*Por Aline Lacerda e Giovanna Tavares
Maiara não consegue se lembrar de muita coisa daquela noite, em 2009. Ainda era menina, com apenas 16 anos, e começava a frequentar as primeiras festas e shows com um grupo de amigos mais velhos. Maiara não consegue e não tem certeza se quer, de fato, lembrar o que aconteceu naquela noite.
Ela faz parte de uma estatística cruel e vergonhosa que violenta mulheres a cada 11 minutos no Brasil, de acordo com pesquisa do IPEA. Esse número pode ser ainda maior, já que apenas 30% das vítimas formalizam a denúncia de estupro às autoridades. O que leva ao cálculo de que, em média, é cometido um estupro a cada minuto no País. Registrar o abuso é nadar contra uma cultura que ainda responsabiliza as vítimas pela própria violência sofrida, tratando o crime como o resultado de um descontrole do desejo masculino irreprimível, provocado pelas mulheres.
O desenrolar do caso de Beatriz, jovem estuprada no Rio Janeiro, comprova a realidade da cultura do estupro em que vivemos. Raphael Belo, 41, tirou uma foto fazendo pose ao lado do corpo sujo e ensanguentado da garota de 16 anos, justificando a atitude como algo sem importância, “uma coisa instintiva”. Raí de Souza, 22, responsável por filmar e publicar as imagens na internet, chegou para depor sorrindo, se sentindo “mais famoso que a Dilma”, em suas próprias palavras. “Eu estou tranquilo porque ela deu vários furos. Não imaginei que ia dar isso”, disse ele. Por fim, Alessandro Thiers, delegado afastado do caso, deu seu parecer. “A polícia não pode comprar a ideia de estupro coletivo quando, na verdade, a gente não sabe ainda”.
Primeiro, o sexo forçado é tratado como algo fora de controle, natural do comportamento masculino. Em seguida, o suspeito deixa claro que pode fazer o que bem entender com uma mulher, já que não sofrerá nenhum tipo de punição. Depois, o delegado responsável pela vítima e seus agressores considera insuficiente um vídeo que mostra uma garota sendo abusada, enquanto desacordada.
“Os agressores não são monstros. Estuprar não é uma patologia porque o agressor não vai fazer isso com o chefe ou o colega de futebol. Ele escolhe a vítima e acredita na impunidade”, explica a assessora de comunicação da ONU Mulheres, Isabel Clavelin. É porque a impunidade realmente existe. No Rio de Janeiro, por exemplo, apenas 6% dos acusados de estupro vão a julgamento, de fato.
Julgamento
O agressor de Maiara não encarou o ocorrido como uma violência, tampouco os amigos daquela época. Para eles, o rapaz simplesmente tirou sua virgindade, ainda que ela não estivesse em condições de consentir ou não com o ato. “Eu era muito religiosa, planejava me casar virgem. Minha reação ao episódio foi negar, fingir que nada havia acontecido. Não entendia como teria ficado com um rapaz que me dava uma impressão tão ruim, um sentimento negativo”, lembra ela.
Embora a menina bloqueasse as lembranças da violência e ignorasse os comentários dos amigos, que diziam que tudo não passava de um teatro, o corpo manifestava os primeiros sintomas daquela percepção. Maiara perdeu o emprego, entrou em depressão e tentou tirar a própria vida em 2011, dois anos depois do estupro.
“Não tive o apoio de ninguém. Os amigos diziam que eu sempre bebia, que não queria assumir que tinha perdido a virgindade. Quando pensei em denunciar, o meu melhor amigo deu a entender que não testemunharia a meu favor. Nunca tive coragem de perguntar o porquê”, desabafa Maiara, com a voz embargada.
Ela se afastou de todas aquelas pessoas que estavam na festa e transformaram a violência em motivo de piada e humor. Em um “inimigo secreto”, brincadeira em que as pessoas trocam presentes ofensivos, Maiara recebeu o exemplar de um filme pornô e uma maçã que lembrava o órgão sexual feminino, com uma camisinha e o recado: “eu sei o que você fez naquela festa”. O telefone fica mudo. Maiara interrompe a história e chora, mais uma vez.
“Eu ri, era a única coisa que podia fazer. Era melhor chorar em casa sozinha do que tentar explicar que não estava mentindo, que eu tinha sido violentada. Até fui na Delegacia da Mulher para entender como poderia denunciá-lo, mas a delegada me disse que já tinha se passado muito tempo desde o estupro, mesmo que eu fosse menor de idade na época. Se a menina do Rio de Janeiro foi descredibilizada, com vídeo e tudo, como acreditar que seria diferente comigo?”, indaga.
Abandono e solidão
No caso de P., a denúncia formal sequer foi cogitada. Ela precisaria acusar um homem de seu círculo social, com quem ainda tinha muitos amigos em comum, e se submeter a um exame de corpo de delito que não acusaria nenhum abuso. A humilhação era certa, bem como a impunidade do agressor.
“Eu teria que provar o que aconteceu e repetir à exaustão algo que ainda me rasga por dentro. Quantas mulheres não são chamadas de loucas por reagirem a um abuso ou agressão? Pensava que era melhor enlouquecer sozinha do que deixar o mundo sabendo”, explica a vítima. P. foi abusada pelo próprio namorado, quando tinha 18 anos. Ela era virgem e o rapaz acreditava que tinha direito sobre o seu corpo, já que estavam juntos há sete meses.
O silêncio de P. não foge à regra. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde, apenas 20% das vítimas procuram ajuda, seja médica ou policial. Só 10% das denúncias chegam às delegacias especializadas. A inocência da vítima é posta em xeque até mesmo por servidores públicos de órgãos especializados para cuidar do caso, como na Delegacia da Mulher.
“A maior dificuldade de qualquer governo é criar ações nacionais que coloquem as leis em prática, porque a legislação já existe. O grande problema é que os funcionários ainda têm esse machismo enraizado. Eles precisam ser capacitados para que tenham outra visão e trabalhem com a premissa de que a mulher é vítima, sem discussão”, explica Aparecida Gonçalves, profissional recentemente afastada da Secretária do Enfrentamento à Violência, da Secretária Especial de Políticas Para as Mulheres, que estuda o assunto há 35 anos e participa de todas as investidas governamentais a favor das mulheres nos últimos anos.
Segundo ela, mais da metade das vítimas que procuram o serviço 180 de atendimento exclusivo, criado em 2006, não relatam terem sofrido violência sexual, mesmo quando ela frequentemente acontece paralela ao abuso físico. “Quando uma mulher sofre violência física e logo depois o marido quer ter relação sexual, ela não tem condição de resistir. Mas quando ela denuncia, ela cita somente que apanhou, que teve uma faca colocada no pescoço, mas raramente fala do estupro. Por toda esta cultura, estas duas violências ainda não estão alinhadas na cabeça de muitas destas mulheres”, explica Aparecida.
“É injustificável a existência de serviços de saúde que pedem que a vítima tenha de provar sua palavra. Um estupro não é motivo para um profissional da nossa área ficar pasmo, perplexo. Perplexidade é o que temos em relação aos serviços de saúde que ainda questionam a mulher, insistindo que ela conte repetidas vezes o ocorrido, na tentativa de contradizê-la, exigindo boletim de ocorrência. Isso é violação grave dos direitos humanos e é tão cruel como o próprio estupro”, afirma.
Segundo ele, que já fez mais de 600 abortos legais em mulheres vítimas de estupro, o trabalho nos hospitais é apenas a “ponta do iceberg”. Drezett ressalta que a maioria dos estupros não deixa lesões aparentes, o que aumenta a relutância em denunciar. Por isso, grande parte dos casos que chega ao sistema de saúde envolve lesões graves ou gravidez. Essas mulheres ainda precisam enfrentar o terror do período após o estupro sozinhas.
“O mais comum é ver a mulher abusada chegar ao hospital por conta própria. Elas fazem todo o acompanhamento sozinhas, enfrentam o abortamento legal solitárias, totalmente desamparadas. Estas mulheres sofrem de uma maneira intensa porque não encontram apoio de nenhum lado. Existe muita solidão nesse caminho”, admite o especialista.
A matemática do estupro
Estupro não é sexo, é crime. Parece óbvio repetir isso, da mesma maneira como também deveria ser óbvio que homens não podem tocar o corpo de uma mulher sem a sua permissão, muito menos violá-lo sob qualquer justificativa. O motivo é a cultura machista e patriarcal em que surgimos, vivemos e perpetuamos. Apesar da discussão ser recente, o tratamento dispensado às mulheres é muito antigo.
“Desde cedo, a mulher é ensinada que tem que se guardar, enquanto o homem é ensinado a atacar. Um lado precisa pegar o máximo possível e o outro precisa ter o mínimo de relação sexual aceitável. É óbvio que essa conta não vai bater e vai gerar o abuso sexual. É muito clara a matemática do estupro”, explica Maria Giulia Pinheiro, escritora e performer que pesquisa a representação e violência de gênero e, em 2015, roteirizou e atuou na peça ‘Alteridade’, que abordou a questão, em São Paulo.
Durante outra peça em que o estupro também era tema, Maria Giulia contou ser procurada por diversas mulheres da plateia. “Elas narravam histórias de cinco, seis anos antes, perguntando se haviam sido estupradas. Por seis meses, a cada semana uma mulher fazia isso. Elas diziam: ‘eu estava bêbada, disse algumas vezes que não queria, mas ele transou comigo’. Repare que elas não dizem ‘a gente transou’. De fato, a nossa cultura reforça a servidão da mulher aos homens”, diz.
Diante desse cenário, um passo para erradicarmos a cultura do estupro é entender que violência sexual não é só um crime que precisa ser resolvido com a devida punição do agressor, nas raras vezes em que isso acontece. Para além do agressor, a brutalidade da violência sexual deve priorizar 0 atendimento e acompanhamento à vítima. Além de doenças e a possibilidade de uma gravidez indesejada, o trauma gera perdas emocionais, culturais e financeiras imensas.