Dia do Disco
Único remascente da Grã-Ordem Kavernista, banda de Raul Seixas no começo dos anos 70, Edy Star é o entrevistado perfeito, não tem papas na língua e não faz média com nada ou ninguém. Para ele, que é pioneiro do glam rock no Brasil, ser gay atualmente no país está pior que no tempo da ditadura. O motivo, para o músico, é a emergência de outra ditadura, do politicamente correto e da caretice.
“Não é saudade da ditadura, não. Mas no tempo da ditadura nós éramos muito mais inventivos, até como uma estratégia para sobreviver e vivíamos muito melhor, tinha muito mais facilidade”, compara.
Aos 75 anos, o baiano de Juazeiro diz que nunca procurou o escândalo. “Não era de querer causar. Eu era naturalmente atrevido. Eu era naturalmente uma bicha maluca”, admite. A reportagem do Virgula Música, encontrou Star na Baratos Afins, tradicional loja de discos da Galeria do Rock.
Sobre seu colega de banda na Grã Ordem Kavernista, que ainda tinha Sérgio Sampaio e Miriam Batucada, o músico quebra o lugar-comum sobre o Maluco Beleza. “As pessoas têm aquela ideia, o Raul era mesmo aquele cara louco? O Raul nunca foi loucão, um cara despirocado da vida. Eu era mais despirocado que todos eles. Que eu tinha um outro tipo de vida, eu vivia na noite, coisa que nenhum deles fazia. De cabaré, boate, frequentava a Lapa, era amigo de marginais, era amigo de bandidos”.
Leia a conversa a seguir, que surgiu sem ser marcada, de maneira espontânea, na sexta-feira (19). Um dos vendedores da loja apontou que Star estava ali e a reportagem se aproximou, ao perceber que havia alguém atrás dele, interrompeu a história que estava contando e começou a cantarolar uma paródia de Roberto Carlos: “Esse viado sou eu”.
Diga, o que você quer?
O disco que você gravou com Raul, Sociedade da Grã Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez (CBS-1971), é um dos mais raros e mais caros que tem aqui na Baratos Afins….
Eu não sou culpado, eu juro para você que eu não sou culpado…
Vocês esperavam que um dia este disco ter este prestígio?
Nunca? Você está maluco? Nós queríamos gravar um disco e curtir em cima, ninguém pensou em sucesso. Na época se pretendeu, como o disco é muito variado, a gente tinha a ideia de fazer depois uma ópera rock. Mas ficou tudo na ideia. Chegamos a comprar uma roupas em brechó, eu tinha um casaco de general muito bonito, vermelho. Dá para ver nas fotografias. Quando eu fui embora para Espanha, joguei tudo fora.
Jamais pensei que este disco fosse voltar porque esse disco entrou no ostracismo. Quinze dias depois de lançado, ele foi retirado do mercado. Nós que tínhamos tanto medo da censura federal, fomos censurados pela próprio CBS. Então, o disco 15 dias depois de lançado, a gente já tinha feito as reportagens, andado pelos jornais…
Vocês moravam na Bahia?
Rio de Janeiro, todos os quatro. A Miriam (Batucada) era de São Paulo, morava no Rio. O Sérgio (Sampaio), de Cachoeiro (do Itapemirim), morava no Rio. Todo mundo estava morando no Rio. Então, o disco foi retirado de mercado duas semanas depois de lançado. E aí, morreu a ideia. Todo mundo ficou chateadíssimo, Raul conseguiu ser contratado pela Phonogram por causa do festival, que ele cantou Let Me Sing.
Eu nunca mais fui na CBS. Sérgio foi levado para a Phonogram e ainda gravou Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua (LP, Philips, 1973), produzido por Raul. E o disco praticamente acabou. Agora, há uns seis anos, que o pessoal raulseixista redescobriu esse disco e começou um rebuliço que o disco era cult, que o disco era moderno, contemporâneo.
De seis anos para cá, mas antes disso esse disco foi esnobado pela imprensa da época. Por exemplo, Rolling Stone (revista brasileira alternativa, sem relação com a atual Rolling Stone), que era a bíblia, esnobou solenemente. O único pessoal que gostou foi o pessoal mais underground, Luiz Carlos Maciel, o Pasquim, que era o jornaleco underground. E alguns cronistas como Nelson Motta, que tinha a cabeça feita. Mas o resto do populacho, até mesmo a Rolling Stone, que era a bíblia de rock and roll esnobou completamente. A Rolling Stone só veio reconhecer Raul quando Raul fez sucesso com o disco solo. Aí você vê referência dele.
Eu vejo uma entrevista com Ana Maria Bahiana, “não, que eu era amiga de Raul”. Porra, e porque não falou desse disco? Porque não falou dele antes de gravar? Mas tudo bem. Mas jamais pensamos que esse disco seria um sucesso, que esse disco teria essa fama, esse culto que tem hoje.
Você é um colecionador de discos?
Sou. Já tive dois mil e tantos LPs em casa. Me desfiz da metade quando fui morar na Espanha, onde fiquie 20 anos. E ainda tenho uns 800, por aí assim, que estão guardados na casa de um amigo no Rio de Janeiro.
Você estava dizendo que todo dia é dia de disco…
Todo dia é dia de disco. Eu para acordar, eu tenho que ouvir música. Para mim, se estou sozinho, dá a impressão que tem gente em casa, tem barulho. Agora eu ouço muito disco de rock, não gosto muito de rock, ou então… eu gosto muita salsa, ouço muita salsa. E quando estava na Europa, ouvia muita música brasileira velha, música da minha juventude.
Batia um saudosismo?
Não é saudosismo, não. Eu ouvia muita música espanhola, me dediquei muito ao flamenco, entendo muito de flamenco, tenho muitos discos de flamenco, me dediquei à tauromaquia, as touradas que o pessoal detesta porque mata os touros. Eu adoro, acho maravilhoso, aquilo é uma arte, aquilo é fantástico (bate palma).
Mas disco é essencial ter em casa. Tenho muito vinil ainda, tenho muito CD.
Hoje em dia com o arquivo digital, não tem mais o álbum. É só a música solta, o que você acha que o pessoal perde por não ter o álbum?
Olha, tem muito álbum que é chatice, né, bicho? Eu moro junto a um produtor e às vezes tem novidade e ele me mostra. Então ele me mostra disco que acabou de gravar e vai sair no mercado, então, eu ouço muita coisa antes. Discos com 16 faixas, quem é que tem saco para ouvir 16 faixas? Ninguém. Doze ainda vai lá porque você bota no carro ou bota aí e vai fazer alguma coisa e ouve. Mas parar para ouvir 16 faixas, ouve assim, um minuto e tira. Então, de 16 faixas sobram uma ou duas faixas que realmente você gosta.
Mas de resto, as pessoas escolhem a faixa que querem ouvir e fazem o seu disco. Já fiz muito isso na Europa, baixando da internet ou de discos, só quero esta música, esta, esta esta. E eu fazia os meus próprios discos. Quando não fazia discos com uma música só. Eu tenho, por exemplo, umas 40 versões de Aquarela do Brasil. Eu pego e faço o CD em casa com o Nero. Garota de Ipanema, eu tenho umas 50 versões. Yesterday, Cambalacho, Faço discos de uma música só. Fumando Espero, têm músicas que eu gosto e ouço várias versões, pessoas cantando em vários estilos, a mesma música.
Então, escuto Garota de Ipanema em rumba flamenca, escuto na bossa nova, escuto com coral da Alemanha. Eu não acho isso ruim, não. Você escolher uma música na internet. O disco está caro. Fazer um disco é caro. Agora, se as pessoas não gostam do disco todo, eu gosto desta faixa, eu acho até o natural.
Voltando no Raul. Ele é uma figura muito idolatrada, porque você acha que ele conseguiu uma identificação tão grande assim?
Eu acho que a identificação maior é das pessoas pensarem que Raul era um cara louquíssimo, a imagem que ele passa é que era um cara louco, drogado, o dia todo. Como eles chamam? Atitude rock and roll. Quando Raul era caretíssimo. Depois passou a usar droga quando conheceu o Paulo Coelho. E depois ele perdeu, eu não digo a noção, perdeu as rédeas do personagem Raul Seixas. Então no final de vida ele já não tinha os dentes, se mijava, uma série de coisas. Então, o final de vida foi ruim.
As pessoas têm aquela ideia, o Raul era mesmo aquele cara louco? O Raul nunca foi loucão, um cara despirocado da vida. Eu era mais despirocado que todos eles. Que eu tinha um outro tipo de vida, eu vivia na noite, coisa que nenhum deles fazia. De cabaré, boate, frequentava a Lapa, era amigo de marginais, era amigo de bandidos.
Mas Raul criou essa imagem de loucão e as pessoas acham isso uma maravilha. Como não podem ser, então, se projetam na figura de Raul. E além do mais, as músicas de Raul são tudo aquilo que a juventude, o pessoal de hoje, gostaria de cantar. Então como não tem gente fazendo esse tipo de música, fica aí na base do toca Raul, toca Raul, toca Raul. Que eu acho muito bom, não sou contra não, afinal de contas eu ainda vivo fazendo shows em tributo a Raul.
E seu trabalho solo, você também tem um disco que é raríssimo, Sweet Edy (LP, da Som Livre, 74, CD, da Joia Moderna, 2012). Você era bem ousado, né?
Naquele tempo era. Eu era ousado porque eu tinha carro. o carro dava ousadia a você, porque você sai de casa como quer, se mete no carro e salta no lugar, não tem problema.
Mas causava escândalo?
Não era de querer causar. Eu era naturalmente atrevido. Eu era naturalmente uma bicha maluca. Então, eu assumi isso e foda-se o mundo, eu não me chamo Raimundo. E aí, causou impacto, eu fazia um show e me chamaram para fazer um disco. E eu fiz um disco do meu jeito, chamei meus amigos, o pessoal que eu conhecia, para fazer música para mim. Aí fizeram, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Mautner.
Isso aqui (mostra o CD) é um lançamento do ano passado, é um LP, e foi lançado com um livro, com fotografia, com minha história, uma edição de luxo da Joia Moderna.
Eu já ouvi falar que mesmo tendo a ditatura, era mais brando para os gays. É verdade?
Não era mais brando, nós éramos mais atrevidos e tínhamos mais jogo de cintura. Hoje, com toda esta liberdade, está caretíssimo, não só careta de gay, principalmente os héteros. Supercareta, essa coisa de politicamente correto é uma grande merda. Porque eu só vejo gente dizer que é contra o politicamente correto, mas continua praticando.
E, não é saudade da ditadura, não. Mas no tempo da ditadura nós éramos muito mais inventivos, até como uma estratégia para sobreviver e vivíamos muito melhor, tinha muito mais facilidade. No meu tempo, garota não dava com tanta facilidade.
E você está pensando em trabalho novo?
Eu estou com dois discos pensados. Vou ver como é que fica.
Rock and roll?
Um é rock, com as músicas que não entraram no primeiro disco, que sobrou música porque a censura boicotou e complementado com outras músicas. Tem gente ainda fazendo música para mim. E eu gostaria de fazer um disco de Carnaval. Eu quero fazer e já tenho músicas, já fizeram música para mim, Tom Zé, Zeca Baleiro, Caetano.
Passo muito Carnaval na Bahia, no Rio de Janeiro, o Carnaval da Bahia está restrito àquela onda de axé, mas das duas, uma, ou você entra na onda deles para curtir. Ou então, não se aproxime. Eu tento me aproximar da Bahia, um dia eu pretendo morar na Bahia, então eu tenho que me aproximar da música da Bahia. Ainda tenho amigos, gosto demais de Salvador. Gosto mais da Bahia, de Salvador não digo tanto, o interior da Bahia.
Ser roqueiro na Bahia é uma coisa transgressora?
Não, porque eu me dou com uma ou duas bandas da Bahia e eu não vejo transgressão, não. Fica todo mundo preocupado em fazer Sepultura, em fazer Iron Maiden, você entende? E não tem uma coisa que eu gosto muito de Portugal e da Espanha. O rock na Espanha sofre muita influência do flamenco, então você sente que o rock tem alguma coisa de espanhol. Em Portugal, é muito engraçado você ouvir rock em português, que tem o sotaque. Eles na Bahia, o rock quer ser rock internacional. Não tem uma coisa de axé. Uma coisa que os espanhóis estão usando muito é berimbau, aquela carron. Você não vê um rock na Bahia tocado com um berimbau de interferência.
Mas vocês faziam isso na Grã Ordem…
Mas aqui (mostra o LP) já é um outro tipo de trabalho. Aqui é um trabalho eclético, aqui tem rock, samba, baião. Não é um trabalho que você pode rotular como rock. Tem uma atitude rock, mas é um trabalho muito mais eclético, como o meu disco também. Essa coisa de me rotular como primeiro glam do Brasil, eu nunca me propus a isso não. Isso é tudo rótulo que me deram depois. E tudo que dizem de mim, querido, é tudo verdade. Eu não desminto nada e tem mais algumas coisas que não contaram. Pergunta para mim que eu conto, o que disserem de mim, é verdade, assumo.
Você veio aqui para trocar uma ideia com o (Luiz ) Calanca (dono da Baratos Afins)?
Com o Calanca você não troca ideia, você aprende. Calanca é uma enciclopédia viva. Então tem muita coisa que eu não lembro de nomes, não lembro como é que era, e o Calanca sabe. Em compensação, tem muita coisa que eu sei, que ele fica perguntando para mim.
É uma troca, né?
É uma troca. Com o Calanca você aprende.
E quando você está aqui vira atração na loja, o pessoal fica emocionado?
É, eu fico sem jeito. Eu gosto, mas ao mesmo tempo essa coisa, “ah você é o Edy Star”, não sei. Teve aqui um cara que pensou que eu era a Miriam Batucada, o que você quer que eu faça? “Meu Deus, não me diga que a senhora é a Miriam Batucada”. E eu só pude responder, senhora, não, senhorita.
O que eu posso dizer para um cara desse? E não desmenti, o cara saiu daqui, “ninguém vai acreditar que eu conheci”. A mulher está morta há 20 anos e o cara diz que encontrou aqui. Eu vou desmentir. Vou tirar a ilusão dele? Eu não, pelo amor de Deus. Acho ótimo.