadores, como quando entra em uma loja e ninguém se prontifica a atendê-la.
Essas situações e o drama vivido por Taís Araújo não fizeram Nayara recuar. Para ela, funciona como um motivador para mudar, se engajar na luta e não se calar frente a episódios de racismo e discriminação.
Ser mulher e negra no Brasil, portanto, é trabalhar em dobro pelo reconhecimento justo da sociedade e lutar contra uma violência gritante, que as atinge todos os dias. De 2003 para 2013, o assassinato de mulheres negras cresceu 54,2%, segundo o Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil.
Mas não é só a violência física que atinge essas mulheres. E a questão emocional? Como se sentir representada e se reconhecer em um país que coloca os negros nas sombras? A história da atriz Aisha Jambo, a Nadiri da novela “Dez Mandamentos”, destoa um pouco do drama silencioso de outras mulheres negras que não tiveram as mesmas oportunidades. A opressão sentida na pele por Aisha, porém, não é irrelevante ou sem importância.
“Quando você vai a uma banca de jornal e vê 90% das capas de revistas com pessoas brancas, ou quando você liga a TV e também só assiste a programas com pessoas brancas, o racismo fica evidente. Percebo, ainda, um estranhamento quanto à beleza negra no meu espaço profissional”, explica.
Desde pequena, Aisha foi encorajada pelos pais a adotar os cabelos naturais e cacheados, sem recorrer a nenhum tipo de alisamento. Mesmo assim, a atriz teve que lidar com apelidos, brincadeiras impróprias e comentários racistas sobre o visual assumidamente afro. “Samambaia” e “Bombril” foram algumas referências que fizeram ao cabelo de Aisha, que segue firme e forte nos cachos naturais.
De qualquer maneira, calar-se não é mais uma opção. Para Nayara Justino e Aisha, a resposta às agressões, sejam elas verbais ou físicas, precisa existir entre as mulheres negras, além de um trabalho de educação e conscientização que deve vir das escolas. Do jeito que está é que não dá para ficar,de maneira alguma.
“Não adianta pagar uma cesta básica e achar que tá resolvido. Imagina como fica a cabeça de uma criança negra, vendo tudo isso acontecer. Para que ela vai querer aparecer na televisão um dia, se ela vai ser hostilizada? Não, vai preferir continuar sendo invisível. Somos um país onde a maioria é negra. É inaceitável que isso aconteça nos dias de hoje”, reitera a atriz.
ELAS NÃO ESTÃO SOZINHAS
O status de “celebridade”, portanto, só traz luz a um cotidiano de discriminação e preconceito que parece estar enraizado na cultura brasileira. A própria Taís Araújo comentou isso durante o programa “Altas Horas”, na edição de 7 de novembro.
Questionada por Serginho Groisman se já havia encarado algum “momento” específico de racismo, a atriz relembrou como o preconceito marcou diversas fases da sua vida, desde a infância, quando um colega perguntou se quem pagava a mensalidade da escola era a patroa de sua mãe. E olha que a polêmica do Facebook nem tinha rolado ainda, viu?
“Eu tive alguns ‘muitos’, ao longo da minha vida. O negro brasileiro passa por isso diariamente. Eu passo até hoje. Qualquer coisa eu fizer e uma determinada pessoa não gostar, ela vai falar ‘olha aí, aquela neguinha metida’. É dessa maneira que vão abordar, e isso é preconceito da mesma maneira”, ressaltou Taís.
https://www.youtube.com/watch?v=EX0WkvyX4ik
Alguns meses antes, em julho, a jornalista Maria Júlia Coutinho sofrera o mesmo ataque que Taís Araújo. A suspeita era de que alguma página racista no Facebook tivesse orquestrado os ataques, já que a enxurrada de ofensas aconteceu simultaneamente. Maju fez a fina e deu uma resposta curta e direta em seu Twitter, mandando um “beijinho no ombro” para os haters.
Por isso, a fama e o próprio meio artístico em que algumas celebridades negras circulam não são um território 100% seguro, livre de manifestações discriminatórias; ainda assim, podem ser oportunidades e espaços de combate ao preconceito, desde que o protagonismo da luta seja mantido pelos negros.
“A posição de destaque que ocupo na mídia, além do fato de trabalhar em grandes empresas de entretenimento, me ajudam a ser vista de outra maneira. Nós, negras que conquistamos um pouco desse privilégio social, também podemos ajudar outras mulheres a se sentirem mais confiantes”, acredita a atriz Aisha Jambo.
O QUE DEVO FAZER?
Se você foi vítima ou acompanhou algum caso de discriminação, é possível denunciar e responsabilizar os envolvidos. O crime de injúria racial está contido no Código Penal e consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem; o crime de racismo, por outro lado, atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Racismo é um crime inafiançável e imprescritível.
1. É possível denunciar crimes de ódio e discriminação pelo site da Polícia Federal ou pelo e-mail denuncia.ddh@dpf.gov.br. Certifique-se de printar os sites, comentários ou perfis racistas na internet, o que poderá ser utilizado como prova do crime, mais tarde. A ONG Safernet também aceita denúncias do gênero, aqui.
2 . Outra alternativa é procurar a delegacia mais próxima e realizar um boletim de ocorrência (ou o DECRADI, a Delegacia de Crimes Raciais e Intolerância, que fica no bairro da Luz). Em caso de agressão física, é aconselhado que a vítima não limpe ferimentos, tampouco troque de roupa, para preservar as provas.
3. Outra dica é denunciar por telefone, mesmo. O serviço Disque Racismo serve justamente para isso, basta ligar para o número 156, opção 7, para denúncia de racismo ou injúria racial.
11 mulheres negras que já foram vítimas de racismo
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